Os Contos de Anima - Capítulo 77
Nem sequer um instante foi desperdiçado pela princesa. Sua rica experiência de combate, bem como seu poder refinado aos extremos por anos de treinamento, a indicavam o caminho para vitória, por isso, após decretar a execução da oponente, agiu, começando o duelo com um simples gesto de sua varinha que, como se compusesse uma sinfonia catastrófica, trouxe ritmo a ventania, ordenando o poder invernal com o mais mísero dos movimentos.
Instantaneamente, a nevasca soprou com ainda mais força e o vendaval gélido convergiu ao redor da princesa, assustando até mesmo a confiante Sofia. Manter a camuflagem arcana diante da neve era não apenas inútil, tendo em vista que a neve constante cobria sua figura com flocos congelados, revelando sua posição, bem como drenante, portanto, para preservar sua energia, desativou a ilusão ao seu redor, focando ao invés disso em suas outras capacidades.
Feito uma graciosa maestra, Luna estendeu o braço que segurava a varinha a frente de si antes de jogar o outro na direção oposta, abrindo a mão livre que começou a reluzir com poder arcano. Sua perna direita surgiu a frente, contrapondo o membro que continha a varinha e então, servindo de suporte, a alfae misteriosamente saltou a frente, erguendo o armamento radiante em sincronia a sua investida.
Dispersando a pressão da tempestade, Sofia girou sua lança em frente ao seu corpo e a sua volta com tamanha velocidade que por alguns momentos as bofetadas gélidas deixaram de a atingir, posicionando por fim a lança transposta em suas costas diagonalmente, a ponta ensanguentada direcionada ao solo. A corvo flexionou seus joelhos, inclinando as costas e cabeça para frente como se estivesse caindo e então, avançou contra a oponente a passos velozes, galgando a distância entre elas em segundos.
A princesa, entretanto, estava pronto para ofensiva da oponente e, quando detectou a aproximação, cortou o ar com seu equipamento, deixando um rastro de luz escarlate por um momento que fez a corvo desviar, flexionando o joelho e saltando para a esquerda antes de girar o corpo e atacar pelo flanco. A corvo sacou sua lança, movendo-a com destreza feito uma serpente metálica no intuito de penetrar as entranhas da oponente.
E então, em uma reviravolta cármica, seus sentidos detectaram perigo, porém, antes que ela pudesse montar uma defesa suficiente, o ataque chegou. Uma estranha criatura de grande detalhe composta completamente de gelo investiu contra si, atacando-a com seu crânio com a força e a velocidade de um tiro de canhão.
A corvo sentiu seus ossos protestarem quando ergueu a lança a sua frente, afoita em se defender, isso, contudo, trabalhou contra ela pois quando o fez, o armamento escapou de suas mãos e fora prensado contra seu corpo, fazendo o impacto doer ainda mais, ultrapassando suas defesas arcanas, ainda que grandemente enfraquecido, porém, poderoso o suficiente para a arremessar para trás por alguns metros, parando apenas após fincar a lança no solo, rachando o gelo e estabilizando seu corpo.
Seu tronco estava coberto de uma fina camada álgida, suas costelas enviando diversos alertas dolorosos ao seu cérebro sobre o perigo que acabaram de enfrentar. Definitivamente não podia receber outro destes golpes ou o dano seria severo, senão diretamente letal. Contudo, antes mesmo que a garota pudesse recuperar o fôlego, sua oponente realizou seu movimento.
Com um poderoso passo a frente e uma estocada com sua varinha, Luna atacou. Sofia assistiu assombrada uma segunda criatura se formar em frações de segundo, idêntica a primeira, e voar em sua direção, cruzando o espaço entre elas tão depressa que por um momento a corvo creu ver seu poder replicado pela princesa.
A corvo rolou para o lado no último momento, desviando por um triz da frigida e gigantesca criatura que colidiu contra uma árvore, permitindo que a garota a observasse com mais atenção. Com a cabeça similar à de um lagarto, porém com uma juba contornando a base acompanhada de longos e esvoaçantes bigodes bem como a bocarra de um leão, a criatura era composta de um enorme corpo serpentino com tamanho que cada escamada era levemente diferente do resto.
