Os Contos de Anima - Capítulo 6
A revelação o chocou. Não só ele conseguiria ser um mago, mas também seria um perseguido. Por mais que a imagem de um mago maligno não significasse muita para ele, afinal, viver em Elysium o deixou isolado do resto de Anima, e por tal, ele nunca viu o quão verdadeiramente cruéis os seres podem ser uns com os outros, ainda assim, medo surgiu em sua mente ao imaginar o ódio inato que as pessoas teriam contra ele simplesmente por ter nascido com essa aptidão.
Mas o mais importante da descoberta foi que além de ser um dos raros, porém, usualmente criminosos, Corvos, a pessoa mais poderosa que conhecera até esse momento também era! Como se uma luz surgisse em sua mente, um certo pensamento o fez questionar.
— Mas se você é uma dos Corvos, você é perseguida como eles também? — Ele perguntou.
Mas também imediatamente percebeu que era uma pergunta tola, afinal, que tipo de pessoa teria a coragem de perseguir alguém como ela? Um mero gesto era tudo que ela precisava para distorcer a realidade e enganar os sentidos, quem seria poderoso o bastante para caçar alguém assim? E mesmo que tivesse tal poder, o que faria esse alguém persegui-la? Ela parecia uma pessoa boa, não deve ter muitos inimigos né? A resposta da elfa, porém, o surpreendeu.
— Estou numa posição que não permite que me persigam ou me odeiem, afinal, esta mesma posição é que garante meu status de confiança — Ela disse — Isso não significa que eu não tenha meus rivais ou inimigos, apenas que, se eles quiserem realmente me caçar, terão de pagar um preço bem pesado. Além disso criança, não são exatamente muitos que sabem das minhas reais habilidades, tal como vocês viram hoje, eu disfarço muito da minha magia com gestos e movimentos que indicam que eu estou usando equipamentos mágicos, e não magia própria.
Muitas mais perguntas surgiram na cabeça do menino, mas, antes que sua voz ou mente pudessem agir a elfa seguiu a análise de seu sangue.
— Sei que tem muitas perguntas na sua cabeça — Ela disse, sorrindo — Mas ainda é muito novo para isso. E tem mais, não acha que temos assuntos mais importantes para discutir do que a minha identidade de Corvo?
Ela então apontou para a terceira seção do cristal e indicou seu contéudo. Seu sangue havia se tornado pálido, arenoso e o símbolo do cristal indicava uma rocha, Lucet já tinha suas suspeitas da explicação daquela parte, portanto, questionou.
— Essa parte deve ser a afinidade elemental não é? Se for, esse símbolo deve representar que minha afinidade é com o solo em geral, ou as rochas, ou, julgando pela aparência do meu sangue, a areia, certo?
Kaella acenou levemente a cabeça e disse.
— Exatamente criança — respondeu — Sua afinidade elemental é a terra. Esta afinidade indica que você terá facilidade em manipular e utilizar magia que envolva todos os aspectos deste elemento, seja areia, rocha, metal ou até mesmo lama, que atrapalha um pouco a manipulação devido à grande presença de água, se praticar o suficiente.
— Porém — ela advertiu — Você não terá um talento especifico para isso e no máximo terá uma afinidade comum devido a sua afinidade com a mana das sombras, já as suas outras afinidades elementais serão simplesmente terríveis ao ponto de que você três a quatro vezes mais dificuldade em compreender o uso dos outros elementos do que um humano. Por isso, sugiro que pratique técnicas viradas para este elemento pois somente este que você será capaz de utilizar com eficiência o suficiente.
A elfa então passou sua mão que reluzia com mana sobre o cristal, o conteúdo dentro dele prontamente desapareceu e novamente ele estava transparente. Sem perder tempo, ela guardou a ferramenta na caixa branca, fechou, e então apertou os símbolos negros com seus dedos reluzentes energizados com mana e, após uma injeção de energia nos símbolos e um click, a caixa foi selada.
Kaella pegou o saco negro em sua cadeira e guardou a caixa que continha o cristal dentro dele. Então, se virou para Lucet e disse:
— Bem, agora que já verificamos seu potencial, e você já sabe que pode ser um mago, acho que é hora de você voltar para casa, certo?
