Os Contos de Anima - Capítulo 73
Para Lucet, cuja vida fora um tanto… restrita em interações significativas, as poucas conexões que fizera eram muito valiosas. Não havia tantos exemplos do que conhecia em questões sociais, contudo, possuía laços de aprendizado e respeito, como os de Iogi e Maximillian, bem como rivalidade e reconhecimento, como era o caso de Sofia e Luna, e obviamente, o enorme amor e carinho que nutria por Kaella.
Além disso, tinha outras um tanto mais complexas, como a do monarca Lucis, onde devia respeito, primariamente pela posição de sua mãe. Não significava que apreciava o senhor dos Alfae de qualquer forma, apenas tolerava sua existência enquanto não alcançara poder o bastante para falar com o mesmo como um igual.
As oportunidades que tivera de interagir com estes indivíduos, com exceção de sua mestra e do ferreiro Gnoma, foram poucas, mas todas elas eram conexões extremamente significativas, então, era de se imaginar que no instante em que qualquer um deles aparecesse, Lucet ficaria um pouco mais animado.
Despertando de sua momentânea fúria, o garoto ouviu um chamado de uma voz conhecida, uma que já não ouvia a muito tempo. Ao se virar, não encontrou algo especifico, mas seus sentidos, bem como sua mana que ele discretamente infundira ao solo, indicavam que existia alguém ali, próximo, que não podia enxergar.
Lucet vestia seu traje usual de combate, uma armadura leve de tons discretos com encantamentos, sua manopla e botas igualmente reforçadas com magia, o manto que recebera de presente, máscara que protegia sua identidade, bem como o amuleto que conquistara anos atrás detentor da capacidade de disfarçar perfeitamente sua aparência.
Inicialmente, ele não respondeu. Estava muito próximo da filial do ninho, situada em uma das partes mais defasadas da capital que, mesmo sendo muito superior a boa parte das construções de ocupações humanas, era menos patrulhada e demonstrava alguns problemas com criminosos.
Sempre de guarda alta, o jovem alcançou o pomo ósseo de sua lâmina e se preparou para o combate, focando os sentidos no ser que se aproximava. Flexionou levemente os joelhos, curvando minimamente suas costas e tensionou a musculatura, mana e aura se movimentando velozes em seu corpo, finas flâmulas douradas e leve fumo cinzento se manifestando ao seu redor.
— Ei, espera ai! — a voz exclamou — Sou eu! Não lembra de mim? Viu? Lembra disso? Não sou sua inimiga!
Lucet notou uma perturbação espacial. Pelo que conseguia captar do solo laceado por sua mana, a figura que se aproximava agora a passos mais cuidadosos havia se tornado mais pesada, parecia carregar algo agora, possivelmente uma arma. Sem pensar duas vezes, o garoto ergueu sua arma erguendo sua perna para avançar.
— Ahn? Espera! Não ataca! — a voz urgiu — Não está me vendo aqui não? Estou de braços levantados ó! Me rendo!
Lucet, um tanto desconfiado e movido pela familiaridade da voz, resolveu abaixar a perna, entretanto, manteve a lâmina erguida.
— Do que está falando? — ele questionou — Ainda que saiba onde você está, não estou enxergando absolutamente nada.
— Como assim não está enxergando? — a voz respondeu confusa — Estou bem na sua frente!
— Já disse que não estou vendo nada — Lucet apertou os dedos ao redor do cabo de sua arma — Se isso for alguma brincadeira ou armadilha, saiba que escolheu uma péssima maneira de executá-la e, — A adaga reluzia com um brilho macabro enquanto lentamente e discretamente o garoto concentrava suas energias na direção do armamento — se não revelar seu intuito ou identidade, não hesitarei em atacar.
De repente, o garoto detectou um som baixo de colisão, seguido pela voz repleta de súbita compreensão.
— Mas é claro! Ainda estou furtiva, é obvio que não vai conseguir me enxergar!
O som de um estalar de dedos então ecoou pela rua e, como se sempre estivesse ali, uma silhueta se materializou. Trajando roupas similares a sua, a figura carregava em uma das mãos uma lança bem como vestia em seu rosto uma máscara com um padrão extremamente nostálgico.