Sofia, entretanto, não tinha tempo de admirar o poder da oponente, sabia que, tal como ela mesma intuía, a inimiga atacava para matar, por isso, se ergueu antes de saltar, chutando a carcaça de gelo para dar um impulso para trás, escapando de uma terceira criatura que colidiu contra a anterior no intuito de esmagar a corvo.
Ao pousar, a garota se ergueu, virando sua atenção para os movimentos da princesa, tentaria descobrir uma falha ou abertura e então atacaria. Se isso não funcionasse, desviaria até que a energia da alfae acabasse, afinal, esta não poderia ser ilimitada, independente do quão poderosa fosse a oponente.
Nos primeiros momentos, ainda que furiosa, Luna mantinha seu racional, explorando lentamente as maneiras de mover quantias tão imensas de poder da maneira mais eficiente. Ainda que carregasse grande força arcana em seu corpo, utilizar tanto assim de uma vez era algo que ela não estava acostumada, portanto, a cada ataque ela ia testando novas formas, movimentos e controles, gradualmente se tornando mais proficiente em sua nova tática de combate.
Resoluta e determinada, a princesa rodopiou, girando em alta velocidade enquanto formava um círculo escarlate radiante ao seu redor antes de, como se estivesse disparando uma funda, desse um passo determina, fazendo um corte diagonal de cima para baixo, enviando mais uma massiva fera gelada para esmagar a oponente que observava seu ataque anterior.
Quando a mesma desviou, Luna não perdeu tempo e saltou alto, girando múltiplas vezes no ar, formando sete cortes sanguíneos no ar, cada um direcionado a um ponto diferente do campo enquanto sua mente calculava furiosamente a maneira absoluta de exterminar a inimiga. Seu comando sobre a tempestade não falhou, sete grandes bestas se formando no céu antes de uma após a outra despencarem ao solo, como se a princesa fosse capaz de controlar as próprias estrelas a caírem do infinito acima.
Sofia, por sua vez, não perdeu tempo em desvia, correndo para os lados afim de escapar dos poderosos impactos. Nos primeiros três ataques, Sofia foi capaz de agilmente desviar das feras, fugindo de cada colisão sem muito esforço, contudo, ao subestimar os próximos ataques, quase fora esmagada.
No quarto ataque, mal teve tempo de pular para fora do caminho quando a besta se chocou contra o solo, estilhaçando ambos gelo e pavimento, formando uma pequena depressão no material. Enquanto estava em meio ao ar, a quinta fera descendeu, contudo, a corvo foi mais veloz, fincando a lança no solo, usando o material flexível do armamento como uma mola que prontamente se recolheu, arrastando o corpo inerte da garota junto consigo, a permitindo desviar por um triz.
A ponta da arma se desprendeu do solo, arremessando a corvo na direção da última besta cujo ataque houve escapado instantes antes. Suas pernas bateram duro no gelo. Ela sentiu os joelhos rangerem enquanto as escamas frigidas se partiam debaixo de si, contudo, mal ela teve tempo de tomar fôlego quando mais uma fera desabou em sua direção.
Reforçando seu corpo com mana, Sofia cravou a lança no gelo e, usando a mesma como um cajado, se forçou a mover, saltando para a esquerda, levando consigo o armamento. Seus pés sequer foram capazes de encostar no solo, porém, pois a última besta já a seguia, pronta para torna-la parte do solo.
“Maldita elfa! Sua mana não acaba não!?” ela gritou mentalmente.
Usando cada gota de força em seu corpo, a garota cravou a lança, bruscamente parando seu escape. Ela então agarrou com firmeza, fato esse que só não deslocou seus ombros pelo reforço mágico que aplicara na região e girou, exercendo o máximo de sua capacidade física para evitar a morte uma vez mais.
Seus pés encostaram no solo, contudo, devido ao imenso esforço que executara para desviar do último ataque, as pernas tremeram, faltando-lhe a resiliência para permanecer ereta. Os joelhos dobraram e a estrutura colapsou. Tal como o corpo de outrem fizera anteriormente, ela deslizou pelo solo, rolando abruptamente, desprovida temporariamente de energia para se reerguer.
