Os Contos de Anima - Capítulo 49
Diferente da primeira derrota, que já havia espantado o público, a segunda tinha sido ainda mais assustadora. Como um garoto meio sangue aleijado havia derrotado dois guerreiros de elite da esquadra regia sem fazer qualquer imenso esforço aparente?
Para tornar ainda mais complexa a discussão, que espécie de técnica foi aquela em que primeiro ele desapareceu num clarão barulhento e depois desapareceu silenciosamente? Era possível que, tal como muitos dos espectadores especulavam, o garoto estava explorando uma nova técnica e usando o combate para aperfeiçoar seu uso dela?
Se fosse este o caso, somado ao fato de que ele estava acordado a apenas dois dias, que espécie de monstro era esse que conseguira desenvolver uma técnica destas? Será que o coma o permitiu criar isto enquanto sonhava? Tantas questões populavam a platéia silenciosa que por vários momentos, que por sinal foram muito utéis para Lucet que aproveitou o tempo para recuperar seu folêgo e retornar para uma posição próxima à original, eles simplesmente não tiveram escolha além de olhar o garoto em uma nova luz dezenas de vezes mais respeitosa do que antes.
— Impressionante, Lucet — O monarca súbitamente declarou com sua voz amplificada — Realmente impressionante! Em todos os meus anos de vida, ainda que estudasse a fundo os limites das artes arcanas, eu nunca vi uma técnica similar a sua.
Lucet não respondeu nada, apenas dando um sorriso triunfal enquanto ouvia o pronúnciamente e aproveitava este tempo para descansar seu corpo que já estava começando a protestar diante do esforço repetido do lampejo.
— Por alguns momentos pensei que fosse uma técnica relacionada a mana elemental do relâmpago ao considerar a tremenda velocidade, o clarão de luz e o estrondo gerado ao acelerar — Ele disse com um olhar de genuíno interesse — Porém, depois que você simplemente desapareceu tão rápido, até mesmo meus olhos não foram capazes de acompanhar sem o uso de alguns feitiços especificos — o monarca continuou, deliberando e atraindo mais e mais a atenção para as habilidades de Lucet — O que me impressionou ainda mais foi a segunda versão onde, sem fazer qualquer barulho ou liberar qualquer espécie de sinal luminoso, você executou esta técnica misteriosa que não deixou qualquer rastro de mana mas sim de aura da fé, isto sim me deixou muito curioso sobre a extensão e natureza de seus poderes criança.
Contrário, porém, a uma atitude de humildade que normalmente se esperaria numa situação como essa, Lucet ergueu seus olhos ao monarca e amplificou sua própria voz com mana antes de retrucar.
— Me poupe de seus elogios vazios, “Vossa Majestade” — ele disse com uma tinge de frieza e raiva em sua voz — Não foi para esse propósito que resolveu criar este “evento” sem me avisar?
O monarca gargalhou enquanto o povo olhava para o garoto com uma mistura de confusão e indignação em suas mentes. Como era que aquele garoto ousava falar daquela maneira com o rei dos alfae, especialmente em Alta Lustra? E porque é que o rei ainda não o tinha reduzido a pó? Mesmo sendo um discípulo da guardiã, até mesmo ela deve saber que tal insolência não seria tolerada, não?
Vendo que o monarca não tinha mais nada para pronúnciar, Lucet se virou então para os três combatentes restantes ao passo que uma equipe de paramédicos recolhia apressadamente o corpo do alfae trajado em escarlate que estava desmaiado a alguns metros deles.
— Bem — Lucet disse ao suspirar, um leve risinho ecoando no final — Quem será o próximo? O segundo oponente certamente foi honrado, ainda que falasse um pouco demais.
Sem dar uma resposta ou se dignificar a pronúnciar uma palavra que fosse, a alfae trajada em preto com um arco em seu ombro avançou e prontamente sacou seu arco, rápidamente carregando uma flecha enquanto seu rosto permanecia inespressivo.
