Os Contos de Anima - Capítulo 46
A escuridão tomou conta da existência de Lucet enquanto ele desaparecia daquele espaço. Por um tempo incalculável seu corpo flutuou pelo vácuo, seus sentidos anulados enquanto a única certeza que ainda podia manter é que certamente ele continuava existindo.
Seus ouvidos apenas captavam o ensurdecedor silêncio daquela escuridão, seus olhos sequer estava aberto pois ele sentia que não havia nada que fosse possível de ver por ali. Sua boca se mantia fechada e suas narinas não funcionavam pois seus pulmões sequer tentava extrair ar daquele espaço enquanto seu corpo, apesar de suas melhores tentativas, se recusava a se mexer diante do peso esmagador que as trevas impunham sobre si.
Mas logo, os sintomas foram se dissipando um a um. Seus ouvidos já captavam um baixo som de respiração que parecia constrita, seu logo acompanhou o retorno e encheu sua mente com o aroma floral que ele prontamente reconheceu como sendo o de Kaella. Sem maiores demoras, seu corpo relaxou ao passo que sentia o peso colossal o libertar, e por fim, seus olhos reconheceram que suas funções haviam sido restauradas e instantaneamente se abriram, trazendo para si a imagem do teto do quarto onde havia se deitado antes de cair no abraço do inconsciente.
Por último, seus pulmões se encheram quando ele puxou o folêgo mais profundo que fora capaz e expirou com força. Lucet concentrou sua atenção para dentro de si e sentiu a conexão com sua mana, ordenando-a com sua vontade que se movesse, e tal como planejado, ela o fez com toda naturalidade, após isso, o garoto então tentou se conectar com a energia dourada dormente em seu sangue e a mesma prontamente se manifestou por um instante na forma de uma chama dourada em volta do seu corpo antes de receder para dentro de si, de acordo com sua vontade.
Vendo que tudo estava como deveria, se concentrou nas sensações do seu corpo. Sua força não lhe falhava e seus sentidos não o causava desconforto algum, portanto, lentamente se sentou e virou seus pés para fora da cama, respirou fundo mais uma vez e encostou-os no chão com cuidado antes de colocar peso neles e se erguer.
A tontura que o acometera mais cedo não veio e só então ele relaxou por completo, virando-se então para Kaella que o observava em silêncio com suas iris reluzindo e traços de mana circulando pelo seu corpo, dando sinais de que ela conjurara diversas magias de análise para monitorá-lo enquanto ele se erguia.
— Mãe — Ele disse com um leve sorriso no rosto — Está tudo bem agora, não precisa se preocupar.
— Certeza? — Kaella o respondeu incerta — Você estava bem após acordar e do nada você ficou naquele estado, o que me garante que isso não vai acontecer de novo?
— Porquê eu não estou pronto ainda para que aconteça de novo — Ele disse com um riso — O segundo presente de Faerthalux vem em partes, e se eu entendi corretamente, o que aconteceu hoje só irá acontecer novamente quando eu tiver dominado a porção que recebi e meu corpo estiver pronto receber a próxima porção.
— E quantas partes são ao todo? — Ela questionou, um tanto mais relaxada enquanto se aproximava dele — Quanto a parte que recebeu, qual exatamente é o seu propósito?
— Não sei, minha mente só foi socada com a versão completa, mas nem eu sei quantas partes serão ao total porque elas serão liberadas aos poucos e eu só saberei ai — Ele respondeu — Quanto ao que recebi…Bem, acredito que você terá uma boa surpresa na luta.
Lucet andou até a alfae e ambos se encontraram no pé da cama. Foi neste instante que o garoto finalmente começou a perceber algumas diferenças, não em sua mãe pois a juventude eterna dos alfae lhe garantia uma aparência imutável, mas em si mesmo.
Seu ponto de vista quase três anos atrás era de ter de erguer sua cabeça para olhar no rosto da mulher, mas agora, essa necessidade, apesar de ainda existir, era um tanto menor pois ele próprio havia crescido e estava mais alto. Ele então olhou para o chão e viu que seus pés e braço estavam maiores do que ele se lembrava, seus dedos mais alongados e, ele podia sentir, mais fortes.
