Os Contos de Anima - Capítulo 69
Ambos Kaella e Lucet encaravam o velho sorridente com uma mistura de emoções, lembranças preenchendo suas mentes em instantes. Cada um a sua maneira, viu a última batalha de Elysium, o triste e catastrófico evento que levou ao fim do santuário, mas que ao mesmo tempo revelou o verdadeiro e assustador poderio de Puristas.
Com apenas uma centena de homens de um único esquadrão e a pontifícia, conseguiram trazer esta bela e científica sociedade aos joelhos, destruindo tudo que ali havia sido construído, deixando apenas uma gigantes cratera no lugar do que um dia fora a casa de tantas mentes brilhantes.
Os mestres e seus estudantes escaparam com vida, cada qual para o seu canto. Lucet e Kaella confrontaram o paladino Alexander e derrotaram a grande custo, deixando o garoto em coma por quase três anos e sem um braço. Naquele dia, porém, não fora apenas um de tristeza, mas também de um incrível combate onde, por mais que Puritas conseguisse a vitória final, não saíram sem pagar um preço.
A centúria trazida para o combate foi completamente dizimada para servir de energia que empoderava os ataques da Pontifícia. Sem a intervenção do senhor emaciado vestido em branco a frente do par, em conjunto obviamente com seu gigantesco parceiro rubro, todos teriam sido aniquilados.
Apenas este feito, combater de igual para igual contra a líder de Puritas amplificada com os poderes de uma centena de homens já diziam o quão poderoso era o homem, alguém que certamente havia chegado ao pico das capacidades humanas. Obviamente, Dracul não podia ser esquecido, afinal, sem a gigantesca fera escarlate, a defesa não teria sido possível.
Maximillian, sua respiração agora um pouco mais calma, se ergueu, um leve rubor retornando ao rosto envelhecido. Com um simples gesto da mão, um flash de luz verde iluminou o ambiente e, no instante seguinte, o senhor ressurgiu em frente ao par. Ambos mãe e filho não conseguiam responder a aparição com facilidade, o homem por sua vez deu um breve aceno com a cabeça, soltando um curto riso.
— Tive tanto trabalho para me ancorar a dimensão e trazê-los aqui, e não conseguem sequer me dar um “olá”? — ele lentamente cruzou os braços em frente ao corpo — Terei eu ficado mais tempo do que penso aqui dentro para que não me reconheçam mais meus amigos?
Um leve sorriso surgiu nos lábios da Alfae. Seu usual temperamento sério não mostrava qualquer sinal de existência, especialmente quando ela deu um passo a frente e, para a surpresa de ambos Lucet e Maximillian, abraçou o homem. O abraço foi apertado, mas breve, e nesse curto tempo, o homem teve a distinta impressão de sentir uma lágrima cair sobre seu ombro.
Porém, quando Kaella o soltou, nenhum sinal de choro podia ser visto em seu rosto que ostentava um pequeno sorriso.
— É um prazer revê-lo, Maximillian — ela comentou antes de olhar para o céu estrelado — E claro, também é muito bom vê-lo novamente Dracul.
— É igualmente agradável receber sua visita — Uma voz trovejante respondeu de volta, chacoalhando o ar com seu poder.
Dracul, era grande demais para pousar e descansar no coliseu, por isso, preferia ficar flutuando ininterrupto no mar de gravidade zero. Lucet, por sua vez, finalmente voltou aos sentidos e estendeu uma mão, sua única, ao homem de grande barba branca e vestes da mesma cor.
— Agradeço pelo auxílio Líder! — ele declarou em alta voz antes de olhar para os céus — E também lhe agradeço Dracul, o olho do tirano foi muito útil!
A voz da fera não demorou a responder.
— Fico satisfeito que nosso presente lhe forneceu a ajuda que precisava.
— Não há o que agradecer — Disse Maximillian se referindo a sua outra “aparição” — Apenas um breve cumprimento, também estava tentando travar as coordenadas do transporte para lhe trazer aqui, com a interrupção dimensional, é muito difícil acessar qualquer coisa em Anima, se não fosse minha autoridade sobre o território e o poder de Dracul, provavelmente este espaço teria sido demolido.
— Então você está preso aqui Maximillian? Como sobreviveu a punição?
— Infelizmente estou — O homem respondeu, se virando para a Alfae — Mas, não posso reclamar, qualquer outro invocador que fizesse minha escolha sem ter um território, teria sido eliminado. Com a dimensão de Anima constantemente buscando minha destruição como punição para minhas escolhas, acabei por ser exilado aqui, felizmente, porém, escapei da punição.
— Muitos acreditavam que você havia sido morto… — A Alfae comentou — Porque não nos avisou que estava vivo?
— Porque meus poderes recebem uma imensa interrupção quando tento interferir — ele explanou — Algumas vezes consegui auxiliar — ele então apontou para uma pilha de trapos que continha o símbolo de Puritas — Mas o que posso fazer está fortemente restrito, além disso, trazer alguém para cá é ainda mais difícil.
— Porque? — Lucet perguntou, curioso.
— Tudo possui uma consciência, até mesmo o mundo garoto, a diferença é que a vontade do mundo raramente se manifesta, preferindo deixar que os problemas nele ocorrentes se resolvam sozinhos — o homem respondeu — Ainda assim, esta mesma vontade não aprecia nem um pouco invasores, e por isso, coloca tantas restrições em invocadores por essencialmente convidarem seres nada bem vindos a sua casa e, depois de chamar uma criatura tão poderosa quanto Dracul para lá, deixei de ser considerado um morador, me tornando um estranho que é fortemente repudiado.
