Os Contos de Anima - Capítulo 70
Em questão de segundos, dezenas de outras rachaduras surgiram na superfície do ovo escamado. Debaixo delas, um brilho rubro e dourado reluzia, pulsante, como se um coração estivesse escondido atrás da camada de escamas. Ambos Lucet e Kaella observavam o objeto atentamente.
O faziam não por medo, mas por curiosidade. Mãe e filho sempre foram estudiosos e curiosos sobre todo tipo de coisa, especialmente magia, então, ver o nascimento do filhote de uma criatura extradimensional, especialmente por ser da linhagem de Dracul, era algo que não podiam deixar passar um detalhe sequer.
Ainda assim, o garoto possuía alguma hesitação, afinal, considerando a descrição de Maximillian, a criaturinha que estava para nascer estava ligado a ele por sangue. Os batimentos aumentavam progressivamente, ecoando no espaço estrelado cada vez mais altos, chegando eventualmente ao ponto de que o som era basicamente o mesmo do rugido da grande fera vermelha, mas sendo repetido a cada instante.
Lucet não se sentia preparado para isso, algo que estava claro em sua expressão agora que retirara sua máscara. Obviamente, os três adultos presentes notaram o nervosismo e não puderam deixar de comentar.
— Ora pequeno corvo — Dracul riu, sua voz estrondosa suprimindo o som das batidas — Não precisa ficar tão nervoso, não é como se fosse seu filho!
— Filho!? — Lucet exclamou, a situação toda se tornando ainda mais complexa e embaraçosa em sua cabeça.
— Exato garoto — A fera continuou, soltando uma gargalhada que mais parecia o som do impacto de relâmpagos — Esta criança é obra minha, não há com que se preocupar, ele será um bom aliado e um grande amigo, só não esqueça de o alimentar direito, dar-lhe atenção regularmente e leva-lo para passear e praticar e tenho certeza que tudo dará certo.
— Meu velho amigo — Maximillian falou subitamente, dando um breve riso — Não sabia que tinha experiência em cuidar de crianças! Por um acaso já tem uma ninhada?
— De onde vim, dificilmente há tempo para reprodução Maximillian — A voz da fera ecoou — Esta criança é minha primeira e provavelmente última, meu único legado, mas ainda assim, um dia já fui um filhote, lembro-me dos cuidados de meus pais.
— Espera um pouco! — Lucet interviu, erguendo seus olhos ao céu estrelado em busca de algum sinal da existência da fera além de apenas a sua voz — Seu único descendente e você está confiando-o a mim!? Ficou maluco!?
— E porquê não o faria? — A fera questionou — Você tem habilidade real e certamente será um bom irmão para esta criança. Sua jornada ainda será longa e perigosa, mas se unir suas forças as que ele terá, crescerão e se tornaram imbatíveis neste mundo, estou certo.
— Como pode ter tanta certeza disso?
— Bem simples — Dracul riu alto — Esta criança tem meu sangue e terá meu poder, talvez não todo, mas algo bem próximo. Em Anima não existe criatura mais poderosa que eu, e não ache que isso é arrogância, pois é um fato. A única razão pela qual não domino este mundo ao lado de meu parceiro é pelas restrições impostas a nós dois, do contrário, nada, muito menos a líder daquela congregação ridícula teria qualquer chance de nos deter.
Lucet ficou em silêncio por alguns instantes, contemplando a ideia. Tinha várias questões em mente, mas logo, ao dissecar a frase da grande fera, lentamente foi compreendendo o porquê disse aqui com tanta confiança.
— Então, se ele nascer dentro de Anima, não será restrito correto?
— Inteligente, não esperava menos — Kaella subitamente comentou, se virando para Maximillian para confirmação — Contudo, não é tão simples, não é? Ainda que nasça dentro de Anima, a criatura ainda será de linhagem direta extradimensional, portanto, o fato de ele se entrelaçar com meu filho — Ela então se virou de volta para Lucet — Significa que será aceita por partilhar um laço com um nativo do local, entrando em um estado de pseudo-natividade.
