Os Contos de Anima - Capítulo 74
Para o jovem, o mundo pareceu congelar por um instante enquanto imagens e sons da tragédia de Elysium voltaram a sua mente. Ainda reinava claro sobre sua memória os eventos daquele dia, desde os alarmes, até a aparição do esquadrão de paladinos, o surgir de ambos Maximillian e a Pontifícia e a subsequente luta.
As defesas colossais se erguendo, infelizmente tardias, bem como as medidas de contra-ataque. O pânico, os sons, a destruição, o combate distante entre Maximillian e Dracul contra a líder de Puritas e seu construto de aura. O perigo daquele único e distinto evento era quase imensurável para o garoto.
Nesta catástrofe ele quase perdeu tudo que tinha. Sua morada fora destruída, anos de lembranças árduas, porém felizes, demolidas em questão de minutos. Entretanto, a mais vivida das memórias foi a da tortura de sua mãe nas mãos de Alexander. Tentava combate-lo, mesmo sabendo que não era forte o suficiente, tinha de fazer alguma coisa.
E então, enquanto o combate desesperado ocorria, ele ouviu o paladino se gabar de um nome que plantara um rastreador em si, permitindo que Puritas pudesse encontrar Elysium que se mantivera oculta por décadas antes do jovem sequer existir.
“O rastreio ordenado pela santa pontifícia imposto a esta criança foi uma jogada de mestre se quer saber, o rubro fez um excelente trabalho” dissera o paladino em um tom casual, sua voz aumentando em frenesi “Ah! Como é sábia e poderosa a representante do verdadeiro deus, quem imaginaria que teríamos paladinos corvos? De ínicio muitos protestaram, mas agora todos veem a sabedoria da minha mestra!. A destruição deste poço de pecado é a prova de que a vontade divina está ao nosso lado!”
Como se em uma reprise do mundo luminoso que guardara sua consciência durante o coma, a mente do garoto se sentiu leve e ao mesmo tempo, estufada.
“Como foi que eu não me lembrei antes!” O garoto exclamou mentalmente “O ninho foi infiltrado por paladinos! Rubro é um corvo, ele me marcou, mas como? Em que momento foi que tive contato com um corvo poderoso o bastante para notar que eu estava disfarçado e minha mestra mentia?”
Entretanto, antes mesmo que pudesse tirar qualquer conclusão, Sofia falou algo que adicionou ainda mais força a tempestade que agora corria em seus pensamentos.
— Meu mestre vai bem — ela disse um tanto animada — Conclui o planejamento e investigação da missão que recomendou, agora vim aqui buscar informações sobre o alvo, vou precisar de todo o conhecimento que for capaz de adquirir para um trabalho de tamanha importância.
A recepcionista concordou com um aceno da cabeça. Lucet lenta e levemente virou seu corpo na direção da garota, se esforçando ao máximo para se manter calmo. Seus pensamentos agora estavam repletos de memória, seu coração acelerando enquanto o sangue parecia ferver em suas veias.
Qualquer um que o visse sem a máscara e as, com disfarce ou sem, perceberia um rubor em seu rosto bem como veias saltando em seu pescoço enquanto seus olhos se tornavam mais avermelhados, suas pupilas contraindo.
Porém, mesmo sem o disfarce e subterfugio, se olhassem para ele neste exato momento com atenção o suficiente, notariam um distinto, quase imperceptível, tremor em seu ombro esquerdo. Seu punho fora cerrado com tanta força que ele era incapaz de controlar completamente os protestos do membro.
— Informação é poder afinal de contas — ela então acessou um quadro luminoso e rapidamente começou a apertar diversos botões diante de si — Bem, vamos ver, poderia me passar sua autorização e a requisição formal da missão?
A garota colocou a mão para dentro de sua capa, buscando em um dos bolsos internos um pergaminho e uma diminuta figura de um corvo dourado.
— Aqui está.
Alguns instantes, ligações e confirmações depois, a recepcionista se levantou e foi até a porta que ficava um tanto atrás de si, logo retornando com um pergaminho amarelado enrolado com uma fita purpura e selado com o símbolo de um corvo prensado em um pouco de cera vermelha.
— As informações solicitadas estão neste documento, faça bom proveito pequeno corvo — a recepcionista disse com um tom alegre, ela então se virou para Lucet — E como podemos ajuda-lo?
Por alguns momentos, o garoto ficou em silêncio, apenas observando Sofia, imaginando as tantas formas que iria ataca-la e extrair tudo que pudesse. Obviamente, a quietude não passou despercebida, e logo, a garota virou em sua direção, confusa.
