Os Contos de Anima - Capítulo 40
Anos mais tarde, os historiadores, especialmente os de Lybra, nomeariam esta data como o “Milagre Branco” ao descobrirem a verdadeira razão da grande aura de luz que expandia mais e mais em direção ao céu ao irromper do centro da nação dos alfae.
A casa da raça mais arcanamente abençoada de todas sempre foi conhecida por ser um local de luzes. Por todos os lados era possível enxergar milhares de cores que surgiam dos cristais de mana e das inúmeras magias ativas a todo o momento, mas, se comparados a luminosa explosão alva, aquelas luzes coloridas sequer eram capazes de manter este título.
O monarca dos alfae e a guardiã ainda se encontravam perfeitamente supressos diante do poder branco. O monarca restrito de sua força enquanto a guardiã simplesmente não conseguia acreditar no que estava vendo e por isso não era capaz de reagir como o faria normalmente.
Lucis encarava agora o que ele percebia ser a fonte de todo aquele fenômeno, e sua expressão congelada escondia uma miríade de sentimentos que seus olhos facilmente entregavam. Por vezes sentia uma profunda admiração, não pela fonte, mas pelo próprio poder, por outras, sentia uma imensa inveja e raiva de não ser capaz de obtê-lo e também de não ter sido abençoado com tal presente, além da esmagadora sensação de saber a origem deste fenônemo.
Kaella não o havia informado das origens da criança, mas agora que ele olhava para ela, que atualmente estava flutuando em cima da grande cama dentro de uma esfera de luz branca e dourada, ele começara a relembrar de uma história que corria pela corte alfae a duas decadas atrás, sobre um par de indivíduos, uma de sua raça e um da raça dos humanos, que quebravam as tradições e por tal, foram perseguidos pelos seus.
Um curioso caso que ele nunca teve certeza sobre qual posição tomar, afinal era da mentalidade que as leis impostas por puritas fossem uma grande imbecilidade, mas que acabou por ordenar que caçassem o par pois a existência deles já era um perigo para as relações entre as raças, mas caso concebecem um descendente, a situação se tornaria ainda mais caótica, e caso a criança viesse a crescer e virar suas armas para seu povo, potencialmente perigosa.
Ao passo que seu poder era supresso, sua mente, antes aparentemente cega por seu poder adquirido e todos os problemas mundanos que tinha de enfrentar como o líder de sua raça, se tornava cada vez mais leve e ágil, tal como fora quando ainda era mais jovem e livre de suas responsabilidades reais.
Os traços mais afinados do rosto e corpo, os olhos de cores diferentes, os cabelos mais claros que a média dos humanos porém muito mais escuros que a média dos alfae, o óbvio talento para as artes mágicas que era capaz de sentir, além da presença de um poder similar ao poder que agora o prendia.
Sem ter sido tão acorrentado e destituído de seu poder, ainda demoraria um pouco a perceber pois sabia que Kaella iludiria seus sentidos com magia afim de proteger o garoto, mas vendo-o assim, sem qualquer truque ou artimanha que assegurasse sua identidade ou ludibriasse os observadores, era tão óbvio que ele teria até mesmo rido se não fosse pelo fato que só era capaz de mover os olhos e pensar naquele instante.
Nem todos fariam esta conexão tão rápido quanto ele, e talvez nem mesmo a guardiã o tenha feito, mas ele sabia exatamente quem era a mãe desta criança no instante que pode observá-la, pois os traços mesclados do menino, um tanto semelhantes aos seus próprios, invocavam poderosas memórias dentro de si.
Memórias de tempos mais simples e alegres, de pessoas que ele acreditava ter perdido toda a conexão em definitivo, e de erros que ele havia a muito justificado com a desculpa do “bem maior dos alfae” que agora retornavam a sua mente em cheio e instigavam sua culpa a agir.
Em qualquer outro momento com qualquer outra criança, o monarca teria agido decisivamente e eliminado-a antes que pudesse tentar se tornar uma ameaça, mas, ao vê-la e descobrir quem era, além do fato de estar perfeitamente preso diante da esmagadora luz branca, foi incapaz de manter qualquer intenção hostil e se viu decidido a protegê-la.
Kaella por sua vez estava num estado quase catatônico. Sua mente nadava com a imensa quantidade de informações que surgiam dentro dela, muitas delas cujo ela levaria anos para sequer começar a decifrar, mas com uma clara mensagem que a deixava abismada, e muito preocupada com o futuro.
“Após esta, apenas mais uma vez até o fim de minha palavra.”
Ela sabia que, após o término da validade da promessa, a palavra da divindade que aceitou o sacrificio iria se desvencilhar e retrair sua proteção absoluta do garoto, porém, o que ela não esperava é que a frase que recebera foi um aviso, que ela entendeu perfeitamente bem.