Lucet suspirou. Essa eram exatamente as palavras que ele menos queria ouvir. A aula, e o período extra de exposição ao vasto conhecimento da elfa tinha sido fascinante. Naquele momento, se o garoto pudesse pedir algo, o que ele mais gostaria é que isso não acabasse, mas para sua frustração, a realidade era outra. A elfa não era sua mãe ou parente para que ele pudesse pedir ou exigir qualquer coisa, e, por mais que desejasse, sabia que não era justo tomar mais de seu tempo do que já havia tomado, portanto, com uma expressão pesarosa e relutante respondeu.
— Sim… já é hora…— ele disse num suspiro.
O orfanato não era de forma alguma ruim para ele. Suas memórias no lugar eram tranquilas e pacíficas, mas não eram exatamente agradáveis. Por ter apenas o diretor como o único que cuidava de todas as vinte crianças que lá viviam, Lucet, apesar de viver bem, não sentia exatamente tanta vontade de ficar por lá.
Sempre o menor, sempre o mais quieto, nunca reclamando ou exigindo, foi assim que ele viveu seus poucos anos naquele lugar. Brincava com as outras crianças e era perfeitamente normal, mas por ter apenas uma pessoa para dar atenção para todas aquelas crianças, Lucet sentia uma certa falta de conexão com o diretor.
Para ele, o homem era apenas alguém que o alimentava e ensinava o mínimo, tal como ele fazia para todos os outros dezenove, não recebia a atenção ou amor que apenas pais podiam dar, e, por mais que não notasse ainda, em seu subconsciente sabia que não pertencia ao lugar, e isso o tornava mais fechado com todos, como se estar ali fosse apenas uma obrigação, e com sua mente infantil, por mais inteligente que fosse para a idade, só podia concluir que o diretor pensava o mesmo que ele. Nenhuma das crianças era especial, eram apenas uma tarefa que o diretor tinha de cumprir todo dia e ele, tal como o próprio Lucet, não sentia absolutamente nada pelo lugar.
Lucet acenou a cabeça para a elfa, se virou, e andou em direção as portas abertas de Anansi onde o céu já estava escuro e a vila iluminada com as luzes mágicas dos postes energizados por cristais de mana.
“Bem… Ao menos sei que posso ser um mago agora” pensou o garoto, tentando se consolar. “E também, agora que sou um aluno de Anansi, terei mais aulas com ela e com outros instrutores que certamente serão tão legais quanto ela!” Um leve sorriso brotou em seu rosto, e seus passos, que eram lentos e arrastados, se tornaram um pouco mais leves e rápidos, alcançando a entrada em instantes. Lucet então se virou uma última vez e olhou diretamente nos olhos violetas da elfa, e gritou ao curvar sua cabeça e tronco levemente, seus braços colados do lado do corpo, numa imitação um tanto atrapalhada de uma reverência que uma vez vira um dos moradores da vila fazer a um médico Faeram.
— Muito obrigado instrutora Kaella! — ele disse, um largo sorriso em seu rosto.
Seu rosto rapidamente avermelhou e ele, para esconder esse fato, se virou depressa com a cabeça ainda abaixada e desatou a correr pelas ruas iluminadas, levantando seu rosto, que sorria mais do que nunca, apenas quando teve certeza de que virara vielas e ruas o suficiente para que a elfa nunca pudesse ver seu rosto de dentro de Anansi. Após isso, seguiu correndo para o orfanato que prontamente alcançou alguns minutos depois.
Kaella estava surpresa. Por estar com o feitiço de observação emocional ativo, pode observar o grande desapontamento da criança ao ser dito que deveria voltar para o orfanato. Não era tristeza ou medo, mas sim um grande tédio e desinteresse, além da relutância de ter de retornar. E quando ele se virou na porta e gritou seu agradecimento, ele emanava uma alegria tão grande que por um instante Kaella apertou os olhos para poder continuar olhando para o garoto que parecia ter um sol dentro do corpo que exuberava uma alegre, radiante luz dourada.