O plano inicial de Lucet quando ele viu seu oponente sacando o arco era, como faria qualquer um que sabe como arcos funcionam, simplesmente se mexer fazendo com que fosse muito mais dificil para o oponente mirar nele, porém, quando a fecha foi carregada, o garoto teve uma sensação de estar diante de um projétil inescapável e se sentiu pressionado.
Ele já havia gasto dois treços de sua aura da fé com o teste e aperfeiçoamento do lampejo, e por tal, decidiu que não seria uma boa escolha usar o escudo dourado para se defender pois mantê-lo custava quase tanta energia quanto o lâmpejo em sua forma estrondosa.
Liberando sua energia sombria, Lucet sacou sua adaga e adotou uma postura de combate um pouco mais baixa enquanto revestia o corpo com sombras e as manipulava para formarem pequenas mãos em volta de cada superficie possível.
A corda do arco já havia retesado ao limite e a alfae trajada em negro brilhou com uma aura azul elétrica por um mero instante antes de concentrar o poder na flecha que começou a vibrar e relampear com pequenos arcos elétricos que escapavam de seu corpo metálico. A alfae então disse numa voz baixa que Lucet quase não pode captar:
— [Tormenta Gungnir], armar matriz.
O ar zuniu por um instante e então, a flecha desapareceu. Lucet ficou confuso ao ver o fenômeno, mas, sua confusão não teve muito tempo de ser expandida porque logo em seguida um grande círculo mágico surgiu nos céus da arena, cobrindo toda a extensão do campo de batalha.
“Isso ai não pode ser bom!” ele pensou, sua mão tensionando em volta do cabo da garra, pronto para agir.
O circulo tremeluziu e então brilhou com uma intensidade tamanha que forçou Lucet a cobrir os olhos com sua mão para proteger a vista, isto porém era exatamente o que a alfae esperava que ele fizesse, pois, no momento em que ele fechou os olhos apressadamente e os cobriu com o braço, o grande círculo se desfez e deu lugar a uma centena de vórtices azulados dos quais pontas de flechas feitas de eletricidade apareciam lentamente, todos se ajustando para mirar seu disparo na direção de Lucet.
Sem poder enxergar, Lucet instintivamente focou sua atenção no que podia ouvir e, graças a isso, pode agir quando sua audição aguçada captou a voz suave e baixa da alfae mais uma vez.
— Disparar, 10 por 10.
O garoto ouviu múltiplos sons como o de trovões e sentiu um grande perigo. Sem escolha, Lucet concentrou aura da fé em seus pés e executou o lâmpejo, desaparecendo ao dar um passo e reaparecendo três metros a esquerda no exato momento que pôde ver em sua posição original dez flechas elétricas atingiram e explodiram, quebrando o solo e atirando fragmentos de rocha em todas as direções.
Felizmente, o impacto secundário foi muito menor que o primário, e portanto, Lucet apenas bateu um pé coberto de mana sombria no chão, erguendo uma barreira de pedra para se defender dos fragmentos. Sem tempo de respirar ou pensar num plano, Lucet outra vez sentiu uma pressão vinda do céu e não teve escolha além de desaparecer mais uma vez com o lâmpejo instantes antes de mais uma saraivada de flechas elétricas explosivas atingir sua posição anterior.
No momento em que ele reapareceu três metros ao sul, ele prontamente ergueu uma barreira de rocha para se defender dos estilhaços e rápidamente irrompeu com energia sombria, quase instantaneamente cobrindo todo o chão da arena com um manto de névoa cinzenta. Ele então tocou sua mana sombria com a mana natural presente no solo e a estimulou, fazendo com que em questão de segundos vários rochedos inclinados em ângulos e direções diferentes se erguessem por todo o campo.
Mais uma vez, Lucet sentiu a pressão inescapavel das flechas e foi forçado a usar o lampejo uma terceira vez para escapar dali e reaparecer a três metros ao leste, erguendo mais uma barreira de pedra para se defender dos estilhaços. Ele respirou fundo e então virou seus sentidos para o manto de sombras que tinha espalhado pelo chão da arena.
