Os Contos de Anima - Capítulo 3
Os alunos atônitos mal respiravam. Fossem os pequenos Gnoma que pareciam estar prestes a explodir e os enérgicos Faeram, ambos com os rostos apertados em concentração, ou os humanos olhavam frequentemente para todos ao seu redor enquanto os três Alfae sentados no fundo da sala, apesar de ficarem quietos em sua ponderação, não demonstravam traço algum de terem aprendido nada exceto que sua raça era poderosa e uma das grandes líderes do mundo, todos estavam extasiados com tanta informação.
Lucet, por outro lado, não desviou seus olhos heterocromáticos da elfa nem por um segundo. O que exatamente ela tinha feito? Isso foi a magia dos elfos? Ou será que foi uma ferramenta mágica dos Gnoma que ela mencionou? Fosse o que fosse, era simplesmente extraordinário! Ter a capacidade estar e ver tantos lugares tão rápido era algo maravilhoso! E ainda por cima, tudo controlado com um simples gesto, ele precisava aprender isso!
Ele sabia que, mesmo não sendo um elfo, por ser um humano tinha a possibilidade de aprender magia assim como eles, e, mesmo que nunca pudesse ser tão bom quanto eles por ter um talento natural inferior a estes mestres do uso da mana, ainda assim, se pudesse usar, por menor que fosse sua eficiência, as artes mágicas assim como eles, já ficaria satisfeito.
Caso não fosse capaz, ainda tinha a opção do druidismo dos Faeram e caso isso também não funcionasse, ele poderia aprender a arte da forja com os Gnoma, e com sorte, aprender a encantar como eles. Mas algo tinha que funcionar! A instrutora dissera que os humanos têm potencial, ainda que medíocre, para aprender qualquer coisa e a capacidade de ocupar qualquer profissão mesmo que não ao ponto de atingir a maestria absoluta do seu oficio de escolha.
Lucet sorria de olhos fechados, suas sobrancelhas franzidas enquanto sua mente imaginava. Se via crescido, já experiente, com vestes cinzentas longas e um chapéu pontudo que dobrava na ponta com grandes abas que conseguiam esconder quase tudo do seu cabelo grisalho ligado a sua longa barba igualmente acinzentada. Nas suas mãos ele carregava um cajado de madeira que parecia um grosso galho retorcido com um cristal na ponta enquanto murmurava palavras de poder. Com o brilhar do cajado ele disparava magias ofensivas, conjurava escudos brilhantes ao seu redor, revelava segredos em lugares estranhos e impedia a passagem de feras, monstros e dos Durza.
Num piscar de olhos, sua figura imaginária mudava e logo se via cercado de flora aromática e fauna abundante. Em suas mãos ervas e minérios em pó, ossos de animais e um caldeirão borbulhante que cintilava na mesma cor verde de suas vestes enquanto praticava as artes druidas para curar e se fortalecer com a natureza como sua aliada, sua face ostentando pintura facial de pigmento vermelho que ocasionalmente brilhava quando o caldeirão soltava uma luz particularmente forte.
Mais uma vez o cenário mental mudava. Se via diante de uma grande forja flamejante com vários espetos metálicos inseridos nas chamas, sua pele era morena de anos de trabalho e suas feições eram marcadas com as décadas de fortes expressões e dedicação do trabalho com os minérios e a magia. Vestia roupas grossas de couro de fera e um avental de couro escuro repleto de bolsos com partes e ferramentas de trabalho, atrás de si uma bigorna negra inscrita com runas. Ele então puxava um espeto em particular, sacava de seu bolso um martelo quadrado e em instantes estava martelando e modelando o metal, faíscas voando para todos os lados enquanto o tintilar do impacto ressoava constantemente dentro do local.
Era óbvio que demoraria anos para ele alcançar resultados decentes, e, mesmo que nunca fosse um mestre renomado, definitivamente seria capaz de usar uma arte mística! Foi então que, como se uma luz acendesse em sua mente, uma pergunta muito importante o acordou dos devaneios. Mesmo que desejasse trilhar o caminho das artes místicas, seja de qual especialidade for, como exatamente deveria começar? E, mesmo que a instrutora tivesse dito do potencial dos humanos, ainda assim, será que realmente ele possuía essa capacidade de aprender ou o talento para a coisa toda? Ele tinha de perguntar! Seus sonhos sobre as artes misticas dependiam dessa resposta!