Apesar de não saber, neste momento, Lucet tinha definitivamente se provado, e com isso, a determinação da mulher de torná-lo seu discípulo finalmente se firmou, ela definitivamente não poderia perder essa criança para nenhum dos outros. “Não vou deixar aqueles malucos de Anansi tomá-lo de mim, esse tesouro é meu! Esse garoto é o que eu tanto procurei! Ele é o ideal! E se minhas suspeitas estiverem certas… ele pode ser ainda melhor do que eu esperava! Não posso perder essa chance!” Ela sorriu empolgada, cerrando um punho a frente do seu peito tentando conter suas emoções por vários minutos.
O que ninguém sabia sobre o lugar tão admirado por Elysium, é que não só os melhores mestres de Anima congregavam ali para ensinar as crianças, mas também, naquele lugar existia uma rixa entre todos. Por serem extraordinariamente habilidosos em seus respectivos campos e terem desenvolvido técnicas que apenas eles utilizavam, era amargo o pensamento de que quando sua vida chegasse ao fim, sua arte seria extinguida e esquecida pelo mundo, portanto, era exatamente ali, onde o ambiente e os recursos eram não apenas de extrema qualidade como também abundantes, que estes mestres buscavam seus sucessores.
Anansi era basicamente um catálogo onde eles podiam escolher os melhores e os ensinar, na esperança de um deles mostrar potencial e talento suficientes para herdar as técnicas e segredos que eles gastaram tantos anos desenvolvendo. A elfa sabia muito bem que uma vez que descobrissem a peculiaridade da criança, e, caso estivesse certa, o segredo dela, iriam lutar como lobos para torná-lo seu aprendiz. Ela sabia o quão difícil seria de manter o interesse do garoto uma vez que visse as habilidades dos outros mestres, então, mesmo que fosse um pouco desonesto da parte dela, ela iria torná-lo seu discípulo antes que eles pudessem ter a chance de encantá-lo, afinal, era raro ela encontrar um pequeno corvo, e ainda mais um que fosse tão inteligente quanto ele.
A elfa sorriu e seu corpo começou a reluzir e aos poucos, sua pele, cabelo, olhos e até mesmo suas roupas foram perdendo a cor. Não, eles não perderam a cor, mas uma aura que a elfa agora projetava fazia toda luz desviar dela, fazendo com que qualquer cor ficasse irreconhecível aos olhos dos observadores. Ela se abaixou e tocou suas botas na região do calcanhar, injetando energia transparente na área, uma runa branca no formato de asa surgiu em cada bota. Ela se levantou e bateu a ponta de suas botas algumas vezes no chão.
— Aiai, esses velhos hábitos de pesquisadora, viu? — ela soltou um riso confiante — Bem, acho que já passou da hora de eu conhecer melhor esse meu novo discípulo.
A elfa então pisou no chão e disparou. Porém, ao invés dos passos pesados de alguém correndo, nada foi ouvido. Seu corpo se movimentava rapidamente pelas ruas o que a permitiu alcançar o orfanato numa fração do tempo que o garoto levou para chegar lá. Sem som ou cerimônia, a elfa adentrou o recinto pela porta que havia sido aberta pelo garoto quando ele entrou, mas que esqueceu de fechar quando entrou apressado.
— Agora, vamos ter uma conversa com esse diretor que a criança falou — ela murmurou — Vejamos o que exatamente ele sabe sobre o garoto.
A construção era um tanto simples. Dois andares, sendo um para a alimentação e ensino das crianças, contendo uma grande mesa para as crianças logo após a entrada e uma cozinha anexa para o preparo dos alimentos separada por um balcão, que tal como todo o resto do local, era feito de madeira, e o segundo como dormitório. Apesar da simplicidade, o prédio era grande, afinal, possuía vinte e um quartos numerados no segundo andar, sendo vinte para as crianças e um para o diretor, separado dos demais pois também servia de escritório.
Para Kaella, que por profissão era uma hábil pesquisadora, encontrar um alguém que não estava exatamente tentando se esconder era algo simples, e por tal, em instantes parou silenciosamente em frente a porta do escritório. Em seu trajeto até a porta, fez apenas uma pequena pausa quando sentiu a presença do garoto atrás da porta de número vinte e sorriu, continuando então até o escritório do diretor.
A transparência da elfa e as runas brancas então se desfizeram quando ela estalou os dedos. Ela levantou a mão e estava pronta para bater na porta, porém, antes mesmo que pudesse encostar na madeira, uma voz abafada veio de dentro.