— Lucet, está tudo bem? Porque está me olhando? Tem alguma coisa presa na minha roupa?
A jovem então prosseguiu a erguer a capa e observar o próprio corpo, intrigada sobre o olhar intenso do garoto. Felizmente, esta atitude serviu como um balde de água gelada para Lucet, despertando-o de seu ódio flamejante e recuperando sua calma. Ele inspirou profundamente e suspirou.
— Ahn? — ele disse, fingindo confusão — Ah… Me desculpem, estava distraído.
Sofia parou de mexer com as roupas e apenas chacoalhou a cabeça, soltando um breve riso. Até onde ele podia perceber, ela não vira nada de errado. Quando, porém, ele virou para a recepcionista, viu em seu rosto que ela percebera a hostilidade que o jovem direcionara para a garota. Entretanto, ao ser observada pelo garoto, ela apenas sorriu como se nada houvesse acontecido.
Com um discreto flash de luz por baixo de sua capa, Lucet retirou um pergaminho e o entregou para a mulher, passando para ela também seu corvo prateado.
— Gostaria de consultar as informações do cliente desta missão — ele disse — Tenho de encontra-lo para que possa realizar a tarefa o quanto antes, ainda tenho outras missões mais demoradas para fazer, então, é melhor que eu faça essa o mais rápido que puder considerando meu tempo reduzido para termina-las todas.
A recepcionista acenou com a cabeça e repetiu o processo, apertando botões no quadro luminoso a uma velocidade impressionante antes de se levantar e passar pela porta que existia atrás do balcão.
Sofia até tentou começar uma conversa, virando seu corpo para falar com o garoto, porém, antes que pudesse dizer uma palavra sequer, a humana retornou, trazendo consigo o documento e o símbolo, os devolvendo a Lucet.
— Estas são as informações, bem como aparência do solicitante e meios de contato, contudo… — ela pausou com uma expressão um tanto indecisa, ainda segurando o pergaminho com as informações em sua mão direita.
— Contudo o que? — o garoto questionou, subitamente preocupado — Aconteceu alguma coisa com a missão?
— Não exatamente — a mulher respondeu, chacoalhando a cabeça — Aparentemente o cliente deixara instruções para o ninho.
— Que tipo de instruções? Tenho de fazer mais alguma coisa?
— Você não, nós — ela respondeu apontando para si — No momento em que o corvo que aceitara a missão declarasse seu intuito de executar a tarefa, ele seria imediatamente avisado e, quando realizamos esta demanda, o cliente deixou uma mensagem para você.
— Okay? — ele disse em um tom indiferente — e qual é?
— “Me encontre na fonte da praça central”.
— Certo…— o garoto respondeu, estendendo sua mão para receber as informações, contudo, diferente das expectativas, a recepcionista ainda manteve sua mão próxima a si — O que foi agora? Algum problema com as informações também?
— Ao informarmos sua identidade ao solicitante, o mesmo sugeriu que não olhasse as informações pois saberia imediatamente quem é o cliente ao vê-lo — A recepcionista finalmente estendeu seu braço — Entretanto, você não é obrigado a aceitar a sugestão, a escolha é sua.
Lucet ficou em silêncio por alguns momentos, ponderando a oferta. Sim, por um lado era mais rápido e eficiente utilizar as informações, contudo, aquiescer os desejos da curiosidade e explorar um breve mistério talvez fosse benéfico, especialmente considerando a possibilidade hostil que Sofia trouxera.
Ainda existia a possibilidade do mestre da garota não ser o mesmo a quem o garoto desejava atribuir a culpa, contudo, até onde podia se lembrar, ele fora o último com quem o jovem interagira antes do ataque a Elysium, então as chances eram remotas. Seus instintos o afirmavam com plena certeza de que isto era verdade, bastava ver agora as intenções e crenças da garota.
Pessoalmente, Lucet não tinha nada especifico contra ela, entretanto, a possibilidade da garota ser uma aliada de Puritas era um risco que ele não podia ignorar. As palavras do paladino ainda ecoavam em sua mente, existiam infiltrados no ninho, que garantia ele teria que Sofia não era uma devota daquela congregação de fanáticos?
Um pouco de mistério seria bom para sua mente. Uma distração o acalmaria e permitiria que processasse adequadamente, portanto, recolheu sua mão, deixando para trás o pergaminho solicitado, agradecendo a recepcionista e se virando em direção a saída. Sofia não hesitou em o seguir.
