Os Contos de Anima - Capítulo 72
Nos primeiros instantes em que aterrissaram na habitação, algo um tanto cômico aconteceu. A essa altura, Lucet e Kaella estavam mais que acostumados aos efeitos da magia de transporte, seja pelo passo dos corvos ou pela forma mais comum, portanto, nem sequer um tremor transpareceu em suas feições ou corpos.
Entretanto, Draco, a pequena criatura, não possuía tal experiência. Não havia dúvidas de que ele sofreria um bocado em sua primeira viagem. Ainda que tentasse permanecer equilibrado em cima da cabeça de Lucet, o pequeno não demonstrava muito sucesso em seu esforço.
O garoto conseguia sentir através de sua conexão com a fera que a mesma estava muito desconfortável após ser transportada. Seus sentidos estavam desorientados e a criatura, ainda que não tivesse se alimentado de nada desde nascer, sentia ânsia de vômito e tontura a qualquer mísero movimento que tentasse realizar.
Draco, mostrando seu orgulho inato, ergueu-se, cambaleante, demonstrando uma pose, ao menos do que ele era capaz de sentir, de grande estabilidade e poder, entretanto, o esforço não foi capaz de render-lhe mais que alguns segundos de satisfação. Seu trio de olhos piscou repetidamente, dessincronizados e letárgicos, ao ritmo que sua cabeça balançou para os lados, seus diminutos membros incapazes de conjurar qualquer mensura de força.
Lucet, cuja curiosidade havia subjugado o bom senso neste instante, não foi capaz de reagir a tempo quando a criatura começou a cair. Havia se deixado levar pela miríade de novas sensações que eram transmitidas ao seu cérebro a todo instante, focando nelas e em sua conexão com a finalidade de entender mais sobre elas.
Quando se deu conta, Draco tropeçou para o lado direito do seu corpo e caiu. Sem um braço que pudesse aparar a queda da criatura, o garoto convocou sua mana, um manto de energia cinzenta irrompendo de seu corpo antes de afinar e ser modelada em diversos fios que instantaneamente se trançaram.
Kaella observou o ocorrido com atenção. Ao treinar com o filho, notara e ajudara a desenvolver uma “independência do físico” para compensar a falta do braço direito, e agora, estava satisfeita com os resultados. Com um quase imperceptível sorriso em seu rosto, ela viu as cordas de energia se moldarem e trançarem em uma velocidade impressionante, formando em frações de segundo uma “mão” que gentilmente tentou impedir a queda do pequeno.
O que ninguém na cena esperava, porém, era que os instintos da pequena criatura se manifestariam. O diminuto corpo se contorcia feito uma serpente em meio ao ar, contudo, no instante que sentiu a presença de energia próxima a si, seus olhos reluziram com surpreendente poder.
Lucet sentiu a marca arder quando Draco se virou e estabilizou suas asas, batendo-as ritmicamente. O movimento era um tanto dificultoso para o pequeno, porém, seu esforço era vigoroso e em um piscar de olhos, se virou em direção ao membro de energia cinzenta e abriu sua boca. A região abdominal tremeu por um instante e, antes que o garoto pudesse impedir ou retrair sua energia, a fera abriu sua boca de lâminas brancas que luziu com uma luz alaranjada.
Como se estivesse vomitando algo particularmente desconfortável, Draco disparou uma massa energética do tamanho de um ovo na direção da estrutura. O projétil cruzou a distância instantaneamente e, para o choque dos presentes, atravessou a energia do garoto sem qualquer esforço, atingindo a cama atrás de si.
Uma pequena explosão ocorreu, ateando fogo nas cobertas e no colchão em questão de segundos, erguendo uma fumaça negra acompanhada de chamas vermelhas como sangue, muito parecidas com o poder da grande fera parceira de Maximillian. Em questão de instantes, o forte cheiro de carbonização se proliferara pelo ambiente. Ainda que fossem meros tecidos para a cama, sua qualidade era imensa e chamas comuns, bem como uma parte significativa das magias, não seriam capazes de danificar sequer um único fio dali.
