Os Contos de Anima - Capítulo 79
Nesta altura do combate, Luna já obteve um certo controle. Com seus constantes ataques gélidos danificando e acorrentando a grande fera elétrica ao solo, a garota não tinha tanto a temer da oponente restante, contudo, tal como ela, temeu os eventos que transcorreram nos minutos seguintes.
As luzes que embebiam o solo radiavam força, uma assustadora quantia de poder que deixava até mesmo a poderosa princesa insegura de sua capacidade de confrontar tal energia. Sofia, por sua vez, permanecia atônita, descrente que o garoto, um verme meio-sangue, um herege que roubou o poder de Puritas, era capaz de despertar algo tão terrível.
Ela sentia, nas partes mais profundas de sua mente, que aquilo era algo que pertencia a si, um poder que ela mesma era capaz de invocar, um direito, um presente que o criador deixara dormente em seu sangue. Ainda assim, aquilo que realmente ocupava sua cabeça não era a expectativa ou potencial.
Sofia poderia desejar este poder em outras ocasiões, mas agora, não. Diante do inimigo, ela não conseguia sentir qualquer coisa que não fosse medo, um indescritível e inescapável terror do que estava por vir. As orbes rubras em seu rosto radiavam pressão e comando, uma imperiosa sensação de inferioridade preenchendo cada fibra de seu corpo.
Para seu choque, ela se via compelida a se prostrar, como um serviçal se ajoelha humildemente diante de seu rei. Antes que pudesse impedir, seu corpo agilmente se dobrou, joelhos cedendo à pressão, músculos obedecendo o impulso, costas se curvando e, quando se deu conta, seus olhos enxergavam apenas a terra partida e pulsante, a energia radiante encostando em seu rosto.
— N-não pode ser! — exclamou incrédula, sua mão apertando a roupa, o coração martelando descontrolado — Eu, me prostrando, para ele!? Para um meio-sangue!? Não! Me recuso! Isso é mentira! Uma ilusão! Um truque!
Por mais que gritasse desesperada, tentando se convencer que isto era uma obra do oponente a garota não tinha escolha. Seu estado atual era algo proveniente de si própria, uma anormalidade em sua existência que a forçava a reconhecer o status atual do oponente, ainda que desejasse parti-lo em pedaços, neste exato momento ela não conseguiria erguer sequer um único dedo na direção do inimigo.
E então, veio o silêncio.
Uns descreveriam esta cena como o agir da própria morte, silenciando todo rastro de energia que existia ali, outros, porém, analisariam a cena como um fôlego, um daqueles que se segura antes de mergulhar ou então a leve brisa antes da tempestade, porém, para a garota que não tinha poder para mexer um musculo que fosse, a cena foi um punho.
Um por um, os dedos do meio-sangue se dobraram, flexionando as juntas parcialmente, formando uma garra com a palma aberta, porém, foi no momento seguinte, onde ele cerrou-os por completo que o medo implantou-se irremediavelmente na corvo que o assistia.
A cada dedo que se fechava, estalos ecoavam. Os sons eram tão altos e horrendos que pareciam mais ossos fraturando, ritmicamente fazendo a garota tremer. Quando por fim ele formou o punho, as luzes que iluminavam as rachaduras desapareceram.
Por alguns momentos, vãs esperanças adentraram o coração de Sofia.
Teria o poder falhado? Estava ela agora livre dessa pressão tirânica? Tantas questões passaram pela cabeça da jovem que via uma saída para sua situação, porém, para todas elas, a resposta era uma única, não.
Raízes, ou melhor, veias cresceram por entre as rochas e seus fragmentos. Cada partícula de luz e treva outrora existente, agora fora tomada por um brilho sanguíneo advindo de ramos rubros que cresciam a velocidades visíveis, como se um órgão estivesse sendo estabelecido naquele lugar.
Luna, que agora tinha mais tempo para analisar a situação com uma mensura de calma enquanto aprisionava a fera elétrica no gelo, reparou algo curioso. As veias não surgiram do nada.
