Os Contos de Anima - Capítulo 4
Quando começou o dia e preparou seu material para lecionar, Kaella jamais poderia imaginar que ao dar a primeira aula do ano encontraria alguém tão interessante. Já fazia cinquenta anos que morava em Elysium desde que fora convidada para fazer parte do corpo docente de Anansi. O lugar era um projeto dos moradores para aprimorar as relações das diferentes raças que habitavam a vila. O objetivo era ensinar os cidadãos desde sua infância os ideais de respeito sob os quais Elysium havia sido criada, além de, óbviamente, propagar o conhecimento dos mestres que se recusam a viver em qualquer outro lugar, assim assegurando que este conhecimento não seria perdido com sua morte ou ficaria guardado em uma estante empoeirada por longos e infindáveis anos até que as traças devorassem o legados dos longos anos de esforço destes seres.
Estes mestres, tais como a própria elfa, eram renomados no mundo por suas grandes contribuições e feitos, sejam eles militares, científicos ou criativos. Ela, ao ser convida, sentiu que era uma excelente oportunidade de passar adiante seu conhecimento e até mesmo, caso surgisse um adequado, treinar um sucessor que pudesse levar seu legado adiante e expandir as ideias que criou com uma nova perspectiva.
Mas até aquele momento, seja Alfae, Faeram, Gnoma ou Humano, absolutamente nenhum deles mostrou nem o mínimo que fosse do que ela mais prezava, o desejo puro pelo conhecimento e uma vontade ferrenha pelo desenvolvimento. Ela aceitou instruir crianças pois era por volta dessa época que elas geralmente demonstravam verdadeiro interesse no aprendizado e no conhecimento, mas, seja talvez pelo alto conforto de Elysium ou pelos ensinamentos dos pais, nenhum dos alunos que encontrara até aquele momento havia demonstrado nem um por cento do que ela esperava.
A Guardiã de Lybra. Era dessa maneira que Kaella era conhecida pelo mundo. A mestra da terceira geração de uma linhagem de cinco mil anos de preservação histórica que descendia de outros dois ilustres Alfae que recebiam o mesmo título.
Graças a longevidade potencialmente ilimitada da espécie, milênios atrás, o então monarca dos Alfae apontou a um de seus subordinados a posição de historiador mestre. Ele ordenou que viajasse por Anima e gravasse com seus olhos e habilidades a história do mundo para acumular conhecimento, assim prevenindo potenciais futuros desastres. Eventualmente, através dos esforços de múltiplos historiadores e seu líder, o primeiro Guardião, a organização Lybra de preservação histórica foi criada, contendo informações de todos os cantos do mundo. Com os anos, intervenções na prevenção de grandes catástrofes e no combate das mesmas, a reputação da Lybra cresceu e acumulou um prestígio inabalável. Tão grande se tornou sua relevância e presença que seus representantes acabaram sendo beneficiados com diversos privilégios e responsabilidades, muitas vezes adquirindo cargos honorários de e atuando como juízes em numerosas disputas devido a sua renomada imparcialidade.
Como a 3.ª mestra da Lybra, era quase garantido que ela receberia o convite para participar do desenvolvimento de Elysium. Quando o recebeu ela ficou feliz em aceitar, afinal, até então os representantes da organização haviam solicitado a entrada e pesquisa do local inúmeras vezes apenas para serem recusados. Ao finalmente adentrar a comunidade, ela tinha esperanças de encontrar alguém que fosse adequado, mas, ao passar dos anos, a Alfae se viu severamente desapontada pois todos que passavam por suas classes de história e costumes, ou pelo menos, a grande maioria deles, alcançavam apenas um mínimo de aprendizado necessário, passando muitas vezes grande parte do tempo dormindo. Mas, felizmente, haviam exceções que surgiam na forma de um ou outro aluno que realmente se interessava pela coisa e acabava seguindo uma carreira na área, às vezes até mesmo recebendo cartas de recomendação dela para ingressar diretamente na Lybra após o término de seus estudos.