— Correto Alfae — Dracul rugiu, entretido — Era exatamente esta a ideia de colocar a criança nesta dimensão. Meu lugar de origem não é nada receptivo a novas vidas, tendo em vista que é um constante campo de guerra entre seus tantos habitantes. Sociedade é inexistente e tudo é governado pela lei da força, portanto, qualquer fraco é logo eliminado, especialmente se pertencer a seus inimigos. Portanto, quando Maximillian cedeu o ovo para Forscher tantos anos atrás, esperávamos que alguém criasse um laço sanguíneo, contudo, a criatura instintivamente rejeitou a todos os candidatos.
— Às vezes o destino trabalha de formas curiosas Kaella — Maximillian afirmou — Seu filho foi escolhido não por nós, ainda que recebesse nossa benção e aprovação, mas sim pela própria criança. Algo no sangue do garoto despertou seu interesse, e agora, estão tão ligados quanto qualquer irmão estaria, ou até mais.
Lucet observava a conversa e, ao ouvir a fala do velho líder, notou um traço de estranha tristeza nos olhos de Kaella. Ele ergueu um braço para chamar a atenção da Alfae, porém, antes que tivesse a oportunidade de falar qualquer coisa, uma explosão de luz e força inundou o ambiente, chacoalhando todos os presentes enquanto o som de numerosas rachaduras prenunciou os fragmentos de ovo voando para todos os lados.
O garoto tentou proteger os olhos e rosto com o braço, crendo que a armadura que vestia seria suficiente para o guardar do resto. Por precaução, circulou sua aura cinzenta em conjunto com a dourada, afinal, mesmo que fosse fragmentos, ainda eram produto dos esforços da grande fera vermelha, não eram algo simples de se subestimar.
No instante seguinte, Lucet sentiu algo quente pousar em seu pulso, garras ardentes se prendendo a sua pele, fazendo-a ferver e sangrar. Grunhindo de dor, o garoto tentou abrir os olhos e chacoalhar o braço, contudo, a tentativa se provou inútil quando percebeu que não apenas não conseguia mexer o membro, como todo seu corpo.
Em seguida, sentiu algo penetrando sua pele acompanhado de uma sensação de pressão enquanto algo era injetado para dentro de si. De repente, sentiu seu olho pulsar mais uma vez, como se um coração existisse em seu crânio. Sem seu comando, o olho do tirano se ativou e forçosamente abriu as pálpebras paralisadas.
O mundo ainda brilhava com vermelhos, contudo, com o efeito do olho, o mesmo se tornou azulado e lento. Mais uma vez, sem escolha prévia, a orbe tirânica focou sua visão no braço onde um aglomerado de luz se prendia, sua forma um tanto confusa e indistinta enquanto que, dentro de seu braço, um similar aglomerado de luz adentrava seu corpo e viajava por seu sangue.
Forçado a observar, Lucet não pode reagir quando uma dor excruciante veio de seu peito. Seus batimentos aceleravam desesperadamente enquanto seu corpo trabalhava para absorver energia e restringir o poder invasor. Sentia como se suas veias estivessem em chamas e seu peito escondesse uma esfera flamejante.
Queria gritar, chorar, grunhir, qualquer coisa para poder expressar a dor que sentia. Lentamente a energia incandescente se espalhou por seu corpo, logo o tornando em um prisioneiro das chamas internas. Por vários momentos o aglomerado brilhante permaneceu em seu pulso, injetando mais e mais da luz fervente.
Eventualmente, o brilho que vermelho que iluminava o mundo ao seu redor diminuiu. Maximillian, Kaella e Dracul observavam o garoto em silêncio, vendo algo surpreendente acontecendo com ele, especialmente em vista de que possuíam poderes observacionais mais avançados que o do mesmo.
Enquanto Lucet lutava silenciosamente para resistir, mobilizando cada fragmento de vontade que podia para se defender usando seus poderes, o trio observava uma mudança familiar, mas ainda mais potente que antes.
