Os Contos de Anima - Capítulo 43
— Mas olha só! — O monarca desatou a rir, um leve sorriso triunfal surgindo em seus olhos reluzentes — Excelente! Realmente excelente! Você não tem apenas um grande potencial e um futuro promissor, mas também é tão inteligente quanto Kaella o descreveu, aliás, com esta pequena demonstração, acredito que até mais.
Lucet apenas olhou para o chão, ainda ajoelhado, sua expressão séria e impassiva, porém extremamente desconfortável. Ele não gostava nada da idéia de se tornar, o que para ele era essencialmente um lacaio, do monarca dos alfae, porém, tendo em vista que ele sozinho não seria capaz de demolir a congregação com seus próprios punhos, o melhor era que ele se disposse a pagar esse preço para conseguir o poder necessário.
— Porém, se és tão inteligente, acredito que com a educação fornecida por Kaella, já saiba exatamente o que vem a seguir, não?
A pergunta de Lucis atingira tão precisa quanto uma agulha. Sim, Lucet sabia exatamente o que viria a seguir, e ele não gostava nem um pouco. Para se tornar um aliado, com os termos que ele propôs para o rei, ele teria de se submeter a algo que comprovasse a sua determinação, e também a sua obediência, e tal como sua mãe o havia ensinado, a única maneira de absolutamente assegurar isso seria com um contrato.
— Lucis! — Kaella exclamou abruptamente — Como pode pensar nisso!? Acha que meu filho iria trair os alfae!? Porque insistir em termos tão pesados para ele? Meus serviços já não são suficientes para demandar tal auxílio?
Os cabelos carmesim da mulher esvoaçavam enquanto a aura negra como tinta da alfae mais uma vez ressurgia, demonstrando sua hostilidade. O monarca, porém, respondeu a altura e logo liberou seu dominio oceanico sobre ela, entretanto, desta vez com resultados bem diferentes do que ele esperava.
Lucet agiu rápido e se empurrou para fora da cama antes que a “lei” do monarca entrasse em ação. Ele rolou no chão por um instantes, bateu com seu braço no solo e usou o impacto para se erguer rápidamente e jogar seu braço para cima, liberando um brilho dourado no processo. O poder cinzento de sua mana também eclodiu e laceou o poder de sua aura antes de criar um escudo negro e dourado tão realista e sólido que mais parecia ser forjado de metais lendários ao invés de pura energia.
Diferente da ação anterior onde se defendeu do monarca, Lucet optou por tentar algo novo e viu, para sua felicidade, que sua idéia foi um sucesso. Seu braço estava nu e desprotegido ao passo que toda sua energia era focada no escudo que projetou logo acima de si mesmo e Kaella, rápidamente gerando um domo semi-transparente ainda mais forte que o anterior.
No primeiro ataque do monarca, o garoto foi pego de surpresa e por isso não foi capaz de reagir com eficiência, mas, com o tempo dado pelo monarca com suas tentações de poder, o garoto cuja a mente continuava fervorosamente absorvendo o poder da dimensão reluzente de Faerthalux calculou que seu poder apenas fora mais fraco pois não havia especificidade em seu propósito.
Ele havia desesperadamente invocado todo o poder que era familiar na primeira vez, além de sem querer invocar a forma do escudo, e por isso acabou criando uma defesa ineficiente, mas, agora que havia encontrado seu erro, concentrou toda sua energia em formar o escudo em si, pois eram deles as propriedades e o domo defensivo.
Mesmo que ele estivesse longe de domar aquele poder, desta maneiras ao menos era capaz de tirar mais resultados do seu quase inexistente treinamento. Ele sabia que era uma maneira um tanto crua de lidar com a situação, entretanto, preferiu tomar esta rota do que arriscar não conseguir defender Kaella ao mesmo tempo.
Préviamente, o escudo projetado até mostrou sinais de tremer quando atacado pela pressão do monarca, mas agora, com toda a força de Lucet concentrada apenas nele, o escudo se mostrou despreocupado com qualquer força e permaneceu tão imóvel quanto uma rocha diante daquela força.
— Acredito, “Vossa Majestade” — Lucet disse, um olhar de raiva em sua expressão enquanto ele encarava o monarca — Que a conversa era entre nós, porque decidiu trazê-la a isso?
Depois disso, Lucet se virou para Kaella, sua expressão suavizando enquanto um gentil sorriso brotava em seu semblante, seus olhos tão reluzentes quanto o primeiro dia que ela o viu, ainda que um pouco mais dourados e com traços de experiência.
— Não se preocupe mãe — ele disse num tom carinhoso enquanto sorria levemente, emanado gentileza — Eu já estava preparado para isso quando me ajoelhei diante dele. Sei que não é a melhor escolha, mas, por agora, é o que posso fazer. Não posso ser um hóspede dos alfae para sempre e, mesmo que eu fosse, eu ainda não estaria totalmente seguro estaria? Se eu quiser minha segurança, terei de conquistá-la com minhas próprias mãos e poder, não foi isso que me ensinou?