Essa rotina, porém, era muito frustrante para ela que tinha o objetivo de encontrar um discípulo, ou ao menos seria pois neste instante ela acabara de achar aquilo que gastou boa parte dos últimos cinquenta anos. Lucet, esta criança humana de olhos determinados a saber e que absolutamente se recusava a ser um ninguém, isto era algo que poderia considerar como digno do legado que ela desejava transferir.
— Filhote humano, como já disse, existem métodos para testar o potencial e a afinidade de indivíduos com as grandes artes — ela continuou — Existem testes que usam as capacidades mentais, as físicas e até mesmos as espirituais. Mas como não temos a estrutura preparada para isso no momento, o que posso fazer é um teste mais antigo que vai testar sua afinidade com as artes arcanas e suas características essenciais. Elas sendo: sua afinidade geral com a mana, a natureza prática dela e sua afinidade elemental.
Ela então balançou seu dedo indicador que brilhou momentaneamente com a cor azul. Uma bolsa que estava ao pé de sua cadeira então cintilou e saltou do chão, rapidamente aterrizando na mão aberta da elfa. A bolsa tinha o formato de um saco, mas como era feita de um material estranho, escuro e muito lustroso, Lucet que observava não teve a coragem de dizer que era um simples saco.
Ao abrir, a bolsa emitiu uma breve luz. O garoto ficou na ponta dos pés para tentar enxergar o conteúdo reluzente, porém, nem de longe tinha altura o bastante para alcançar sequer as mãos da mulher. Kaella inseriu a mão dentro da bolsa e mexeu dentro dele por alguns instantes.
O saco em si era pequeno, e ao ver a elfa colocar a mão dentro, Lucet teve a impressão de que a mão havia desaparecido. A busca demorou vários instantes, e o garoto apenas fitava o saco escuro, imaginando o que exatamente havia nele que poderia demorar tanto para se retirar enquanto observava o pulso da mulher girar e se mexer enquanto buscava. Mas, a pergunta que o garoto não conseguia ignorar era que se havia tanta coisa que era necessário demorar tanto, qual era o tamanho real do espaço dentro daquela bolsa escura?
Kaella então retirou sua mão, e nela havia uma caixa branca retangular com símbolos, círculos e linhas marcadas ao longo dela na cor preta. Ela colocou a caixa sobre a mesa e o saco lustroso sobre a cadeira e então se virou para o garoto.
— Este é um teste usado pelos Alfae desde muito antes de dominarem o continente luminoso. Ele serve para determinar a carreira provável de suas crianças dias após seu nascimento — ela explicou, apontando para a caixa — E por muito tempo os Alfae acreditavam que esse cristal determinava o potencial absoluto de cada um, mas, com o desenvolvimento tecnológico e centenas de anos de pesquisa, foi descoberto que apenas mede a capacidade atual, e não a absoluta, portanto, independente do resultado, saiba que não é definitivo, e que você pode melhorar suas afinidades com esforço e treinamento.
Ela pegou a caixa com uma das mãos e pousou a outra sobre os símbolos negros, sua mão pálida com seus longos dedos pálidos reluzindo, cada um posicionado em um símbolo diferente, com seu dedão posto sobre a fecho que mantinha a caixa selada. Pouco a pouco, saindo a partir dos quatro símbolos onde repousavam os dedos reluzentes da elfa, uma luz começou a preencher os círculos em volta deles e então as linhas, lentamente tornando todas as linhas pretas em linhas azuis reluzentes. Um clique metálico soou na sala vazia e então a Alfae abriu a caixa, mostrando seu conteúdo para o garoto.
A caixa era forrada com um tecido carmesim, nela existia um curioso cilindro transparente com a ponta num formato piramidal. Enquanto a criança observava, ela não pode deixar de notar que aquilo parecia uma cenoura feita de cristal, só que mais fina e com certeza muito mais valiosa.
Notando o olhar questionador sobre o objeto que em breve ela sentia que tornaria sua atenção para si, Kaella tratou de explicar o que era antes mesmo que Lucet tivesse a chance perguntar.
— Esta é a lágrima de Mimir — disse ela, tomando o objeto em suas mãos — Este cristal possui a função de identificar, através de uma amostra sanguínea, a afinidade do indivíduo com a mana na natureza, o talento aplicado da mana e qual elemento da mana a pessoa tem maior conexão.