Demorou alguns momentos para juntar a coragem de questionar novamente, afinal, a reação da classe em relação ao seu último questionamento ainda estava fresca em sua mente. Porém, antes mesmo que tivesse a oportunidade de levantar sua mão, Kaella fechou o livro, que momentos antes, havia sido usado para maravilhar a sala. Um baque surdo ecoou pela classe, despertando os alunos de seus devaneios.
— Bem, creio que nosso tempo acabou filhotes — ela disse.
Ela então apontou e disparou do seu dedo indicador uma luz cintilante que cortou o ar como uma flecha e atingiu a porta num piscar de olhos, fazendo-a brilhar por alguns momentos. A porta tremeu e, segundos depois, abriu tão bruscamente que parecia ter sido atingida por um aríete, deixando entrar então a luz alaranjada do sol poente e o refrescante sopro da brisa do vale.
Se foi o abrir abrupto da porta, a luz do sol que demonstrava o cair da noite, o súbito sopro úmido e aromático do vento vindo da floresta ou até mesmo alguma energia desconhecida ninguém sabia mas, em questão de segundos, as crianças se levantaram e correram para fora deixando apenas a elfa e Lucet, que com muito esforço conseguira resistir a estranha necessidade de sair, dentro do local que agora se encontrava quase deserto de vida.
Kaella fitava a porta com a certeza de que havia mandado todos embora com total eficiência, porém, ao virar seus olhos de volta para a mesa logo à frente da sua, um quase imperceptível “Oh!” escapou de seus lábios, o que fez Lucet se retrair e tentar diminuir ainda mais seu tamanho. Um breve sorriso radiante floresceu no rosto instrutora.
— Ora, o que temos aqui? Parece que alguém resistiu à tentação de sair e conseguiu se manter na cadeira após o fim da aula — disse ao soltar um leve riso abafado — algo em que eu possa ajudar pequeno humano?
Lucet estava rígido feito uma estátua. Sua estranha tentativa de se encolher, que obviamente não havia funcionado nem de longe tão bem quanto o esperado, o deixara tão torto sobre a cadeira que o fazia parecer um gárgula expressando uma dor particularmente cômica, e, seu óbvio desconforto somado a sua explícita apreensão da repreensão do ser a sua frente fazia com que seus músculos contraíssem, e logo, começassem a arder e ameaçar câimbras, o que o fez rapidamente levantar.
Uma das sobrancelhas de Kaella se levantou ao observar o comportamento daquele que ao seu ver era o aluno mais interessante da turma, o que no seu conceito só podia significar o único que demonstrou o mínimo de cérebro até então, e uma leve pontada de dó surgiu em sua mente. Apesar da aparente inteligência, o filhote de humano a sua frente era muito tímido e sofria com a insegurança muito mais que qualquer um de sua espécie que estivesse na sua faixa etária.
— Bem Lucet? Tem alguma dúvida em que eu possa lhe ajudar? — ela disse, sua voz mais gentil e calorosa, tentando incentivá-lo.
Passaram alguns desconfortáveis momentos de silêncio antes que Lucet finalmente começasse a falar.
— B-Bem instrutora Kaella, — Ele disse, sua voz levemente tremula — Como é que faço para saber se tenho capacidade para aprender magia? Tem um jeito de testar isso?
Conforme o garoto falava, gradualmente sua confiança foi aumentando, e sua fala gradativamente se tornando mais fluida e também veloz.
— Na aula a senhora usou magia e foi incrível! — Ele disse empolgado — Eu quero conseguir fazer isso também! Mesmo que não seja tão bom quanto um el…Alfae… e se não for magia, tem como eu saber se posso aprender as outras coisas?
Lucet falou tão rápido e sem respirar que quando terminou de perguntar teve que tomar um largo fôlego e arfar por alguns instantes para se recuperar. A elfa por sua vez ficou em silêncio, seu rosto contemplando a pergunta, mas sem expressar o que pensava, Lucet ao observar este silêncio sentiu seu estômago congelar. Será que não tinha jeito mesmo? Será que seu destino era para sempre ser apenas um humano sem poder algum que só poderia passar sua vida admirando a magia, sem jamais ser capaz de usá-la?
Após alguns momentos, que para o garoto pareceram horas de espera, Kaella o respondeu.
— Então é sobre isso! — ela riu, um sorriso radiante surgindo em sua face — Que interessante, realmente interessante criança humana! Mais cedo você demonstrou algum cérebro, mas agora, você realmente despertou meu interesse. Existem métodos para testar as capacidades e o potencial para todas as artes, mas geralmente estes métodos só são apresentados mais tarde ao longo de seu aprendizado.