Ele estava usando uma camiseta larga e uma calça, ambos do mesmo tecido macio e branco que só agora ele teve tempo de reparar o quão excepcionalmente suave eram. Se lembrou das roupas que costumava usar em Elysium e comparou-as com estas simples vestimentas, e logo viu a imensa diferença de qualidade.
Se antes ele usava roupas de boa qualidade, resistente e duráveis, o que ele estava usando agora era luxo em sua melhor definição. Sem precisar de muita observação, podia ver que essa roupa era, ainda que um pouco inferior, menos resistente e de usos mais restritos, de uma qualidade próxima ao do manto encantado que Kaella lhe dera tantos anos atrás como presente por ter se tornado seu aprendiz, além de ser também seu primeiro aniversário celebrado.
Lembrando dos treinos e tudo que aprendeu em Elysium, logo um assunto mais urgente surgiu em sua memória, e ele olhou para Kaella preocupado.
— Mãe… — ele disse, temeroso — Que horas são agora?
— Falta pouco mais de uma hora para meio — Ela respondeu — Porquê a pergunta?
— O desafio! — Ele exclamou — Eu fiquei desmaiado desde a primeira luz do dia até agora!? Fazem seis horas que eu desmaiei!
— Sim, não se preocupe — Ela respondeu com um sorriso — Depois que você desmaiou eu enviei um aviso a Lucis que você não iria devido a seu estado de saúde, então fique tranquilo, o desafio será feito em outra data quando tivermos certeza de sua recuperação completa.
Lucet, porém, chacoalhou a cabeça e disse.
— Não mãe — ele falou num tom mais firme — Não posso postergar esse desafio, eu já estou bem, avise-o que irei.
Uma expressão estranha tomou conta do rosto da alfae, uma de suas sobrancelhas arqueadas enquanto um pensamento em particular parecia circular sua mente.
— Porquê não adiar? Não acha melhor que seja capaz de lutar melhor quando estiver completamente recuperado?
— Você mesma me ensinou que serão raros os momentos que estaremos em condições perfeitas mãe — ele respondeu — Que na maioria do tempo estaremos apenas preparados e que muitas vezes o ágil pensamente vai ser o que nos salvará a vida. Se eu deixar que isso seja prorrogado, Lucis poderá tomar isso como um sinal de fraqueza e poderá usar isso como prerrogativa para alterar ou até mesmo anular o contrato, e isso eu não posso aceitar, o combate será hoje como combinado.
— Que peculiar… — Kaella murmurou.
Lucet com sua audição mais aguçada captou o murmurio e questionou.
— Peculiar?
— Sim — A alfae respondeu um tanto surpresa com a audição do garoto — Creio que essa sua resposta seja peculiar.
— Mas porquê? — Perguntou Lucet confuso — Não falei nada de estranho, falei?
— Não, sua resposta faz perfeito sentido — Ela o reassegurou — Faz tanto sentido que Lucis foi capaz de prevê-la e me disse que era isso que dirias caso acordasse a tempo de lutar quando o enviei a mensagem do seu estado, e por isso, ele o aguarda com seu desafiante na arena de exibição.
O garoto se sentiu perplexo. Por um lado, estava até um tanto orgulhoso de que fora reconhecido desta maneira por alguém tão poderoso quanto o monarca, mas, ao mesmo tempo, se sentiu um tanto irritado por ter sido “lido” com tanta facilidade pelo mesmo.
— Bem — Lucet respondeu com um meio sorriso torto — Não deixemos então vossa majestade esperando não?
Ele então começou a tirar sua camisa com alguma dificuldade. Kaella ofereceu ajuda, porém, ele apenas soltou um resmungo negativo e continuou por conta própria e, após alguns momentos, tirou a camisa por completo e disse um tanto esbaforido.
— Não adianta me ajudar agora mãe — ele falou enquanto jogava a camiseta na cama —Eu vou ter que me acostumar e me adaptar a realidade de ter apenas um braço.