Durante o caminho, Lucet manteve-se em silêncio. Por vários momentos, enquanto desviava das armadilhas e proteções da passagem o garoto ponderou. Curioso, gostaria de saber mais sobre este solicitante misterioso que oferecera uma quantia generosa de peças de ouro por um dia do seu tempo, por outro lado, tentava processar a possibilidade de se tornar inimigo da garota que acabara de reencontrar.
A realidade da questão era que a única coisa o mantendo pensativo em relação a Sofia era a nostalgia, bem como, ainda que ele não tivesse completa noção do assunto, alguns assuntos hormonais de adolescente. Era inevitável que alguém da sua idade não começasse a considerar questões mais românticas.
Eventualmente, o par saiu pela porta da frente do bar e, após alguns minutos de caminhada, finalmente emergiram da parte mais sombria da cidade. Novamente, estruturas cristalinas podiam ser vistas por todos os lados, bem como construções metálicas e, para quem fosse mais perceptivo a magia, uma quantia absurda de mana constantemente fluindo de um lado ao outro, desempenhando inúmeras funções e silenciosamente executando incontáveis feitiços.
Sofia o explicou durante a jornada que o acompanharia até seu ponto de encontro, aparentemente, tinha de realizar algo de sua própria missão nas redondezas, e por tal, era mais interessante que andassem juntos. Lucet, ainda um tanto indeciso, aquiesceu o pedido, tentando distrair sua mente com a misteriosa identidade de seu cliente.
A dupla passou por diversas áreas da cidade. Das acomodações mais modestas até as mais luxuosas, de lojas diminutas a complexos gigantescos de comércio, estruturas governamentais a guildas privadas, tal como precedia a reputação da raça renomada por sua diplomacia e hábitos mercantis, Alta Lustra era casa de toda espécie de item e o coração de toda a raça Alfae.
Em certas instâncias, o par até mesmo parou para analisar fluxos mágicos particularmente interessantes ou tecnologias ainda a si desconhecidas. Durante este tempo, Lucet reparou mais e mais na garota.
Seu padrão de fala não era mascarado por disfarces arcanos e muito menos qualquer aspecto de seu físico. Com exceção da capa, roupas e máscara, esta que especificamente bloqueava divinações arcanas, a garota não parecia ter qualquer intuito de esconder quem era, quase como se tivesse orgulho de se mostra humana. O garoto não pode evitar temer um pouco esta demonstração.
Até mesmo sua aparência protegida ele facilmente revelou, afinal, quase não existiam magias que pudessem resistir ao poder do olho do Tirano que carregava consigo.
Debaixo do metal que compunha a proteção facial de Sofia, Lucet pode enxergar uma garota particularmente bonita. Seu rosto levemente arredondado, nariz pequeno, olhos castanhos e cabelo da mesma cor, sua pele de um tom moreno claro acompanhado de lábios finos levemente rosados, quase pálidos, sem qualquer maquiagem que adornasse sua beleza natural. Ao ver tanto, o jovem sentiu um leve calor subir a sua face e prontamente desativou o olho.
Foi, entretanto, quando chegaram a praça central que as coisas começaram a dar errado. O lugar era enorme, uma gigantesca fonte de mármore decorada com quarenta e quatro estátuas de guerreiros e feiticeiras Alfae montados em criaturas fantásticas que jorravam água por suas bocas e caiam em sete bacias diferentes que absorviam e alimentavam o sistema de irrigação das obras de rocha.
Ao seu redor, grandes árvores que proviam sombra para os visitantes descansarem bem como diversos bancos espalhados pelo local que vibrava com energia não apenas mágica, mas também uma familiar aura natural a qual Lucet já fora introduzido anteriormente e se lembrou sem demora.
“O poder dos Faeram foi usado neste lugar!” pensou entusiasmado, o ar puro e refrescante penetrando seus pulmões e acalmando sua mente atribulada “Impressionante!”
Sofia igualmente comentou sobre a questão, preferindo-o fazer em voz alta. Logo, Lucet começou a procurar o enigmático cliente e logo, a alguns metros de si, sentada sobre um banco próximo a maior das árvores existentes no local, estava uma figura ainda mais familiar que a garota que o acompanhava, afinal, ambos lutaram a dois meses atrás meros dias após ele acordar do coma.
Como se tivesse sentido sua presença, a figura virou em sua direção, sorrindo e acenando e as coisas começaram a fazer sentido para si, porém, sua companhia fez o impensável, dizendo:
— Encontrei meu alvo Lucet — ela disse, virando para o garoto antes de sacar sua lança furtiva e disparar — Nos falamos mais quando eu terminar a missão!