— Mas… instrutora Kaella — hesitou Lucet — Quando você diz amostra sanguínea, você quer dizer sangue? Você vai tirar sangue de mim? Vai doer? E o que é o talento aplicado e o elemento da mana?
— Bem, sim, para fazer este teste, terei que extrair um pouco de sangue, mas não se preocupe, o processo é quase indolor e a quantidade necessária não é nem de longe o bastante para lhe causar mal — ela respondeu — Quanto ao talento aplicado e ao elemento da mana, bem, isso já é um pouco mais complexo. O talento da mana, há grosso modo, é em qual área de aplicação da mana alguém consegue utilizar sua mana com mais eficiência.
— Área da mana? — ele questionou, curioso.
— Sim, todos os usuários da mana são denominados magos, porém, não existe apenas um tipo de mago — ela respondeu sorrindo — Existem magos que se especializam no reforço físico e combate corporal, outros no controle dos elementos, já outros preferem focar seus esforços nos usos medicinais da mana, enquanto outros mais raros, tais como os Gnoma, se especializam na aplicação de encantamentos ou, em casos ainda mais raro, na invocação de seres.
— Já o elemento da mana se refere a capacidade de utilizar um elemento específico em conjunto com a mana natural, tendo assim maior eficiência em algumas aplicações — ela explicou — Por exemplo, magos usuários da mana elemental da terra conseguem ser muito melhores em usos defensivos e no reforço corpóreo do que um mago usuário da mana elemental do vento, que são mais focados em usos evasivos e velocidade. Outro exemplo seria magos que utilizam a mana elemental do fogo, que são muito eficientes em usos puramente destrutivos do que magos que utilizam a mana elemental da vida, que tem o foco maior em usos medicinais.
Apesar de não entender completamente todos os termos, Lucet ficou ansioso. De acordo com que a elfa explicou, a magia era ainda mais complexa e mais interessante do que havia imaginado. Seus olhos, que antes brilhavam com determinação, agora pareciam chamas obstinadas carregando o ânimo inabalável que o motivava a se tornar um usuário das artes místicas, ou mais especificamente, da magia.
Se concentrando com toda sua força, Lucet não hesitou mais e esticou sua mão tremula. Seus olhos e rosto apertados em uma carranca que tentava de todas as maneiras desviar dos olhos da instrutora na busca de esconder o quão tenso ele se encontrava naquele momento. Apesar das palavras de Kaella ele ainda tinha medo da dor, afinal, até aquele momento nunca precisou tirar sangue voluntariamente e todas às vezes que sangrou foram de machucados, por isso, ele acabou associando o procedimento as dores das feridas. Ele então ofereceu a parte do braço onde achou que fosse doer menos para que ele pudesse resistir melhor e não passar vergonha quando qualquer dor que fosse vir o atingisse.
Com mãos velozes e treinadas, a elfa se moveu, espetando com destreza o objeto no braço estendido da criança. O garoto sentiu uma leve pressão na dobra de seu cotovelo quando a ponta piramidal atingiu sua pele antes de um objeto fino e gelado perfurá-la e provocar uma leve e efêmera sensação de ter seus músculos puxados naquela distinta direção.
Antes mesmo que ele pudesse notar qualquer dor ou soltar um ‘ai’, o objeto foi retirado e os dedos reluzentes da instrutora pressionaram a ferida por um instante, curando a ferida e removendo instantaneamente a dor. Tudo ocorrera tão rápido e com tanta precisão que nenhuma gota de sangue foi capaz de escapar, fazendo com que nenhuma sujeira tivesse a oportunidade de existir.
Lucet abriu seus olhos e a fitou descrente. Ele havia tensionado cada fibra do seu corpo e focado cada partícula de sua mente para resistir a dor. Porém, tudo que ele sentiu foram algumas pressões que nem mesmo foi capaz de processar antes de desaparecerem por completo. Mal conseguia acreditar que o ocorrido era real, mas, ao ver que o objeto previamente vazio e translúcido agora repousava novamente na caixa forrada de tecido carmesim contendo em seu interior um liquido vermelho, que o garoto prontamente notou ser o sangue recém extraído, ele ficou sem escolha a não ser acreditar.
