Os Contos de Anima - Capítulo 45
Aliviada com a boa disposição do garoto ao cumprimentá-la, e especialmente ver a tamanha rapidez com que pode se recompor naquele momento, Kaella soltou um leve folêgo angustiado que retia em seu peito e relaxou, sorrindo com uma alegria radiante.
— Não exatamente dormi, criança — Ela respondeu, seus olhos brilhando com ainda mais luz que o normal graças aos raios de luz da manhã que já inundavam o quarto — Depois do seu retorno ontem, e especialmente após o seu acordo com Lucis, tive muito o que preparar para hoje. Muitos relatórios a escrever, provisões para alocar, os reforços da arena de exibição para o combate de hoje, o preparo da equipe médica em caso de emergências e também o alocamento de alguns equipamentos de captura e analise de imagem.
— Captura de imagem? Você vai gravar o combate? — Lucet questionou.
— Sim — Kaella respondeu com um aceno da cabeça — Depois destes anos que passou em coma, seu corpo foi imensamento fortalecido graças ao encontro com Faerthalux e os recursos dos alfae e por isso, obviamente seu corpo estará desacostumado com sua força.
— Ah! — Lucet exclamou com súbita compreensão — Vai capturar as imagens da luta para que possa traçar um novo plano de treinamento?
Kaella sorriu ao acenar mais uma vez com a cabeça enquanto cruzava seus braços a frente de si. Lucet a observou por alguns instantes e não pode deixar de notar o quão bela a mulher lhe parecia. Após os anos em coma, seus sentidos ainda estavam um pouco desordenados devido o ampliar de suas capacidades, mas ainda assim, ele era capaz de notar que não apenas ela havia se banhado, como também parecia dezenas de vezes mais relaxada do que no momento em que ele acabara de despertar.
Ele conseguia sentir um aroma floral vindo da alfae, como também conseguia notar em seu rosto a suavidade de sua pele que agora parecia ter mais vitalidade. Sua sensibilidade a magia da mulher também havia aumentado ao passo de que conseguia ter leves impressões do que ela sentia apenas pela fluxo breve de mana que ela exibia sem notar e, quando ele se esforçou um pouco mais, conseguiu ouvir os batimentos lentos e controlados de sua mãe que parecia tentar ao máximo se manter calma.
Repentinamente, Lucet sentiu um leve zunir em seus ouvidos e sua visão tremeu violentamente, entrando e saindo de foco diversas vezes em questão de segundos. O mundo parecia não ter mais gravidade enquanto o garoto sentia seu corpo flutuar, sua visão repleta de pontos de luz e runas estranhamente familiares que ele ainda não conseguia decifrar. Sua cabeça doía e pesava como se estivesse tentando segurar um rochedo acima de si.
Lançando sua mão na parede em busca de apoio, Lucet cambaleou e se segurou com toda força que ainda conseguia invocar no braço para se manter de pé. Ele se sentia nauseado a essa altura e estava prestes a devolver o alimento do dia anterior quando a aura cinzenta de sua mana correu pelo seu corpo, e o sustentou, acalmando seus sentidos a força enquanto ele procurava se estabilizar ao tomar grandes folêgos.
— Lucet! — Kaella exclamou quando disparou em sua direção instantes antes dele escorregar da parede e quase ir ao chão de joelhos, agarrando-lhe pelo braço e o apoiando sob seus ombros, imediatamente circulando sua própria aura e penetrando o corpo do garoto para verificar sua condição fisica — Como está se sentindo? O que aconteceu?
— Eu.. — ele disse um tanto zonzo, sua visão rodopiando — Eu não… Sei… Cabeça tá doendo, pesada demais… Visão girando, ouvido zunindo… Corpo leve demais…Não consigo ficar de pé.
Seu folêgo se tornava cada vez mais trabalhado enquanto ele tentava recuperar suas forças e sentidos. Mesmo que com o reforço da mana que amenizava o problema, os efeitos de o que fosse que estava acontecendo só pioravam a cada instante. Ele tentou usar, ainda que rudimentarmente, o poder de sua aura da fé para ajudar no controle do problema, mas se viu incapaz de acessá-lo como fizera anteriormente.
“Droga!” Xingou “O que está acontecendo comigo? Não consigo me concentrar e tô sem acesso a minha aura da fé, será que estou sendo atacado?”