Kaella ficou por um tempo em silêncio observando o garoto. Ao vê-lo defendendo-a instantes depois de acordar de um coma e ainda por cima fazendo isso tendo como oponente um dos membros mais poderosos de sua raça, ela mal era capaz de se expressar ou julgar o garoto.
Certamente era uma tolice se opor a Lucis, pois ele era severamente mais poderoso e experiente do que ele, e ainda assim, Lucet se ergueu e a defendeu com um escudo dourado e negro, e este ato a silenciou. Ele havia crescido muito desde que o encontrara anos atrás em Elysium, e contando com o tempo do coma, eles já se conheciam a seis anos.
Após alguns momentos relembrando, Kaella deu o sorriso mais radiante que pode e disse num tom alegre e carinhoso enquanto sua aura se retraia e ela deixava sua beleza natural reluzir como uma pérola naquele ambiente oceânico:
— Vejo que aprendeu bem, criança — Ela disse sorrindo — Os anos que passei lhe ensinando não foram em vão.
Lucet sorriu de volta ao relembrar os tempos que dividiu com a alfae. Treinos diários, ensinamentos constantes, algumas duras batalhas e diversas, e riquissimas, experiências que sua mãe o havia proporcionado sem nunca pedir uma peça de bronze em troca. Ela o alimentara quando não o podia fazer sozinho, tratara de suas doenças quando ele se encontrava enfermo e também o confeccionava roupas quando ele já se via grande demais para as antigas. Nunca em toda sua experiência ele fora capaz de encontrar alguém que fosse tão excepcionalmente boa para ele de uma maneira tão altruísta.
— E ainda muitos mais virão, mestra — Ele respondeu com um largo sorriso — Porquanto me aceitar lhe chamarei mestra… e mãe.
A alfae mais uma vez se encontrou furtada de sua habilidade fonética diante daquele que, considerando sua própria idade, não passara de um mero bebê. Ela chacoalhou a cabeça e se ajoelhou ao lado de Lucet, que devido a pressa da defesa ainda se encontrava no chão, dando-o um abraço apertado em volta do pescoço e afundando sua cabeça repleta de fios carmesim nos ombros e clavícula do garoto.
O tempo para o garoto parecia ter congelado. O abraço apertado o preencheu com alegria e uma sensação quente em seu peito enquanto ele sentia o acelerado palpitar da alfae que o abraçava, porém, o que diferia de qualquer abraço anterior foi que ele conseguia sentir em seu pescoço um liquido quente escorrendo por sua pele, entretanto, antes que pudesse processar a sensação ele começou a sentir um leve tremor que logo intensificou enquanto a voz soluçante de Kaella soou em seu ouvido.
— Esse anos que você estava desacordado… — Ela disse enquanto apertava ainda mais seu braço — Eu pensei que tinha te perdido, que mesmo com o coração batendo… Você nunca mais fosse acordar… E agora, acabou de acordar, e mais uma vez arrisca tudo para me proteger… Eu sou um fracasso de mãe… E ainda assim, você continua me chamando com esse título…
— M..Mãe? O..O que foi?— Lucet balbuciou confuso.
Indiferente do questionamento do garoto, a mulher continuou entre soluços, suas lágrimas intesificando enquanto os tremores e a força do abraço apenas cresciam.
— V…Você lutou…P…Pronto para morrer.. — Ela continuou — T…Tudo para m…me defender e conseguiu… Mas você estava praticamente morto… E eu achei que ia te perder…Nem conseguiu acordar direito…Lutando denovo…Não vai embora…Não quero te perder filho, Nunca mais!
Neste instante, até mesmo Lucis que estava um tanto irritado teve sua fúria apaziguada pelo choro desesperado daquela que a tantos anos lhe servia. Desde o primeiro momento que conheceu a alfae ele a viu neste estado, nem mesmo diante da morte de seus companheiros de batalha e familiares ou até quando ela foi capturada e torturada, nunca ela derramou uma única lágrima que fosse ou um choro lamentoso desta maneira, mas hoje, após algum tempo ele notou que até mesmo ela tinha as emoções de uma mulher no fim das contas, mesmo que escondesse isso muito bem.
No segundo seguinte, os olhos de Lucet e Lucis se encontraram. Lucet o olhava com uma expressão que pedia compreensão, e Lucis, agora ainda mais interessado no relacionamento destes dois, acabou por acenar a cabeça e aceitar o pedido, retraindo seu poder e dando espaço para que o garoto fizesse o mesmo e pudesse abraçar a alfae com seu braço remanescente.
O garoto prosseguiu a abraçar Kaella pela cintura devido ao quão agarrada ela estava ao seu pescoço. Um pouco sem folêgo ele exprimiu com o ar que tinha em seus pulmões na voz mais gentil e reconfortante que pôde invocar diante do sufocamento que estava começando a sofrer.