— Então como nos trouxe até aqui?
Neste instante, Dracul respondeu.
— Porque ainda que tenhamos sido exilados, fragmentos de nossa existência ainda não fora negados pela vontade do mundo.
— Fragmentos? — Kaella questionou — Por um acaso deixou alguma relíquia de seu poder para trás?
— Não exatamente — Dracul comentou, uma luz verde subitamente levitando a caixa preta do chão, trazendo-a a altura dos olhos do trio — Como experimento, pensei em deixar alguns traços de minha existência para trás, afinal, sabia que meu tempo de interação com este mundo era limitado, e pelo que posso ver, a aposta rendeu bem mais do que o estimado.
Kaella e Lucet observaram a caixa e então olharam para Maximillian em busca de respostas, o que o líder prontamente proveu.
— Tal como seu olho do tirano — o homem informou, apontando para Lucet — Este ovo é um fragmento de Dracul, e por tal, serve como âncora dimensional.
— Espera um pouco — Lucet subitamente questionou — Isso é um ovo?
— Exatamente — Maximillian acenou com a cabeça — E dele um dia nascerá uma prole do meu velho amigo que pertencerá a Anima, e não será punida ou rejeitada pela vontade do mundo por ter sido concebida antes de Dracul ter invadido a dimensão sob meu comando.
— Mas como ambos eu e ele servimos de âncora? O olho do tirano é um poder meu não?
— Correto — Maximillian afirmou — Contudo, ambos o seu poder e esta criaturinha surgiram da mesma origem, e por isso, podem ser usados como uma janela dimensional para Anima, não podemos entrar com facilidade pois seremos atacados imediatamente, mas, ao menos podemos interagir com alguma facilidade, especialmente se estiverem juntos.
— Certamente você não está implicando que… — Kaella começou a dizer.
— Exato minha cara Alfae, sempre tão inteligente — O homem respondeu com um breve sorriso — Acredito que Lucet seria uma ótima companhia para o pequeno que ainda virá a nascer.
— Eu? — Lucet apontou para si, sua expressão espantada — Não posso cuidar de uma vida! Mal consigo cuidar da minha! Tenho de enfrentar Puritas em um futuro cuja proximidade não posso inferir, não tem como eu fazer um bom trabalho de criar dela.
— Acha que precisara cuidar tanto assim de minha prole, pequenino? — Dracul subitamente gargalhou, sua voz estrondosa inundando o ambiente — Não se esqueça de quem ela descende, acha que será tão fraca que necessitara de cuidados extensos? Se lhe alimentar direito, em poucos meses já terá força o bastante para se cuidar perfeitamente sozinha, se provando um aliado valioso e, quando atingir sua forma adulta, poderá ter uma força similar a minha, tudo dependerá das oportunidades que adquirir.
Lucet ainda tinha suas ressalvas sobre a situação. O peso de uma vida não era algo leve, especialmente considerando de onde vinha. Era ao mesmo tempo uma grande honra e imensa responsabilidade ser confiado um ovo de Dracul, ele pensou em resistir e negar, ele era novo demais para assumir este fardo, mas, a criatura em si parecia ter outros planos.
Por um instante, tudo ficou em silêncio, todos os presentes temporariamente incapazes de reagir. Um forte brilho vermelho disparou em direção ao cosmos e decorou a existência com um tom rubro. Pulsante, o pequeno objeto escarlate começou a emitir sons rítmicos, como se trovões ecoassem repetidamente. Dracul foi o primeiro a reagir.
— Parece que a criança está ansiosa para sair — A grande fera gargalhou.
— O que!? — Lucet exclamou — Como assim!? O que aconteceu?
Logo, as trovoadas foram reduzidas, refinadas. Os sons estrondosos lentamente se tornaram mais distintos e rapidamente todos notaram que se tratava de batimentos de um coração, poderoso e imponente como o próprio Dracul.
— Por um acaso — Maximillian questionou subitamente — Em algum momento, você deixou cair sangue ou infundiu mana no ovo?
Lucet ficou boquiaberto. No primeiro momento em que recebeu o objeto, ao tentar encostar nele, cortou seu dedo e, no instante seguinte, o sangue que espirrara sobre o ovo havia desaparecido. Teria sido de propósito? Uma coincidência do destino talvez?
— Sim — o garoto respondeu — Quando recebi o ovo, por acidente cortei um dos meus dedos nos espinhos e uma gota do meu sangue acabou caindo nele.
Uma expressão curiosa surgiu no rosto do homem, um largo e animado sorriso crescendo em suas feições.
— Realmente é o destino! — Maximillian demonstrou uma grande e rara gargalhada — Agora já está feito Lucet, você ganhou um companheiro e nem precisamos te dizer como fazer!
— huh? — Lucet olhou para ele, confuso — Do que está falando?
Porém, antes que tivesse a chance de conseguir uma resposta, ouviu um alto som de algo se partindo. O barulho fora tão alto que por um instante imaginou que o coliseu estivesse rachando, o que o fez olhar ao redor. Um segundo rachar então atraiu sua atenção para o ovo, que agora continha duas rachaduras.
— Espera! — Lucet exclamou — Eu não estou pronto pra isso!