— Senhorita Kaella — disse a voz — Entre.
A mulher hesitou. Mesmo que ela não tivesse exatamente feito um esforço monumental para esconder sua presença, suas habilidades e magias furtivas estavam num nível que mesmo algo feito às pressas não era algo que poderia ser detectado com essa facilidade por qualquer zé-ninguém. Fosse quem fosse, o ser atrás da porta era poderoso, e, portanto, cautela era o caminho a seguir.
Os dedos de Kaella vibraram. Instantaneamente, várias magias defensivas se ergueram a sua volta, fazendo com que dezenas de runas luminosas surgissem e se fundissem com seu corpo. Apenas depois de se preparar o suficientemente, a elfa agarrou a maçaneta e, tão silenciosamente quanto havia chegado, adentrou a sala. O lugar era… Vazio. Uma cama de solteiro com um fino colchão, um travesseiro e uma coberta de pelo de urso sobre si e ao lado, uma mesa larga de madeira escura e uma cadeira com uma grande janela logo atrás que dava para frente do prédio, provavelmente a janela que este homem utilizava para observar as crianças enquanto brincavam, concluiu Kaella após observar.
Sentado na cadeira, com seus braços cruzados e pernas sobre a mesa, a cadeira inclinada levemente e encostada na beira da janela que se encontrava aberta, um homem, que a elfa identificou como um humano, estava analisando a elfa. Ele vestia uma camisa branca com um colete escuro e um sobretudo preto de couro gasto por cima. Em suas mãos, manoplas metálicas com três joias vermelhas em cada e runas gravadas ao longo do corpo ao passo que em sua cintura, um cinto de grosso couro negro com uma cabeça de tigre feita de metal branco cujo o único olho era uma safira azul escura reluzente, logo seguido de uma calça cinzenta e botas de combate escuras com pontas de metal negro.
Sobre sua cabeça descansava um velho chapéu de couro escuro e na sua cintura, afixadas ao cinto, duas espadas curtas descansavam. Ao lado da cadeira, uma longa lança cujo corpo era de metal azulado e a lâmina, que continha uma esmeralda cravada na base, se partia em três fazendo-a parecer um tridente, repousava silenciosa, radiando uma aura sanguinária.
O rosto inclinado do homem, apesar de escurecido pelo chapéu, não conseguia esconder suas feições rústicas.
Olhos azuis-escuros, profundos como o mar, que a fitavam com uma fúria explicita, um queixo forte coberto de barba e bigode com toques de grisalho e cabelos negros como a noite. Sua respiração era alta e forte, combinados com uma cicatriz no formato de quatro linhas grossas que iam da sua testa até quase seu queixo passando sobre o olho esquerdo o atribuiam um ar ameaçador. Estes elementos formavam o rosto feroz do homem que a encarava como se fosse atravessá-la com a lança ou decapitá-la com as espadas a qualquer momento.
Toda a existência do ser a sua frente exalava perigo. O corpo da elfa tencionou em preparo para uma luta que poderia muito bem custar sua vida e seus dedos já vibravam enquanto uma centena de planos e táticas passavam por sua cabeça. Nesse momento, a mulher nem sequer lembrava do porquê viera, e muito menos porque fora estúpida o suficiente de entrar no lar deste “tigre”, mas sabia que um movimento em falso e sua morte era certa.
Não sabia como atacar. O homem não tinha nenhuma abertura ou fraqueza exposta, e, portanto, ela apenas focou em observar com todas as suas forças, cada minúsculo movimento do oponente. Foi então que a voz, antes abafada, soou forte, firme e grave quando ele tomou um breve fôlego e disse.
—Ah Ângela… — ele falou em meio a um suspiro — Eu sabia que quando você o deixou aqui oito anos atrás, ele seria visto como um tesouro por estes doidos de Anansi.
— Isso dito… — ele continuou, desta vez falando diretamente com a Alfae — Eu não esperava que a primeira a descobri-lo e vir até mim seria a senhorita Kaella, ou será que devo chamá-la de Guardiã?. Devo assumir pela sua tão furtiva entrada no meu humilde orfanato que descobriu, ou pelo seu rosto, ao menos suspeita fortemente, que o garoto é um meio-sangue correto?