Felizmente, Kaella agiu rápido e, antes que qualquer alarme de perigo fosse disparado, dissipou as chamas e reparou os danos com algumas encantações e gestos.
— Impressionante… — Comentou Kaella enquanto observava a criatura — Seu controle melhorou muito, contanto, mesmo usando uma quantia significativa de energia para tecer a estrutura, ver que ela foi desfeita com tanta facilidade pelo pequeno é um tanto… desconcertante.
— É mesmo… — Lucet disse ao estender o braço para Draco que prontamente pousou sobre o membro, enviando emoções de alivio — O potencial dele é muito alto se já consegue fazer isso.
Ao conjurar a estrutura às pressas, o garoto não estava exatamente preocupado com sua resiliência, portanto, a resistência não seria das melhores, ainda assim, Lucet investira uma considerável quantia de concentração e energia para produzir o construto. Isso dito, porém, o fato de a fera ter a capacidade de atravessá-lo sem esforço era algo que não podia ser ignorado.
Era importante lembrar que a criatura acabara de sair do ovo a menos de um dia. O poder demonstrado, ainda que desmedido e descontrolado, indicava um imenso potencial ofensivo. Além de que, este fora apenas um ataque e, se Dracul servia de qualquer parâmetro de mensura, então Draco iria se torna um ser formidável uma vez que crescesse e descobrisse mais dos seus poderes.
Lucet e Kaella, cada qual a seu estilo, começaram a imaginar as consequências e benefícios de ter a criatura como aliada. Presas, garras e escamas quase indestrutíveis, um corpo gigantesco e força estupenda, habilidades mágicas únicas, além de inteligência similar ou superior a do humanoide comum. Certamente uma fera a se temer.
Mas, ambos rapidamente concluíram que isso se tratava de assuntos futuros, afinal, fazia apenas algumas horas que a Draco viera ao mundo, pensar tão longe no futuro era um tanto injusto e ganancioso demais. Todavia grande fosse seu potencial, sua energia atual, como era de se esperar, era minúscula.
Seu corpo ainda não possuía grandes capacidades físicas ou mágicas, portanto, instantes depois de pousar no braço estendido do garoto, se moveu lentamente em direção a marca e, no instante que a alcançou, caiu no sono sobre o símbolo. A marca brilhou por um momento, o corpo da criatura reluziu, e então, como se nunca tivesse existido, sumiu.
De repente, Lucet sentiu um estranho peso sobre seu corpo. Antes que pudesse reagir, uma fração de suas energias, sejam elas mana, aura ou estamina, fora drenada, deixando-o imediatamente assustado. A criatura que estava em seu braço havia subitamente desaparecido e, em seu lugar, a marca brilhava um tanto mais forte.
Quando direcionou sua atenção em direção ao símbolo, captou a estranha noção de que ele estava, por falta de palavra melhor, ocupado. Kaella, que por puro hábito prestava mais atenção que o garoto, tinha um outro parecer.
— Que curioso… — A Alfae disse ao observar a marca com mais atenção — Diferente dos contratos usuais, Draco não parece existir fora da dimensão quando entra em descanso.
— Como assim? — Lucet aproximou o braço ao rosto — Claramente ele desapareceu, isso não é o sinal de que foi a outra dimensão?
— Geralmente este seria o caso — Kaella acenou com a cabeça — Mas não houve qualquer sinal de distúrbio dimensional, ao invés disso, Draco parece apenas ter… ido para dentro de você?
Os olhos do garoto luziram com súbita compreensão.
— É como um equipamento dimensional, não é? — ele sugeriu, apontando para a joia vermelha na fivela do seu cinto — Ele não está exatamente em outra dimensão, mas em um espaço paralelo conectado ao meu corpo — O garoto então ergueu o símbolo a vista da Alfae — Ou melhor dizendo, a marca!
Colocando a mão em seu queixo, Lucet então comentou.
— O estranho é que no instante em que ele desapareceu — falou, fechando os olhos em concentração — Praticamente um décimo de toda minha energia foi drenada, e não estou falando apenas da mana, mas minha aura e a energia física também.