Uma tinge de culpa surgiu na alfae enquanto seus olhos incosncientemente se viraram para o chão. Ela sabia que isso era resultado de sua insuficiência naquela luta fatidica quase três anos atrás, e por tal, se sentia responsável pelo ocorrido ao passo que Lucet, já notando essa espécie de pensamento na expressão da alfae, logo disse.
— Não se culpe por isso mãe — ele a assegurou colocando sua mão no ombro dela — Era impossível prever que ele seria tão forte, e vencer teria requerido um sacrificio, seja ele meu ou seu. Eu não me arrependo de ter perdido meu braço, afinal, você tá viva e é isso que me importa, sem contar que eu tenho certeza que daremos um jeito de adaptar minhas habilidades para tirar o máximo de proveito desta situação, porque no fim das contas, se existe alguém capaz de me guiar nisto, esse alguém só pode ser a grande guardiã de Lybra, a fortaleza de todo o conhecimento de Lumina, não?
Kaella não pode deixar de sorrir ao ouvir o garoto falando, os olhos deles se encontraram e, após alguns segundos, desataram a rir. Lucet, que acabara por se curvar enquanto ria, notou seu tronco e viu como o mesmo havia se alongado, fortificado e estava com sinais de definição, ainda que leves, além disso, ele olhou para seu braço e viu que o mesmo já começava a mostrar sinais de definição decorrente da musculatura que havia aumentado na região.
“Realmente não dá para subestimar os alfae quando se trata de magia” ele pensou, lembrando-se dos comentários de Kaella sobre a nutrição arcana que recebera enquanto estava em coma “E certamente a benção de Faerthalux teve seus impactos nisso” Ao se lembrar da sensação e dos comentários da figura no espaço luminoso.
Retirando de seu equipamento dimensional amarrado a sua cintura com um gesto de sua mão coberta de mana reluzente, Kaella entregou o cinto dimensional de Lucet e então disse.
— Suas coisas estão ai — ela falou, apontando para o cinto — Novas roupas já ajustadas para o seu tamanho e sua garra que foi reforjada para deixar a lâmina e o cabo mais longos em vista do seu crescimento, também deixei suas economias e substitui os ingredientes ao melhor de minhas habilidades tendo em vista que alguns só existiam em Elysium.
Neste momento, um sentimento quente fluiu do peito do garoto para todo o seu corpo e o fez sorrir sem perceber. Quase três anos o vigiando e cuidando da sua saúde, e ainda por cima cuidou do pouco que restara de seu equipamento e substituiu seus suprimentos, isso tudo não tinha como passar despercebido e, sem que fosse capaz de controlar, sentiu seus olhos ficarem embaçados instantes antes de sentir lágrimas quentes corrente por seu rosto enquanto uma careta de choro decorava seu semblante.
— Anda filho — Kaella disse, soltando um leve riso no processo — Já choramos o bastante nesse breve tempo que você acordou não? Temos mais o que fazer, então, vou sair do quarto enquanto você se apronta,e depois disso, te levarei até a arena.
— Certo — Ele concordou com um aceno antes de secar as lágrimas com seu pulso.
A alfae se retirou do quarto e deixou o garoto sozinho. Lucet tirou sua calça, ficando apenas com sua roupa de baixo e prontamente começou a executar sua rotina de feitiços de diários que a tanto já decorara enquanto vivia na floresta de Elysium.
Circulou sua mana sombria pelo corpo e logo uma nuvem de fumaça cinzenta tomou conta do quarto, obscurecendo sua imagem para que não fossem capaz de observar seus afazeres com tanta facilidade. Ele então utilizou um feitiço simples de purificação para limpar seu corpo da maneira mais completa possível, afinal, estava numa terra estranha, e também atrasado, e por isso, tomar banho era algo fora de questão.
Depois disso, ele ativou seu olho do tirano e análisou os items que retirou do cinto, conferindo suas qualidades e caracteristicas. Suas roupas, ele notou, haviam sido feitas de um material significativamente superior ao que usava em Elysium, coisa que ele julgou rapidamente ser obra de sua mãe pois sabia que ela ainda devia ter muito medo, porém, ao invés de localizar inúmeros feitiços protetores, viu que ela deixou as roupas, sejam elas de combate ou de uso casual, sem qualquer encantamento.