Foi aí que a princesa agiu, decisiva e letal. No instante em que notou o corpo da oponente deslizando pelo campo após escapar do seu último ataque, sabia que o esquema estava próximo da conclusão, por tal, não perdeu tempo em carregar uma quantia ainda maior de energia em um movimento definitivo.
Sofia mal pôde acompanhar a velocidade da derradeira ofensiva da princesa. Como se estivesse golpeando com uma marreta, Luna agarrou a varinha com as duas mãos por sobre a cabeça e cortou o ar, fazendo um rastro de luz tão denso com o armamento que o brilho por si só obstruía a vista da corvo, contudo, o ataque não era na posição atual da garota, mas sim em um ponto que, considerando a velocidade decrescente e a ainda persistente falta de força de seus membros, a jovem corvo iria definitivamente parar e não seria capaz de se mover a tempo para escapar.
— Droga… — ela murmurou enquanto o desespero crescia em seu peito — Não posso morrer assim… Não para essa maldita elfa…
Ela então viu surgir em uma velocidade assustadora o último esforço da princesa que, em frações de segundo, ganhou forma nos céus brancos e tempestuosos como uma genuína punição celeste. A derradeira representante da fúria da descendente real de Lumina se manifestou, tão espessa quanto um castelo e tão longa quando algumas das árvores mais antigas de Jungla Iroko, a fera serpenteava no céu, escama após escama construindo seu destrutivo formato até que os últimos pelos de sua colossal e realista cauda se materializassem.
Diante de si, nos céus acima, a jovem corvo observava aquilo que representava uma real ameaça para a humanidade, um arauto do fim dos tempos que apenas a pontifícia seria capaz de combate. Ela não tinha mais o que fazer e, quando seu corpo por fim parou de deslizar, se entregou ao destino.
— Me desculpe mestre… — ela sussurrou — Perdoe-me santa líder… Falhei em minha missão… — Seus olhos instintivamente, ainda que sua visão estivesse bloqueada por crateras e montes de gelo fragmentado dos ataques anteriores, se direcionaram para onde lançara o feitiço de invocação — Raizen… Acho que essa é realmente a última vez hein?… Adeus… Meu querido amigo, não esqueça de trucidar essa herege por mim.
O céu tornou-se sombrio feito a noite ao passo que o colosso de gelo despenhou em direção a Sofia, o imenso poder de Luna convergindo para aniquilar todos os rastros da existência da humana da face de Anima. O decreto de uma única e simples palavra iria se tornar real, e a corvo na poderia fazer para impedir.
As presas titânicas da fera frigida seriam as primeiras a colidir com o pequeno corpo da humana. Para ela, as mesmas pareciam a foice da própria morte, porém, como se em um ato de fútil rebeldia, ela não fechou seus olhos. Seu corpo tremia, o poder dentro de si fora de controle enquanto inúmeros sinais de dor bombardeavam a mente implorando a inconsciência, a jovem se recusava por pura força de vontade abandonar a vista do seu fim.
A escuridão se aproximou, e mesmo diante dela, a corvo resistiu o abraço da desistência e seu mórbido conforto e, ironicamente, foi justamente essa teimosia que a permitiu ver o brilho e a fúria de sua salvação.
De repente, o som como o de um trovão ecoou por todo o espaço, estilhaçando milhares de janelas, bem como danificando inúmeras estruturas com apenas o poder sonoro. A princesa, segura da vitória, foi pega desprevenida pelo ataque, tendo que tapar seus ouvidos física e magicamente para resistir os danos e não ficar imediatamente surda.
Luna então vivenciou o surgir de uma enorme fera, três a quatro vezes maior que um tigre comum surgir em seu campo de visão. Pernas e patas tão grossas como árvores equipadas com garras tão grandes quanto as lâminas de uma guilhotina. Seu pelo lustroso e abundante mostrava cores de preto e branco alternado em padrões relampejantes, ocasionais arcos de eletricidade negra correndo por sua estrutura.
O mais assustador, porém, era sua face. Uma enorme bocarra capaz de engolir um adulto com facilidade equipada com presas que rasgavam com facilidade quase qualquer metal em existência, tudo acompanhado por um enorme focinho triangular, bigodes brancos e olhos vermelhos repletos de violência e ferocidade. A mera presença da criatura elicitou um tremor até mesmo da tão poderosa princesa de Lumina.