— Espera aí… — o garoto comentou perplexo, baixando sua garra, porém ainda mantendo seu aperto sobre o cabo firme — Sofia? É você? O que está fazendo por aqui?
Com um breve gesto, bem como um breve distúrbio espacial, o armamento desapareceu e então, a figura se aproximou, ou melhor, tentou se aproximar. Lucet, entretanto, permanecia desconfiado e firmou o pé no chão, erguendo sua lâmina na direção do oponente. Esta, porém, apenas ergueu suas mãos em um gesto de desistência.
— Se acalma garoto — ela exclamou um tanto incomodada — Sou eu mesma, Sofia Voidwalker, a garota da lança invisível, se lembra?
Lucet ainda se lembrava do duelo bem como da breve aventura que viveram juntos no exame do ninho. Definitivamente uma prova perigosa, mas nostálgica. O garoto suspirou por alguns instantes, se lembrando dos tempos mais simples e felizes antes da destruição de Elysium.
Sua guarda baixou um pouco, mas não totalmente. Seu corpo relaxou um tanto, mas sua mão ainda permanecia tencionada em volta do cabo ósseo da garra que agora havia retesado e mantido ao lado do corpo. Um tanto mais tranquilo, pôde raciocinar e finalmente fazer perguntas mais prevalentes.
— Como foi que me reconheceu?
— Essa foi fácil — a garota respondeu como se não houvesse coisa mais óbvia no mundo — Você é o único corvo que conheço que usa uma garra e uma máscara como a sua, não tinha erro nessa.
— O que quer dizer? — ele pressionou as questões, subitamente notando um perigo — Não existem mais corvos que usam garras?
Enquanto dizia isso, já pensava em novos designs para aplicar a sua máscara, talvez, encantá-la com um feitiço de transformação estrutural seria útil. Inconscientemente, sua mão se ergueu ao queixo enquanto ponderava as complicações e problemas que enfrentaria para aperfeiçoar o equipamento criado por sua mestra, contudo, antes que pudesse elevar seus pensamentos a devaneios mais distantes, ouviu a voz feminina ecoar novamente.
— Dificilmente um corvo vai usar uma garra, bobo — ela soltou um breve riso — Garras são poderosíssimas contra magos, contudo, são armas bem limitadas para todo o resto — ela explanou, erguendo sua mão enquanto contava nos dedos — Para começo de conversa seu alcance é extremamente limitado, sendo uma adaga e tudo mais, em segundo lugar, a durabilidade do item em si não é das melhores e, como se tudo isso não bastasse, o preço e dificuldade de encontrar os ingredientes para sequer tentar forjar essa coisa são absurdamente altos, portanto, dificilmente vale a pena usar uma. Se bem que…
O garoto notou que Sofia expressara um súbito interesse maior em sua arma. Como era de se esperar de um aluno de Kaella, sua curiosidade obteve maior controle, o impedindo de encerrar o assunto.
— Se bem que o que? — ele questionou, uma tinge de irritação em sua voz — Algo a mais para zombar da minha lâmina? — o jovem executou um determinado passo à frente — Talvez eu deva testar sua eficiência em você?
Um leve tom de pânico adentrou a voz de Sofia quando ela respondeu.
— Se bem que sua lâmina parece quase uma espada com esse tamanho todo né? — ela respondeu com pressa, chacoalhando as mãos ao lado da cabeça indicando que não tinha planos de resistir — Além disso, foi melhorada consideravelmente desde a última vez que a vi, então, tenho certeza que é uma arma formidável fora dos padrões da garra comum que eu descrevi, não precisa ficar bravo não.
Lucet teve certeza de que pode captar um “por favor…” sussurrado logo em seguida. Como da última vez, ainda que um bocado irritante, não era capaz de ficar bravo com a garota por muito tempo, seja por nostalgia ou valor estratégico, Sofia era uma possível aliada e, ainda por cima, parecia demonstrar boa vontade para consigo.
Ele finalmente baixou a garra por completo, guardando-a na bainha afixada a sua cintura. O jovem então se virou, dando um passo em direção ao seu destino original.