Kaella, imaginando a mesma possibilidade, contatou em instantes os guardas e escaneou os sensores para todo tipo de ataque, mas, para seu desapontamento, não encontrou qualquer tipo de rastro ofensivo e por tal, foi forçada a reconhecer que o problema estava no próprio Lucet, mesmo que ela não tenha sido capaz de identificar qualquer espécie de problema quando o escaneou com sua mana.
A alfae então prosseguiu para levar o garoto de volta para a cama, ajudando-o a se deitar. Apesar do uso de diversas ferramentas nos próximos trinta minutos, além do auxilio externo dos alfae especializados em cura da corte real, ainda assim, nenhum problema especifico pode ser identificado por mais que procurassem, todos os resultados apontando que Lucet estava em perfeito estado e que não havia qualquer rastro que fosse de uma doença, magia ou maldição aplicada a ele.
O aparência do garoto se tornava cada vez mais pálida e sua presença parecia se tornar cada vez mais fraca, apesar dos indicadores que diziam que ele estava sofrendo de um efeito justamente oposto, que ele estava se tornando progressivamente mais forte com o passar dos minutos. Eventualmente, Lucet desmaiou e entrou num sono estranho, onde alguém muito familiar lhe esperava.
Mais uma vez ele se via num espaço luminoso onde seu corpo se sentia leve e sua mente veloz, porém, diferente do espaço ilimitado de Faerthalux, ele se encontrava não num mar de luzes infindáveis, mas numa sala branco dourada vazia com apenas uma silhueta humanóide o esperando logo no centro.
A sala em si era relativamente grande, de um tamanho muito similar ao da arena construída por Maximillian no torneio dos mestres. Ainda que confuso, Lucet não teve outra escolha a não ser caminhar até a figura luminosa para lhe questionar sobre o que estava acontecendo.
Alguns momentos depois, o garoto se viu de frente com a figura humanóide. Diferente de Faerthalux, a figura não tinha qualquer expressão facial e poderia facilmente ser chamada de marionete ou manequim pela sua falta de caracteristicas faciais.
Lucet estava prestes a questionar a figura quando a própria tomou a iniciativa de se mover. Primeiramente ela dobrou suas costas até que se curvasse em noventa graus, e após esse gesto, se ergueu novamente e uma aura dourada e branca radiante na forma de chama surgiu ao redor de seu corpo por um instante, apenas para depois de transformar numa armadura leve.
O manequim luminoso agora trajava uma armadura de couro extremamente realista feita da aura dourada, empunhando duas adagas douradas enquanto assumia uma posição de luta. Lucet instantaneamente se alarmou e deu um salto para trás, igualmente assumindo posição de combate e circulando sua mana num preparo para o conflito prestes a acontecer.
O que o garoto não esperava era a mensagem que ecoou no espaço segundo depois, além de descobrir que sua mana foi completamente supressa ao ponto de ser incapaz de circular um milimetro que fosse dentro do seu corpo.
“Derrote-o e obtenha a formula do primeiro estágio do seu treinamento. Use apenas sua aura para vencer.”
A voz era a de Faerthalux. Lucet esperava que fosse demorar mais tempo para que fosse revelado o metodo de seu treinamento, e também desejava que recebesse todo o conteúdo de uma vez só, mas, como diz o ditado, “O homem planeja e deus desfaz”, e assim, o garoto recebeu mais rápido do que esperava, mas, fragmentado ao contrário dos seus desejos.
Impedido de usar sua mana, ele se viu forçado o poder com qual não era nada familiar, e ainda por cima, não tinha qualquer noção de como usar ofensivamente, enquanto que a figura luminosa não apenas estava totalmente trajada, como também empunhava duas adagas enquanto ele se via desarmado.
— Ai mer..
Antes mesmo que ele pudesse terminar de reclamar, ele viu a figura se mover para dar um passo. Lucet ergueu sua guarda o melhor que podia e ativou sua aura, moldando-a para formar a armadura dourada em volta do seu braço, apenas para, antes mesmo que percebesse, se visse olhando para o teto da sala com uma grande dor em seu braço enquanto sentia a armadura vibrar com um impacto desconhecido e buscava o folêgo que tinha sido empurrado para fora de seus pulmões.