Rapidamente ele memorizou todos os pontos onde os rochedos haviam criado sombras e retraiu sua energia instantes antes de se conectar com o plano das sombras e executar o passo do corvo, reaparecendo nas sombras de um rochedo exatamente no fim da extensão oeste da arena meros instantes antes do local onde estava ser bombardeado por mais dez flechas elétricas que reduziram sua localização anterior a uma cratera enegrecida que zunia ocasionalmente e liberava pequenos arcos elétricos em sua extensão.
“Merda!” ele xingou enfurecido, “Aquelas malditas flechas tem mira automática e só estão me errando porque eu consigo escapar pelas sombras, se não fosse por isso, eu já teria sido severamente ferido, se não já tivesse morrido com esses ataques sanguinário! Honestamente, eu até entendo se me odiarem pelo que eu falei, mas eles estão querendo me matar no instante que eu cheguei aqui, que espécie de briga foi que eu comprei com eles sem saber?”
Lucet escaneou seus níveis de energia e viu que sua aura estava em níveis perigosamente baixos para seu gosto. Mesmo tendo aperfeiçoado seu uso do lâmpejo, ainda era muito custoso usá-lo, e por isso, ele havia calculado no início do combate que o máximo de vezes que lhe restavam do uso da técnica eram apenas sete, e agora, em menos de dois minutos, três desses usos já haviam sido gastos.
Já sua mana estava, apesar de considerávelmente melhor, ainda um pouco baixa. Conjurar o manto de sombras por si só já lhe custara um terço de sua energia, isso somado ao seu estimulo da mana natural, já lhe consumira por volta de metade de sua energia, o que o preocupava.
“Até agora só estou na defensiva” ele pensou, “Se eu continuar recuando como estou, irei exaurir toda minha força e não conseguirei atacá-la uma vez sequer…” ele suspirou e logo sentiu a pressão das flechas focando em si novamente “Já chega, hora de virar esse jogo!”
Lucet se conectou com o plano das sombras e mergulhou na escuridão, reaparecendo ao ponto mais ao sul do campo. Ele inspirou fundo, magnificou sua voz com sua mana e então bradou.
— Excelente combatente, Vossa Majestade — ele disse num tom carregado de irônia — Poder ofensivo esplendido. Honestamente, se eu não fosse um corvo e tivesse minha técnica secreta, eu provavelmente já teria morrido, aliás, você por um acaso mandou que me matassem aqui? Porque olha, se esse é o plano, devo dizer que tem sido um tremendo fracasso! — ele pontuou, gargalhando antes de se conectar com as sombras e desaparecer, escapando por um triz das dez flechas que atingiram sua posição anterior.
O garoto reapareceu em um rochedo mais próximo do centro e tomou um folêgo. “Caramba!” ele pensou, “Já foram quarenta dessas flechas! Isso não acaba não? Quantas ainda faltam?”, sem lhe dar tempo para pensar muito, a pressão mais uma vez travou sobre ele, ao que Lucet prontamente reagiu com um passo do corvo e desapareceu nas sombras, reaparecendo na sombra de um rochedo ao extremo norte do campo.
— É só isso que sabe fazer arqueira? — ele disse, amplificando sua voz no momento que ressurgiu — Dispara um único tiro mágico e então espera sentada enquanto suas flechas de mira automática fazem o resto do serviço por você? Espetácular exemplo de maestria, tch! Realmente digna do treinamento do seu precioso rei.
A alfae não ofereceu qualquer resposta para Lucet mas, logo ele conseguiu captar um novo comando dela quando ouviu uma sequência de nove sons de flechas sendo disparadas.
— Disparo total, travar alvo, elevações acima do nível do solo.
“Maldita! Porque que eu fui abrir minha boca! Agora não me resta escolha!” ele pensou assustado com a súbita fúria da oponente.
Lucet rápidamente decifrou o intuito da alfae e desapareceu nas sombras, reaparecendo mais próximo do centro da arena que conseguira. Ele então pisoteou o chão e usou sua mana sombria para cavar um buraco o mais fundo e mais rápido que conseguira antes de entrar nele, se encolher numa posição fetal com as pernas e braço virados para cima e então projetar o escudo dourado diretamente acima de si, laceando-o com energia sombria e trazendo-a forma mais resistente que o garoto era capaz de conjurar até então, envolvendo-o com o domo dourado.