Ainda que fosse imensamente sábia, Kaella não podia fornecer uma resposta exata para o fenômeno. O par passou uma hora teorizando os custos e as possibilidades antes que desistissem de pensar sobre o assunto. O tempo dentro do espaço de Maximillian correra depressa, e agora, a noite já reinava sobre os céus.
Jantar logo foi servido na mesa em que costumavam se alimentar e discutir questões do treinamento enquanto faziam pausas entre as longas sessões de prática e aprendizagem. Depois de algum tempo aproveitando a comida, Lucet usou sua mana para ajudar retirar a sujeira enquanto Kaella se retirara para seu aposento.
No dia seguinte, após uma merecida noite de descanso, o jovem procurou pelo novo membro da família, entretanto, para seu desapontamento, logo identificou que o mesmo ainda estava escondido dentro da marca. Se levantou, arrumou sua cama e pouco depois foi visitado por sua mãe que carregava um display luminosos nas mãos, ocasionalmente inserindo um comando ou outro enquanto conversava com o garoto.
Não demorou para que o assunto mais pertinente surgisse. Lucet ainda tinha muitas missões a concluir e, por pura otimização, resolveu ir para a unidade do ninho situada nos cantos mais remotos e não observados de Alta Lustra. Kaella o seguiu por parte do caminho, tinha coisas a resolver fora do palácio e por tal, adentrou alguns portais com o garoto, antes de deixa-lo sozinho na metade do caminho.
Após despedir-se da mãe, o jovem meio-sangue prosseguiu em direção as coordenadas do ninho, aproveitando para conhecer um pouco mais da terra de suas mães.
Na viagem que fizera anos atrás com sua mãe, quando tinha oito anos e viu partes do mundo no salão de Anansi, observara Alta Lustra de uma grande altitude. Depois disso, passou quase três anos em coma em uma única sala apenas para acordar, quase ser morto, desafiado para um duelo e então, eventualmente sair em uma missão para angariar os fundos para construir uma protomail para substituir seu braço.
Durante o caminho, observou algo curioso. Exceto em algumas estruturas compostas por metais que servia para erguer cabos e antenas, bem como as ruas e estradas, Alta Lustra era uma cidade belíssima. Ainda que fosse um tanto esquisita, Lucet não pode deixar de admirar a arquitetura e o imenso poder que ali existia.
Os arranha-céus, moradias e a esmagadora maioria das estruturas era composta por cristais. Sim, Alta Lustra, com exceção do palácio real que era composto de proteções mais robustas, encantamentos e forja da mais alta qualidade, era basicamente composta de cristais. Não qualquer cristalzinho medíocre, mas quantidades inacreditáveis de cristais de mana usados para compor tudo que pudesse imaginar.
Enquanto caminha pelas ruas, podia sentir o ar quase condensar com a quantia absurda de mana que circulava pelo ambiente. Milhares de barreiras, encantamentos e itens operavam a todo instante com um poder, se bem lembrava Lucet, comparável as proteções mais potentes que um dia tivera Elysium.
Com uma expressão sombria, o garoto seguiu as coordenadas para o ninho enquanto ponderava sobre o fatídico dia da destruição da sua primeira casa. Se tivessem reagido a tempo, pensou ele, talvez o paraíso onde viviam não houvesse sido destruído.
“Malditos lunáticos de Puritas!” o garoto remoeu a imagem de seus inimigos mais uma vez em sua mente. Sabia que não era poderoso o bastante, mas não conseguia deixar de detestar o ato daquela religião. Suas emoções flutuando por um momento, sua aura, normalmente tão bem controlada, emergiu como uma radiante chama dourada ao redor de si, iluminando por um instante a rua onde se encontrava, soltando uma breve onda de choque que fez o solo tremer.
Felizmente, anos de treinamento não o falharam. Com uma curta respiração afiada, Lucet recuperou o controle de seu poder e retraiu as chamas sagradas. Entretanto, no instante em que fez isso, ouviu uma voz familiar adentrar seus ouvidos.
— Ora! Lucet! — o som melódico da voz chamou sua atenção — É você mesmo? Achei que estava fora em uma missão.