Seus olhos correram a sala rápidamente buscando seu oponente que, para sua surpresa, logo encontrou exatamente na posição onde ele estava instantes antes. A figura mais uma vez se moveu para dar um passo, movimento esse que Lucet mal teve tempo de responder pois ainda tossia e apenas foi capaz de se encolher numa posição fetal e erguer seu braço afim de transferir toda a energia usada na armadura para conjurar o escudo que, apesar de estar sem o reforço da mana das sombras, ainda foi capaz de aparecer com força o suficiente para parecer minimamente realista e gerar o domo luminoso a sua volta que, felizmente, o protegeu do próximo ataque que veio de cima.
KLANG!
O som metálico do impacto ecoou pelo espaço enquanto Lucet sentiu o chão abaixo de si rachar com a força do golpe. No instante do impacto, devido ao medo e sua condição enfraquecida, o garoto havia fechado os olhos e se preparado para a “morte”, mas, quando ele os abriu, não apenas descobriu que ele estava intacto pois o escudo fora capaz de resistir toda a força do ataque, como também, viu algo que o deixou confuso.
Devido a sua posição, a primeira coisa que viu quando abriu os olhos foi o chão. Inicialmente, quando recebera o golpe inicial que o levou ao chão, não teve a oportunidade de ver, mas agora que estava deitado e o oponente ainda estava ocupando golpeando seu escudo, ele pode ver que atrás dele havia um rastro de alguns metros de chão derretido que ainda flamejava com chamas brancas, seguido de um breve espaço de chão antes de dar lugar a mais alguns metros de chão derretido.
Quando calculou a distância, logo percebeu que o ponto de chão branco entre os rastros derretidos era o espaço onde ele estava inicialmente, o espaço derretido mais distante foi o resultado do primeiro ataque da manequim enquanto o rastro derretido mais próximo era o resultado do segundo ataque.
“O que foi isso?” Ele pensou, sons de colisão metalica constantemente ecoando em seus ouvidos “Como foi que ele me atacou tão rápido!? Ele se teleportou? Não… Teleporte não deixaria um rastro desses… Deve ter sido alguma técnica de movimento, mas… Que técnica foi essa? Pensa Lucet! Pensa!”
Lucet pensou em se distanciar, porém, antes que puder agir, a figura tinha desaparecido. O garoto não perdeu tempo e procurou um rastro no chão, rapidamente encontrando a figura no final do dele, um pouco a noroeste de si. Por segurança, ele decidiu manter sua posição e seu escudo ativo para que pudesse observar a técnica de movimento.
A figura então deu outro passo e desapareceu de vista. Alarmado, Lucet tensionou seu corpo e se preparou para o impacto, mas, ao invés do som metálico de colisão, tudo que ele ouviu ao invés disso foi o barulho de chamas constantemente irrompendo, e quando ele se deu conta, ficou impressionado.
O manequim luminoso estava executando a técnica constantemente na forma de um quadrado, e assim, Lucet finalmente entendeu o propósito deste espaço. Ele não iria simplesmente derrotar a manequim e obter a formula, não, na verdade aqui era o espaço onde ele deveria aprender a técnica através da demonstração, desta maneira, ele não apenas compreenderia o funcionamento e o poder da técnica, mas também suas limitações, fraquezas e como derrotá-la para que, quando ele mesmo utilizasse, fosse capaz de contornar estes problemas e utilizar a técnica ao máximo de seu potencial.
Um tanto inseguro ainda devido ao primeiro ataque, o garoto manteve o escudo ativo, mas, para que pudesse observar com mais clareza, ele se ergueu e se manteve de pé. Fazer isso aumentaria a área do escudo, e portanto, enfraqueceria um pouco a defesa, mas, Lucet tinha confiança de que suas defesas seriam capazes de segurar por tempo o bastante caso o manequim resolvesse atacar de surpresa, assim o permitindo agir de acordo.
Parecendo notar as ações do garoto, o manequim mudou seu padrão novamente, atacando e recuando com tamanha velocidade que quando Lucet se deu conta, três rachaduras onde a figura havia atacado surgiram quase simultaneamente ao passo que três rastro flamejantes surgiram no chão.
“Droga! É rapido demais! Como é que vou conseguir aprender isso!?” ele pensou alarmado ao passo que mais quatro rachaduras que tremeram todo o domo de luz surgiram “É quase instantâneo! Não consigo acompanhar com meus…. espera…Olhos?” Uma luz acendeu eu sua mente e, com um sorriso confiante, Lucet declarou num tom imperioso:
— Me entregue a verdade!