— Mãe — Ele disse pacientemente, um sorriso suave em seu rosto enquanto ele massageava as costas da mulher — Eu não morri, apenas tive um sono muito longo não foi? Eu acordei agora, e tudo vai ficar bem. Não precisa chorar, não se lembra? Nenhum ser poderoso surge de calmarias, eu passei por essa tempestade e estou ainda mais forte, e logo, vou estar tão forte que ninguém vai poder me ameaçar, você vai ver.
Lucet passou vários minutos abraçado com Kaella enquanto lhe reconfortava com lembranças, promessas e até mesmo com ensinamentos que ela mesma lecionou e, logo, as lágrimas pararam de fluir enquanto os tremores foram lentamente diminuindo ao passo que a cabeça de orelhas pontudas e cabelos carmesim vagarosamente se ergueu até que os olhos do par se encontraram e eles sorriram calorosamente um ao outro.
Os olhos violeta da alfae brilhavam mais do que nunca diante do lacrimejar e se mostrava tão belos que qualquer homem ou alfae seria instantaneamente hipnotizado por sua radiancia. Lucet ficou paralizado por alguns instantes enquanto seus próprios olhos também reluziam com um esplendor próprio, apenas para segundos depois chacoalhar a cabeça e rir.
— Como você é linda mãe — Ele disse a encarando fixamente.
Um traço de vermelho subiu ao rosto e orelhas da alfae enquanto ela também desatou a rir.
— Menino bobo! — Ela disse sorrindo — Nunca mais me dê um susto desses! Se eu tiver que ver você nesse estado novamente, eu não sei se vou conseguir continuar.
— Pode deixar — Ele respondeu com um sorriso largo, mas olhos determinados e reluzentes como fogueiras — Eu prometo que nunca mais vou me deixar ficar assim e vou ficar tão forte que a senhora nunca mais terá de se preocupar comigo!
Ambos riram antes de se abraçarem novamente e, após alguns momentos, levantarem e se virarem para Lucis que os observava com um sorriso misterioso.
— Sei que é necessário um contrato arcano para garantir esse tipo de aliança, Vossa Majestade — Lucet disse calmamente — Então me diga, quais são seus termos diante minha proposta?
— Em troca de ter meu total suporte, e de minha nação, antes e quando chegar a hora em que avançará contra a congregação, além de óbviamente não virar nossas forças contra ti— O monarca disse enquanto retirava de um anel um papel azulado com símbolos e padrões encantados feitos em branco — Eu, Lucis Regio Magno Arcanum Lumina, exijo seus serviços irrestritos durante cem anos após o extermínio da congregação aos propósitos e designios de minha vontade, com a clara limitação de que tais designios e propósitos sejam adequados ao seu poder e posição que vem adquirir até tal momento.
O monarca então se aproximou do par, extendendo o papel para Lucet.
— Cem anos huh? — Lucet riu — Muito tempo, mas acho que se comparado ao quanto está disposto a oferecer, parece até justo, mas…
— Mas…? — O monarca questionou, o sorriso confiante e misterioso ainda em seu rosto — Algo lhe desagrada de meus termos?
— De forma alguma, Vossa Majestade — Lucet riu e balançou sua mão em frente a si — Apenas acredito que para alguém que viveu tão pouco quanto eu, cem anos é quase uma eternidade.
— Então o que sugere que façamos, criança?
— Apenas que coloquemos uma clausúla adicional neste contrato — Lucet respondeu, seu rosto impassivo como se aquilo fosse um tópico casual — Que caso meu poder ultrapasse o seu, eu possa ser livrado destes cem anos de servidão e, ao invés disso, me torne um aliado de sua linhagem, porquanto ela, e a minha própria, durarem.
— Oho! Então acredita que possa se tornar mais forte do que eu? — O monarca disse, uma pressão esmagadora emanando de seu corpo ao passo que sua aura oceânica surgia novamente, o espaço se convertendo no profundo abismo dos mares.
— Eu não acredito — Lucet respondeu, seu corpo relaxado como se nada estivesse acontecendo — Eu tenho absoluta certeza disso!
No que ele disse isso, seu próprio corpo irrompeu com luz e sombras cinzentas que logo se lacearam em torno do corpo dele e, por uma mísera fração de segundo, uma ilusão de uma armadura dourada e negra surgiu e se cravou na memória do monarca.
“Ainda só uma projeção… Mas tem força o bastante para me pressionar um pouco… Se ele desenvolver este poder, um dia realmente pode vir a me superar… Heh! Um verdadeiro achado!”
Mal contendo seu entusiasmo, o monarca então sorriu largamente.
— Pois bem, Lucet — Lucis disse, jogando o papel que agora continha uma gota de sangue ao fundo, numa linha branca designada — Aceito seus termos e seu desafio! Aguardarei ansiosamente por este dia.
Lucet riu e então mordeu o dedo, extraindo uma gota de sangue e pingando logo abaixo da gota de Lucis. O papel então começou a queimar com chamas escarlates e se desfez, as cinzas brilharam e se dividiram em duas porções que dispararam na direção dos dois e os atingiram nas mãos onde, por um breve instante, um símbolo de uma balança surgiu e desapareceu.