O céu acima da arena brilhava como numa tempestade com centenas de relâmpagos irrompendo com energia. Centenas de vórtices azulados carregados de energia contendo pontas de flechas feitos de eletricidade surgiram no ar, cada qual mirando em seu próprio alvo e, segundos depois, toda arena brilhou e tremeu com as centenas de explosões elétricas que dizimaram e reduziram a crateras todas os rochedos que Lucet havia erguido com sua magia, incluindo obviamente aquele que estava logo acima dele e de suas proteções.
As flechas que cairam em sua posição facilmente atravessaram a rocha e bateram contra o escudo e o domo, explodindo ao redor de si e fazendo suas melhores proteções tremerem e racharem. Por vários minutos as flechas choveram sobre o campo, dizimando a terra e tornando o campo numa terra desolado e repleta de arcos elétricos que salteavam por entre as crateras enegrecidas que fumegavam com nuvens azul escuro.
Preso debaixo da terra enquanto suas forças eram drenadas pelo ataque feroz da oponente, Lucet não teve outra opção além de concentrar todo seu poder em defender e aguardar que a saraivada de ataques cessasse. Um tempo depois, as explosões finalmente terminaram e Lucet abriu os olhos, se vendo dentro de uma profunda cratera enquanto seu escudo e domo protetor estavam prestes a dissipar.
Ele desfez a defesa e se ergueu antes de juntar mana em seus pés e dar um passo, manipulando a terra para erguê-lo até o nível do solo. Ao surgir a alguns metros de distância da alfae, a mesma o olhou com uma evidente descrença em seus olhos. Ele disfarçou o cansaço e deu uma risada enquanto dava alguns tapas em sua roupa.
— O que foi? Achou que ia me matar assim tão fácil? — ele zombou — Admito que seu ataque foi bem poderoso, mas, ainda não foi o suficiente para me derrubar, além do mais, não achou que ficaria na vantagem para sempre né?
Lucet aproveitou o breve tempo de descrença e choque da oponente e recuperou seu folêgo antes de analisar o gasto de sua energia. Sua mana havia compensado grande parte do gasto de aura, e por tal, agora se encontrava com apenas um quinto de sua energia total remanescente, quanto a sua aura, ele agora só tinha energia o suficiente para o usar o lampejo mais duas vezes.
“Tch! Gastei energia demais com isso!” ele pensou e então antes de murmurar e ativar o olho do tirano, prontamente analisando os níveis de energia da oponente a luz do filtro azulado que cobria o mundo. Ao ver os níveis de mana restantes na oponente, Lucet quase não foi capaz de conter seu riso e acabou por dar um sorriso meio torto com o canto da boca.
A oponente mal tinha energia para se manter de pé. Os ataques dela foram certamente devastadores, mas, eles cobravam um preço proporcional, e como ele fora atingido com apenas uma porção deles, sua energia foi capaz de suprir o custo de suas defesas. Lucet então desativou o olho do tirano e a fitou com um olhar cheio de significados ao declarar algo que deixou a alfae especialmente frustrada por não ser mais capaz de retrucá-lo.
— E então? Não vai me dizer nada como seus outros companheiros? — ele provocou — Ah não! Espera…Você mal tá conseguindo ficar de pé não é? Vai desistir ou vai me fazer te nocautear?
Lucet deu um leve salto e saiu do espaço da cratera, caminhando então na direção da alfae que permanecia no único espaço do campo que não havia sido completamente demolido pelos ataques. Ele sorriu para os outros dois alfae que não podiam interferir e então, passo a passo, finalmente chegou em frente a alfae. Ela, porém, era inteligente e sabia quais batalhas lutar, portanto, logo apenas chacoalhou a cabeça e então se virou, caminhando lentamente de volta para seu grupo, sentando em sua posição original e fechando seus olhos, declarando com suas ações que havia se rendido.