— M-mas já? O que aconteceu? C-como é que foi tão rápido? Por que não doeu? — O garoto disparou, assustado.
A elfa gargalhou, fazendo as bochechas, as orelhas e o pescoço do garoto ficarem vermelhos feito tomates. Era tão curioso ver as reações da criança, tão divertido interagir com este pequeno! Era tão interessante que fazia com que sentisse cada vez mais que sua busca não fora em vão e que, apesar de inesperado, este humano era alguém digno de despertar seu sincero interesse.
— Como eu disse antes pequeno humano — ela sorriu gentilmente — Os Alfae utilizam essa ferramenta desde muito antes de serem um dos cinco grandes, e, apesar de provada sua falta de precisão absoluta, ainda assim continua sendo muito utilizada. Graças a minha profissão já fui convidada a utilizar esta ferramenta em diversas crianças de todas as raças, portanto, eu sei exatamente como fazer isso da maneira mais eficiente e menos dolorosa possível. Não é surpresa alguma que você não tenha sentido dor — ela riu — Surpresa seria se, depois de tantos anos de prática, eu não fosse capaz de enviar uma simples dorzinha como essa.
— Nossa… você deve ter feito isso por muito tempo né? — disse Lucet admirado — Aliás, instrutora, quantos anos você tem?
— Bem, tenho setecentos e oitenta e três anos atualmente — ela respondeu francamente, uma tinge de seriedade laceando sua voz — mas, tome cuidado ao perguntar isso para outras mulheres, criança.
— Por quê? — ele perguntou confuso.
— Com exceção das Alfae, mulheres geralmente são mais sensíveis com relação a suas idades, especialmente as humanas, portanto, não saia perguntando isso por aí do nada, okay?
— Entendi, não farei isso de novo — ele acenou com a cabeça.
Nesse instante, Kaella que ainda mantinha ocasionalmente o feitiço de leitura emocional ativo não pode conter seu riso quando viu os próximos pensamentos da criança.
“Setecentos e oitenta e três?!? Como assim? Eu sabia que os elfos viviam muito e sempre pareciam jovens, mas setecentos e oitenta e três anos?!? Caramba… ela é suuuuper velha…”
Crianças, por mais geniais que fossem, ainda eram crianças, a elfa concluiu num suspiro. Porém, ao ouvir o que veio a seguir, ela imediatamente retraiu seu pensamento, uma leve culpa tingindo suas emoções.
“Caramba… o que será que ela não sabe? Ela deve saber de tudo né? Será que ela já viu meus pais? Será que ela tem um jeito de trazer eles de volta? Será que dá para eu ver eles? Ah bem, pergunto isso depois, agora vou virar um mago! Tenho certeza!”
A elfa, por mais experiente e sabia que fosse, não foi capaz de reagir imediatamente a isso. Ela própria já estava viva a tanto tempo, já viu tantas mortes e tragédias, tantas famílias partidas, tantas crianças abandonadas ou negadas do conforto e da proteção de seus pais que isso já não pesava tanto em sua consciência, porém, ela nunca teve a oportunidade de interagir com uma de maneira tão pura e íntima. Ver as emoções e ouvir os pensamentos de um órfão direto em sua mente foi algo diferente, ainda mais para ela que nunca teve uma criança que pudesse chamar de seu sangue.
Antes que pudesse perceber ou conter, lágrimas surgiram no canto de seus olhos e logo rolaram por suas bochechas pálidas e afinadas. Lucet que a observava fixamente após seu riso reparou e não conseguiu resistir.
— Instrutora Kaella… está tudo bem? Por que está chorando?
Kaella rapidamente esfregou o rosto com as mãos repetidas vezes, fingindo ter uma coceira particularmente irritante.
— N..não é nada, só caiu algo nos meus olhos e tá coçando bastante — disse com um riso forçado em sua voz.
Lucet sentia que algo estava errado, mas até onde se lembrava não havia acontecido nada triste e ele também não tinha feito nada para aborrecer a elfa, portanto, resolveu ignorar sua intuição e apenas se contentou com as próximas palavras da elfa.
— Bem, que tal olharmos o resultado do seu teste hein?