— Bem — ele começou com um tom um tanto mais amigável, andando devagar — respondendo sua pergunta anterior, estou indo em direção ao ramo mais próximo do ninho, ainda não compareci ao lugar, portanto não posso usar o passo dos corvos para ir para lá, além de que, tenho de ir confirmar o inicio e o cliente da minha próxima missão.
— Ah, faz sentido — a garota respondeu com um aceno da cabeça — mas por que especificamente este ramo? Pensei que usava o quartel general, se bem que pelo relatório do mestre você tinha aceitado uma missão em Aeter Adamas, não?
— Na verdade eu moro aqui em Alta Lustra — ele respondeu com um riso — E sim, fiz uma missão por lá, mas, devido a uma presente condição em meu corpo, aceitei um grande número de missões que preciso concluir dentro de um mês para angariar os fundos e materiais necessários para resolver a questão.
A paisagem ia lentamente se tornando mais escura ao redor do par, seus passos lentos e cuidadosos. Logo, adentraram uma esquina e seguiram por um caminho mais estreito que levava a um bar mais isolado. O estabelecimento era um lugar um tanto defasado, suas paredes eram feitas de metal e madeira, diferente das estruturas cristalinas existentes no resto da maioria da capital.
Havia sinais de infiltração em sua estrutura, bem como uma iluminação medíocre de cristais cuja energia já beirava seu fim. A porta e janelas do local mostravam sinais de cupins e anos de abuso, era uma visão um tanto estranha se comparado com o esplendor na grande maioria. Uma placa enferrujada identificava o local como “A Cauda do Corvo”
Adentrar esta sessão especifica da cidade era essencialmente como invadir um outro tempo, esquecido e castigado pelas areias das eras. Quando chegaram ao local e acessaram seu interior, não viram clientes ou coisa parecida, apenas um atendente adormecido que, no instante em que o sino da porta badalou, despertou apressado.
Ele era um homem barbado, de olheiras profundas e aspecto franzino. Seu cabelo era castanho e seus olhos pretos, sua pele pálida como se não recebesse os raios solares a séculos. Vestia em sua maioria roupas discretas e aparentemente surradas. Quando direcionou sua voz ao par, ela parecia cansada e forçosa, com um tom mais grave.
— O que duas crianças querem por aqui? Não é um lugar para pirralhos, caiam fora — ele comandou.
Lucet sequer se deu o trabalho de responder e, de acordo com as instruções de sua mestra, circulou sua mana por um instante, demonstrando sua aura cinzenta, o mesmo foi replicado por Sofia que demonstrou um poder similar, mas com uma tinge mais ilusória, provavelmente advinda da influência de seu contrato.
— Ah, entendo — o homem acenou com a cabeça — Sejam bem vindos jovens corvos, por favor, por aqui.
Ele então abriu uma chancela um pouco a direita de si antes de abrir uma porta nos fundos, indicando com as mãos para os dois passarem. O par seguiu na direção indicada, adentrando em instante uma caverna escura antes de ouvirem o som do bater da porta e o escurecer completo do ambiente.
Não foi nada difícil para os dois atravessarem o caminho repleto de armadilhas e medidas de segurança utilizando suas habilidades sombrias. Enquanto realizavam a travessia, Lucet pode observar que a capacidade combativa da garota havia ampliado e, como não pode evitar de notar, seus traços femininos começaram a se pronunciar um tanto mais em seu corpo.
Antes que se desse conta, se viu prestando atenção na flexibilidade e graça de seus movimentos, bem como o leve aroma de frutas que emanava de sua figura. “Um tanto descuidada” pensou um tanto agitado, tentando controlar seus instintos “Usar perfume sendo um corvo é um erro que pode se provar fatal”.
Se passaram trinta minutos um tanto desconfortáveis para o garoto até que finalmente chegasse ao fim e adentrassem a tão familiar recepção. O ambiente continuava exatamente o mesmo que Lucet avistara tanto no quartel general como no ramo de Aeter Adamas. A recepcionista, uma mulher humana de aparência próxima de seus tardios vinte anos os recebeu.
— Bem vindos jovens Corvos — ela disse, porém, sua expressão mudou quando olhou para Sofia, aparentemente a reconhecendo e dizendo algo que fez Lucet travar seus passos na entreda — Ah! Pequena corvo, bem vinda novamente, como vai o Rubro?