— O costume dos instrutores de Anansi é de começar a seleção de candidatos para as especializações no sexto mês, pois até então vocês já terão visto os efeitos das artes o bastante para não só ter uma compreensão rudimentar de como funcionam, mas também, alguns de vocês já terão começado a demonstrar sinais de seu potencial e afinidade. Mesmo aqueles que por natureza são mais talentosos em uma arte específica, nem sempre possuem afinidade ou gosto por tal arte, portanto, acabando escolhem outros caminhos. Exatamente por isso que os Faeram, por exemplo, são tão conhecidos por serem ótimos guerreiros. Muitos deles preferem lutar ao invés de dedicar longos, árduos e por muitas vezes entediantes anos ao caminho dos druidas.
Lucet, apesar de um tanto aliviado em descobrir que suas suspeitas, por hora, foram em vão, se sentiu um pouco desapontado e, instantes depois, enfurecido. Seis meses!? Ele teria que esperar seis meses para descobrir se era capaz de usar magia? Não! Isso era tempo demais para esperar! Talvez fosse a impulsividade natural de uma criança ou alguma forte insegurança, mas, logo em seguida ele ignorou qualquer receio que tinha com a mulher a sua frente para longe e falou revoltado, seu rosto corado de raiva.
— Seis meses!? Como é que vou aguentar esperar seis meses para ver se eu consigo usar magia!? Porque é que demora tanto!? Eu quero ver isso agora!
A elfa ficou em silêncio, atônita. Até o momento a criança tinha apenas demonstrado apenas curiosidade e inteligência, coisas que haviam despertado seu interesse, mas era apenas isso, um interesse que talvez com o tempo explorasse. Porém, ao ver a revolta do pequeno a sua frente diante da perspectiva de ter que esperar para descobrir sobre a magia e ainda por cima que o pequeno, que instantes antes tremia diante de si e mal conseguia falar, era capaz de demonstrar tal indignação era surpreendente.
Uma luz azulada reluziu por uma fração de segundos nos olhos violetas de Kaella enquanto ela fitava o garoto seriamente, suas orelhas se mexendo levemente. Alguns momentos depois sua expressão foi gradativamente melhorando, e logo, ela se encontrava radiante novamente, seu sorriso tão belo e encantador de forma que até Lucet que tinha apenas seus oito anos se sentiu encabulado e a raiva que borbulhava dentro dele se dissipou instantaneamente, fazendo com que desviasse os olhos e focasse nas frestas das toras que compunham o chão da sala.
Naquele instante em que seus olhos brilhavam levemente Kaella tinha usado um feitiço para observar as emoções da criança, algo que a tornava capaz de enxergar e ouvir seus pensamentos mais intensos com clareza. Obviamente, qualquer um que fosse capaz de executar barreiras mentais conseguiria impedi-la e até mesmo perceber que ela havia tentado invadir a privacidade de seus pensamentos, mas, como o alvo se tratava de uma criança cuja primeira demonstração de magia ocorreu por meio da aula que ela lecionou, como exatamente ele poderia notar o que ela estava fazendo?
“NÃO! NÃO! NÃO! NÃO! NÃO! NÃO! Como é que vou esperar tanto para descobrir se posso ou não usar magia?” diziam os pensamentos do garoto, “E se eu esperar todo esse tempo e acabar sendo um inútil que não pode fazer nada? Todos vão zombar de mim! NÃO! Se for para eu descobrir que eu não posso aprender nenhuma das artes, é melhor eu saber agora! Pelo menos assim posso inventar uma desculpa depois para não fazer o teste”.
O humano não parava de surpreender. No curto espaço de horas que lecionou, a elfa ficava apenas mais e mais interessada na criança. O grande desejo pelas artes, não pelo seu poder, mas pela sua fantástica natureza era algo comovente para ela que dedicou toda sua vida em busca do conhecimento e do aperfeiçoamento da magia. Era gratificante ver alguém tão jovem demonstrar tamanho interesse pelas artes, ainda mais se considerado que era uma vontade pura e não uma ambição gananciosa pelo poder.
— Acalme-se filhote humano — a instrutora disse aos risos — Sua fúria é desnecessária, não deixarei que alguém tão interessante tenha que esperar tanto para ser iniciado ao caminho das artes.