Uma familiar tinge de azul coloriu o mundo enquanto os movimentos da manequim começaram a desacelerar considerávelmente. O olho direito de Lucet pulsou ao passo que sua pupila se esticou verticalmente e cresceu em tamanho, a cor da iris em volta se tornando vermelho dourado.
Agora que conseguia observar com mais atenção, ainda não conseguia observar a figura completa do manequim, mas, podia ver um borrão branco se movendo em alta velocidade na sua direção, antes de retornar, dar um curto avanço e então se virar para atacar novamente. Neste meio tempo, o escudo já contava com quinze rachaduras distintas desde que os ataques começaram.
“Impressionante!” Ele pensou “Em menos de vinte segundos ele já atacou quinze vezes! E isso sem considerar o custo de movimento, o consumo de aura para gerar tal impulso com tanta frequência deve ser ridiculamente alto!”
Quando escaneou o borrão com seu olho, viu que ele tinha uma energia praticamente ilimitada, e por tal, mesmo com o consumo tão alto, poderia demonstrar quantas vezes fosse necessário, porém, Lucet não tinha noção de quanto tempo estava gastando nesse aprendizado, e como ele tinha ainda uma batalha a enfrentar, era melhor que ele resolvesse isso logo.
Ao estudar os movimentos da manequim, reparou que toda vez que o borrão acelerava, um brevissimo lampejo surgia no chão, e após uma distância fixa em linha reta, que ele calculou ser por volta de três metros, o lampejo surgia novamente indicando uma nova aceleração.
Após mais alguns momentos analisando a frequencia e padrão de movimento, Lucet reparou que o domo havia sido golpeado mais cinquenta vezes e estava prestes a se partir com o próximo ataque. Sabendo disso, o garoto rapidamente pensou e executou um plano para ver mais de perto como era produzido o lampejo que indicava a aceleração.
Ele viu o borrão branco disparar em sua direção e se preparou. Um eco metálico da colisão soou no ambiente e o domo de luz explodiu, porém, antes que as lâminas do manequim pudessem atingi-lo, Lucet as aguardava com seu próprio contra-ataque.
O garoto dobrou um dos joelhos e se posicionou atrás do seu escudo, encolhendo seu braço para perto do tronco e se apoiando no ombro para, no momento em que o domo se partiu, usar toda a força do seu corpo para se aproveitar da velocidade do oponente e desferir uma batida brutal contra o oponente, partindo suas adagas de luz e fazendo-o voar tal como ele fizera consigo no primeiro ataque.
Sem perder tempo, Lucet tirou o escudo da frente e focou toda a sua atenção na figura que já se reerguera e novamente se preparava para atacar após conjurar duas novas adagas de douradas. O mundo se tornara ainda mais azulado ao passo que o oponente parecia chegar cada vez mais próximo de uma velocidade facilmente observável e, neste exato instante, Lucet descobriu o segredo da aceleração.
O garoto viu que, no momento em que o manequim deu um passo para frente e seu pé encostou no chão, uma grande quantidade de aura foi concentrada na planta dos seus dois pés antes de ignificar dezenas de vezes numa fração de segundo e gerar um impulso tremendo que o acelerou direto reto em direção a ele.
Mesmo que sua percepção estivesse tão apurada, sua reação não conseguia acompanhar sua vontade, por isso, se viu forçado a subjugar a força com leveza e, ao invés de tentar erguer seu escudo para repetir o contra-ataque, optou por desviar ao virar seu tronco levemente para o lado em vista do seu conhecimento da trajetória do ataque de tal forma que, como esperado, as lâminas atravessaram o espaço no instante seguinte após ele acabar de retirar seu tronco daquela posição.
Lucet sorriu confiante e não perdeu a oportunidade quando o manequim se mostrou confuso por errar. Ele dispersou o escudo e agarrou a cabeça do manequim antes de saltar e lhe desferir uma joelhada na direção do centro de onde deveria estar o rosto, incorporando uma imitação da técnica de impulso com apenas um de seu pés ao ponto de que, no momento em que o golpe finalmente atingiu, o impacto foi tão forte que a cabeça da manequim explodiu numa chuva de fragmentos luminosos.
O garoto então pousou e sentiu um nome e descrição completa da técnica adentrarem sua mente e não pode deixar de rir enquanto o ambiente de treinamento e sua consciência começavam a escurecer.
— A Jornada de Mil Quilômetros: 1° Forma: Lâmpejo? — Ele repetiu o nome da técnica, rindo — Mas é claro que tinha que ser um nome assim!