Lucet sacrificou sua força vital e imolou sua própria alma naquela luta de quase três anos atrás para gerar poder suficiente para enfrentar Alexander que estava muito acima de seu nível, e sua alma, desprovida de tal força, práticamente já havia sido reclamada pelo pós-vida, e tal como Lucis falara, Lucet estava essencialmente morto.
A única coisa ainda mantendo-o o vivo era a promessa divina, que ao longo dos dois anos, protegeu e restaurou a alma e a força vital do menino, assim salvando sua vida como uma verdadeira ressureição, algo que para todos os fins não deveria acontecer.
No tempo que o corpo era restaurado de sua força vital, a alma descansava em outro plano, pois a mesma também estava severamente danificada e os reparos de uma existência tão única como a alma eram complexos e muito acima do nível que qualquer ser mortal e vivo era capaz de compreender. Tal era o grau de dificuldade que os únicos seres capazes de sequer tocar a borda do conhecimento deste assunto eram os Durza que usam de artes proibidas para prender suas almas ao plano dos vivos de uma forma grotesca e crua, violando as leis da vida e da morte para evadir seu fim.
Mesmo sendo uma divindade, o ser a avisou que seu poder era restrito pelos termos do contrato entre ele e aquele que realizou o pacto, podendo apenas demonstrar um certo grau de poder proporcional ao sacrificio. Felizmente o sacrificio foi grande o suficiente, parte graças aos esforços de Kaella que evitou grande parte dos perigos a vida do garoto ao tomá-lo como discípulo e filho adotivo assim poupando a energia disponível no amuleto que representa o contrato, para restaurar os danos e ressucitar Lucet.
Porém, com este aviso, agora surgia a questão que mais a preocupava, o poder do amuleto estava prestes a acabar e só poderia ser utilizado uma última vez para proteger a vida do garoto. Só uma última cura ou defesa e depois disso, mesmo que o tempo da promessa não tenha sido concluído, o amuleto perderá seu poder e o contrato será terminado.
Como se não bastasse a primeira má noticia, ressucitá-lo uma segunda vez seria impossível, não pela inabilidade do ser que o fez, mas porque a própria alma do garoto não suportaria passar por este tipo de dano uma segunda vez e, mesmo que suportasse, o amuleto não possuía mais a energia necessária para custear o processo novamente.
Quando este choque de preocupação finalmente cessou e sua mente começou a clarear, ela não pode deixar de dar um breve riso que a acalmou muito. Como poderia ela estar insatisfeita? Seu filho tinha sido protegido das garras da morte que ela, por falta de habilidade, acabou por provocar e ela ainda contemplava a preocupação e falta de sorte?
O fato do garoto ter sido recussitado uma vez já era por si só um milagre, afinal, voltar dos mortos era algo que ia contra todas as leis da natureza e até mesmo os durza, a única “raça” conhecida por ser capaz de fazê-lo, só o realizava de uma maneira crua e incompleta, tornando-se em espectros presos a este plano por meios nefastos.
E ainda assim, ela pensava em reclamar quando Lucet fora capaz de retornar, sem quaisquer danos permanentes e praticamente intacto? Ela riu mais um pouco e não pode deixar de pensar o quão realmente poderoso era o pai da criança para poder sacrificar tanta energia para assegurar este contrato e ainda deixar uma herança de puro talento escondida no sangue do menino.
「• • •」
Num mundo de pura luz, um garoto flutuava, seus olhos heterocromáticos reluzindo enquanto refletiam a imensidão luminosa e toda a calmaria que ali residia. Suas vestes eram azuis, como a que sua mãe e mestra lhe dera para treinar, mas com um tecido muito mais macio fazendo-o o sentir como se vestisse nuvens ao invés de fios de azul marinho.
Seu corpo estava leve e ele se sentia explendidamente bem, tão bem aliás que ele pensava ser capaz de voa se tentasse. Tão confortável era seu estado que ele não tinha sequer certeza se realmente estava consciente ou se estava diante de um sonho pacifico numa longa noite de descanso após um exaustivo dia de prática de combate.
Sua mente processava as coisas cada vez mais rápido e silenciosamente ele se tornava cada vez mais inteligente, mesmo que ainda não percebesse isso, enquanto seu sangue absorvia o poder daquele lugar, furtivamente promovendo uma evolução no poder escondido ali, algo não apenas quantitativo mas fundamentalmente qualitativo que lhe traria imensos beneficios no futuro.
Depois de uma medida imensurável de tempo, os olhos heterocromáticos do garoto se moveram e fixaram-se numa direção especifica enquanto seu corpo que antes apenas relaxava deitado sobre o esplendor luminoso do espaço branco, começara a se virar e, quando flutuando de frente para a direção dos seus olhos, encarar uma silhueta humanóide sem rosto ou quaisquer marcas que o conectassem a uma raça especifica contendo apenas duas esferas de luz dourada onde deveriam estar seus olhos.