Se antes, quando o garoto recebeu o olho do tirano e teve seu corpo amplificado pelo fragmento que recebera da grande fera para poder comportar a nova habilidade, agora tal coisa não era necessária. Ele estava ficando um tanto mais forte fisicamente, contudo, não era uma mudança tão drástica quanto a primeira, especialmente considerando o quão mais forte seu corpo se tornara após o coma.
Foi então que o aglomerado de luz se soltou do pulso do garoto e saltou, pousando instantes depois em sua cabeça e se deitando. Lucet sentiu seu corpo relaxar, sua cabeça levemente mais pesada com algo um tanto pontudo e desconfortável posicionado acima dela. Ao respirar, se encontrou suando fortemente, dezenas de gotículas sobre sua pele.
Um tanto dolorido, imediatamente canalizou sua aura da fé para aliviar a dor e regenerar qualquer ferimento interno. Contudo, para sua surpresa, fora a tensão muscular, não encontrara qualquer machucado, ao invés disso, analisando seu corpo enquanto a aura transpassava sua estrutura, se viu fortalecido, um tanto mais energizado do que quando chegara. Ao observar o pulso onde sentira a dor inicial, viu que não havia qualquer marca de cortes ou queimaduras.
Entretanto, quando observou sua mão, encontrou sobre ela uma tatuagem de quatro garras negras dentro de um círculo vermelho e dourado, uma delas estava fortemente escura, enquanto as outras eram mais cinzentas, quase apagadas. Ao notar isso, uma voz logo adentrou seus ouvidos.
— O potencial da criança é grande, velho amigo — Maximillian comentou.
— Só perde para o meu — Dracul respondeu com um rosnado risonho — Mas também, era pedir demais que uma criatura nascida em uma dimensão pacifica e estável como essa alcançasse o nível cinco.
— Nível cinco? — Lucet questionou, curioso, tirando seus olhos da marca e os virando em direção ao líder.
O homem ergueu uma de suas mãos e, após um breve luzir de sua energia verde, uma marca se revelou sobre ela, idêntica à do garoto, com a diferença que ao invés quatro garras dentro do círculo, era cinco.
— Existem níveis para as criaturas contratadas pelos invocadores Lucet — O líder explicou pacientemente — Estes níveis são representados por símbolos em alguma parte de seu corpo, geralmente nas mãos, e, quanto maior o número de marcas, mais poderosa é a criatura.
Lucet então ouviu um grunhido vindo de cima de si e ergueu sua mão para verificar e, no primeiro instante em que seus dedos encostaram na coisa, sentiu escamas afiadas no local, mas, desta vez, não acabou sendo cortado por elas. Sentiu, ao invés de dor, uma estranha sensação, como se fosse algo que sempre pertencesse a si.
Ao mover a mão por alguns momentos, encontrou algo parecido com o tronco da criatura e então, o agarrou. Seus olhos agora abertos, ergueu-a e então trouxe diante de si. Além de agarrar sua mão e dedos com algumas garras para se segurar, a criatura não mostrou sinais de resistência. Na verdade, parecia até bem contente em vê-lo, tendo em vista que soltou um pequeno grunhido alegre ao ver sua face.
Lucet ficou um tanto surpreso com o que via. Já havia observado uma vez a totalidade do corpo da grande fera escarlate que acompanhava o líder em combate. Dracul era gigantesco, corpulento, escamoso e emitia uma pressão que ameaçava esmagar qualquer que ousasse desafiá-lo sem o poder suficiente.
Contudo, esta criaturinha diante de si era drasticamente diferente. Suas pernas possuíam quatro garras enquanto que seus braços, diferente dos de Dracul, eram asas. Seu corpo era escamoso e espinhento enquanto sua face e olhos mostravam semelhança a grande fera, com a diferença de que ela não possuía cinco olhos, mas apenas três, dois nas posições normais e um vertical fechado em sua testa. Suas escamas reluziam fracamente, emitindo algum calor, suas garras eram curvas e negras enquanto que na junta de suas asas, havia três garras negras menores que servia para se apoiar e agarrar a coisas.
— Olá coisinha — Lucet disse, dando um sorriso desconcertado para a pequena criatura — Seja bem vinda a vida, eu acho.