Antes que o ataque da inimiga pudesse ferir sua amiga, a fera se moveu, abrindo sua bocarra em uma maneira muito similar a uma cena de tempos passados. Do interior da besta, Luna avistou uma flâmula negra emergir, algo que não existia nesse mundo até onde ela soubesse, encoberta por arcos elétricos da mesma cor. O animal então respirou profundamente e disparou.
Uma vista paradoxa, uma luz sombria, rasgou o espaço, queimando o ataque mais poderoso da princesa, ou melhor, vaporizando a grande besta de gelo com tanta facilidade que a energia remanescente correu o ar e atingiu prédios nos arredores, eviscerando não apenas as estruturas, mas causando incontáveis mortes no processo.
Contudo, perto dali, e ainda assim isolado de tamanha destruição, jazia um corpo encostado sob a sombra de uma árvore, misticamente protegido dos infortúnios que sua estrutura desprotegida acarretaria devido a seu presente estado.
A mascara que cobria seu rosto havia caído, o amuleto que mascarava sua natureza havia perdido seu efeito sem o fluxo de magia que o mantivesse. Ali, encolhido perto das raízes da planta, um garoto de olhos heterocromáticos tremia. Ele sentia um grande frio, não do ambiente ao seu redor, mas de dentro de si.
O calor que sua vida deveria ter estava rapidamente se esvaindo. Os batimentos em seu peito diminuindo cada vez mais. Indignado com sua fraqueza, o garoto tentava se forçar a mexer, porém, estava enfraquecido, seus poderes inacessíveis ao passo que os fluídos rubros que davam força a cada um de seus movimentos escapavam por entre os dedos, pálidos e longos dedos que tentava cobrir o ferimento que lhe atravessava o peito, por pouco errando seu coração.
Ele não aceitava, não podia se entregar dessa forma. Tinha tanto pelo que e tantos por qual lutar, tanta coisa que ainda desejava fazer e ver. O jovem então se lembrou de sua mestra, a mãe que por tantos anos não mediu esforços para cuidar de si, lembrou de seus olhos violetas, de seus ensinamentos e sua figura, de seu sútil sorriso e seu gentil encorajamento. Uma a uma, as cenas praticamente saltaram de suas memórias como se observasse toda a sua existência em uma derradeira exibição, parando por fim no grande conflito de Elysium.
Vivenciou uma vez mais o desespero de ver aquela que tanto fizera por ele próxima a morte por sua fraqueza e se negou a aceitar. Ele tinha de fazer alguma coisa! Tinha de lutar! Tinha de se levantar não importava o que fosse! Não iria permitir que qualquer mal se aproximasse dela!
Sem que notasse, lentamente, a poça de sangue em qual se deitava começou a brilhar. Esta mancha escarlate e morna que decorava o solo irrompeu como flâmulas douradas e fumo cinzento. O garoto, porém, nada sabia. Diante de si, apenas a visão do maldito paladino segurando sua mãe pelo pescoço, ele vendo-a sufocar sem nada poder fazer. Em sua mente, uma única palavra ecoando incontáveis vezes, focando cada fibra de seu ser em uma única ação.
A cada repetição, o brilho das chamas douradas aumentava um pouco mais, o fumo se tornando cada vez mais espesso, quase tangível. A essa altura, os batimentos do garoto estavam tão lentos que a cada pulsar, seu corpo praticamente convulsionava com o tremendo esforço que ele estava realizando. Ele se recusava a aceitar este destino! Ele tinha de agir! AGORA!
O sangue agora parecia ter vida própria, luz e trevas inundando cada gotícula com tamanha intensidade que a poça parecia ser feita de estrelas. O solo, rachou. O garoto, por um efêmero, porém distinto, instante se perdeu na sensação que emergira em seu corpo. Neste momento, ele era tão grande quanto o planeta. Neste momento, sua vontade era lei.
Imperceptivelmente, no declarar de sua vontade, Anima vibrou, prenunciando a chegada de um temível poder sobre seu solo e, institivamente, a raça dos filhos do pó sabia que algo havia mudado. Ainda que não tivessem ouvido, sentiram o instante onde o garoto comandou ao mundo, e ele respondeu.
— Levante-se.