Ele sorriu e deu um leve aceno com a cabeça, concordando com a filosofia da alfae de que se ele queria ter poder, ele mesmo deveria adquiri-lo. Em sequência, Lucet guardou os items e deixou apenas as roupas de combate acompanhados da garra retrabalhada sobre a cama antes de se vestir. O garoto até conseguiu se vestir, ainda que com um pouco de dificuldade, mas foram nas tarefas que exigiam as duas mãos e uma habilidade minuciosa com as mesmas que sua ingenuidade e talento para manipulação arcana realmente se mostraram.
Após vestir sua camisa e calça, ele ainda tinha de colocar as botas e o cinto em seu corpo, coisa que geralmente ele faria com as duas mãos, mas, com a falta de uma, ele resolveu circular sua mana e controlá-la de forma que pequenas mãos surgissem rentes ao seu corpo para guiar os items e realizar as tarefas mais complexas.
Quando colocou as botas e as cobriu com mana, as pequenas mãos de mana cinzenta prontamente agarram as pontas dos cadarços e começaram a puxá-los por entre os buracos antes de dar um laço firme, em seguida, quando teve de colocar o cinto, ele segurou a fivela enquanto as diminutas mãos arrastavam o cinto por dentro das alças em sua calça antes de reencontrar a ponta com a fivela e firmar o cinto por ali.
Depois de tudo, ele agarrou a arma sobre a cama e a observou. O osso que servia de cabo estava mais detalhado e mais longo ao passo que a lâmina havia sido alongada e reforjada com materiais que aumentavam sua resistência e habilidade de corte, além de aumentar o tamanho total da lâmina e aproximá-la do tamanho de uma espada curta ao invés do tamanho de uma adaga, assim aumentando o alcance de seu ataque.
Ele cortou o ar algumas vezes para testar os efeitos da lâmina. Ela estava um pouco mais pesada, mas, com o aumento de sua força, isso não fazia qualquer diferença e ainda lhe dava um alcance maior de ataque. Lucet sabia que teria de praticar um pouco para se acostumar com o novo alcance e com o fato de que não teria o suporte de uma outra mão, mas, agora ele não tinha tempo para isso, o que o preocupava um pouco quando considerava o combate a seguir.
Lucet respirou fundo, checou mais uma vez seu estado fisico e seu equipamento antes de retrair a nuvem cinzenta e desativar o olho do tirano para então ir até a porta, deixando as roupas que usara dobradas um tanto desajeitadamente sobre a cama.
— Mãe, estou pronto — Ele disse ao abrir a porta e se deparar com Kaella.
A alfae também havia trocado de roupa. Antes ela usava um vestido lilás sem mangas, já agora, ela vestia sua classica vestimenta de combate de cores escuras, um manto negro sobre seus ombros e duas espadas curtas presas a suas coxas, seu cabelo brilhante e vermelho como um rubi amarrado num rabo de cavalo enquanto seus olhos violeta brilhavam com uma luz especialmente encantadora e hipnotizante ao passo que traços de sua aura negra como tinta corriam sobre eles, a figura de seu corpo treinado laceada com este poder que a fazia parecer como se fosse desaparecer numa explosão de fumaça.
— Vamos — Ela disse com uma expressão séria — Aparentemente Lucis achou que seria um bom entretenimento ver o combate de seu desafiante contra um garoto com uma fração da sua idade e tempo de treino, e por tal, anúnciou o combate para o povo de Alta Lustra, o que atraiu um bom público.
— Ai que ótimo — Lucet resmungou — Humilhação pública. Ele ainda vai me pagar por isso.
— Não são muitos que tem a coragem de dizer o que você disse, criança — Kaella riu — Sugiro que não o repita diante do público, especialmente aqui em Alta Lustra.
— Ah não me importo — Lucet retrucou — Ele que começou, se eu xingar ele, é o minimo de retribuição que ele merece.