A expressão do garoto então se fechou e retorceu quando uma sensação de como se estivessem batendo em seu crânio com uma marreta se apoderou dele. A figura começou a se comunicar, mas não movendo musculos e vibrando-os com ar, mas conectando-se diretamente com a consciência do garoto, fazendo-o ouvir a voz solene e poderosa da figura, que apesar do silencioso espaço branco, parecia ecoar como o rugir de mil tempestades dentro de si.
— Olá pequeno meio-eterno — disse a figura, uma onda de dores contorcendo a expressão do menino — Rogo-lhe perdão pela dor, mas há muito já não me comunico com aqueles dos teus e por tal estou tendo alguns problemas em regular as ondas de comunicação mental, peço que tolere por hora pois em breve isto será reparado.
Atendendo ao pedido da figura, e considerando algumas coisas, o garoto acenou a cabeça, a figura logo continuou.
— Pelo que pensas — a figura continuou, um som parecido com o de um riso ecoando na mente do garoto — E sim, posso saber o que pensas, vejo que já tem algumas perguntas e pistas do que eu sou e do que é este lugar não?
O garoto apenas acenou com a cabeça.
— Sinta-se livre para perguntar o que quiser — a figura então anunciou — Após os meus mais recentes deslizes quanto a sua proteção, acredito que seja justo lhe dar algumas respostas.
O garoto permaneceu em silêncio por algum tempo, sua expressão se tornando gradativamente mais relaxada enquanto o fazia, ponderando sobre o que dizer primeiro, e logo, tomou um curto folêgo antes de começar.
— Você é um deus?
— Começando com as grandes perguntas primeiro, vejo que não desperdiças oportunidades pequeno — a figura riu — Sim, eu sou o que vocês mortais costumam chamar de divindade, mas acredito que o termo mais correto seria personificação.
— Personificação? — Lucet questionou confuso — Do que?
— Neste mundo existem cinco tipos básicos de poderes cujo os mortais podem acessar — a figura explicou, esticando seu braço e abrindo sua mão esquerda, mostrando cinco dedos luminosos, o seu dedo indicador logo brilhando com uma luz azulada que Lucet logo reconheceu como mana — O poder arcano, que permite com que seres aptos e com conhecimento sobre este poder manipular os elementos básicos e suas respectivas transformações através do uso da mana, além da luz que estimula das propriedades básicas do corpo, promovendo a cura, a elusiva sombra, que você incluso tem acesso, e que permite a manipulação dos sentidos e do inanimado para muitos fins e o acesso a outros planos, com o poder dos contratos.
O dedo do meio da figura então brilhou com uma aura verde e refrescante que Lucet facilmente reconheceu como o poder usado pelos druídas — A energia da terra, que permite a promoção e amplificação das propriedades naturais de toda espécie de vida não-consciente ou de fragmentos da mesma — O dedo anelar da figura então brilhou com uma aura dourada similar ao poder do próprio espaço ao seu redor, mas mais fraca — A aura da fé, que permite amplificar e manipular a energia produzida por todo ser consciente para vários efeitos — Em seguida, o dedo mindinho da figura reluziu com uma aura negra-arroxeada que fazia Lucet sentir um tanto de desanimo com uma pitada de desespero — A Necroforça, que os corrompidos durza usam de uma maneira rudimentar para evitar o destino, sem saber do seu verdadeiro poder.
E então a figura apagou as luzes dos outros dedos, cerrou sua mão e deixou apenas seu dedão exposto, que agora brilhava com uma aura vermelha que em poucos instantes tingiu todo o espaço branco com sua luz escarlate — E o poder que dorme dentro de e protege a raça numerosa dos humanos, o talendo da vida.
O espaço logo retornou ao normal quando a luz vermelha foi extinguida, a figura em seguida continuando sua explicação.
— Quando há a extensa compreensão de um determinado poder, ou de um aspecto especifico deste — a figura seguiu dizendo — Somado de alguma sorte, é capaz de se criar uma “lei”, que nada mais é que uma versão mais dominante e potente que o poder básico e a clara evolução de suas habilidades, e para os mortais, este é o apíce que são capazes e permitidos de atingir.
— Então você é uma super lei da fé ou algo assim? — Lucet questionou, empolgado com a nova perspectiva.
A figura riu por alguns momentos. A criança por si protegida era, tal como observara por tantos anos, divertida e interessante com sua constante curiosidade mesmo diante de si, uma forma de vida muito acima da dele.
— A idéia não está incorreta — A figura respondeu — Fora do reino dos mortais, existem os “conceitos”. Os conceitos são o molde para todo poder existente, e com a constante interação com seres inteligentes e suas vidas, estes conceitos desenvolveram sua própria consciência e inteligência e eu, sou a personificação, ou seja, a forma consciente de um conceito, e como pode ver ao meu redor, acredito que já saiba a qual conceito eu represento.