Observando com extrema atenção, ela descobriu que as veias convergiam em um único ponto, nascendo e se estendendo a partir do solo imediatamente abaixo dos pés de Lucet, além disso, ao reparar nos breves tremores que o corpo do garoto exibia, comparando-os com movimentos exibidos pelas estruturas, entendeu que os fenômenos estavam diretamente conectados com a vida, ou mais especificamente, os batimentos cardíacos do garoto.
— Que curioso Lucet… — ela murmurou enquanto balançava sua varinha, disparando um construto em uma pata que havia se libertado, selando-a novamente — Parece que você tem mais poder em si do que tem noção…, mas… O que é isso?
Os olhos do garoto subitamente irradiaram luz escarlate, um único e avassalador pulso estrondou pelo campo, chacoalhando todo o firmamento, e então ele disse:
— Ergam-se meus soldados… — uma voz sobrenatural, violenta, ríspida, anciã tomou conta das cordas vocais do garoto — Levantem-se e destruam Puritas!
Nem mesmo o som foi capaz de se dispersar no espaço quando um outro tomou conta. Do solo, sons pedaços, primeiramente abafados, ecoaram. Por um momento, Luna ponderou se haviam instalado explosivos no solo, logo dispensando a ideia como besteira, ao invés disso, rapidamente enviando sua energia gélida ao solo, tentando detectar o que acontecia embaixo dos seus pés.
Entretanto, no instante em que sua energia entrou em contato com a luz escarlate das veias, a garota sentiu uma forte, quente rejeição a sua interferência, forçando-a a retesar seu poder, tomando uma atitude mais passiva.
Os sons aumentaram, algo estava chegando, rápido. Sofia, pânico finalmente a livrando do transe, ergueu-se estabanada, agarrando sua lança com todas as forças que tinha, usando-a como um bastão para se apoiar e, quando finalmente conseguiu se erguer, prontamente saltou diversas vezes até que alcançasse alguma estrutura não engolida pelas veias reluzentes, parando enfim sobre uma árvore um pouco mais afastada.
E então, os sons irromperam do solo em uma imagem aterrorizante.
Dezenas de mãos partiram a rocha, emergindo das fissuras, porém, não eram simples mãos, e sim ossos, esqueletos tão vermelhos quanto sangue agarram e partiam o as estruturas, tentando avidamente se erguer e se libertar de seu cárcere.
Gradualmente, os membros cujos dedos era pontudos como garras arranharam e fragmentaram o firmamento, lentamente revelando um cotovelo e logo um ombro até que foram capazes de se apoiar, forçando o caminho a quebrar e revelar o resto de si.
Em minutos, crânios escarlates se revelaram, seguidos de troncos e com o tempo quadris. Nos últimos momentos, as criaturas tiveram alguma dificuldade em escapar, se apoiando nos joelhos e mãos antes de retirar seus pés por completo, levantando-se em meio aos escombros, fragmentos de rocha escorrendo por sua estrutura escorregadia, veias que ainda se conectavam a eles se partindo lentamente.
— Está levantando os mortos!? — Luna exclamou horrorizada — Não pode ser! Onde aprendeu isso? Nem mesmo os Durza são capazes de reverter a morte!
Contudo, antes que ela pudesse analisar ou procurar respostas, uma transformação se iniciou nas pilhas de ossos. Um segundo pulsar então ecoou pelo espaço, fazendo-os vibrar todos. Com o estímulo, espasmos ocorreram descontroladamente, diversas partes das existências colidindo entre si, dentes batendo com tamanha força que era capaz de compará-los a uma companhia em marcha e então, chamas.
Flâmulas rubras feito sangue acenderam nos ocos de seus crânios, tomando o lugar do que deveriam ser olhos, instaurando o silêncio uma vez mais, apenas para que este fosse desfeito por um terceiro pulso, um que foi sincronizadamente replicado por cada uma das orbes incendiárias.
Quando isso ocorreu, as veias terminaram de se separar do solo, retornando em grande velocidade para o núcleo, o próprio Lucet, escalando seu corpo e cobrindo-o por completo, formando uma espécie de casulo ao seu redor que pulsava repetidamente, irradiando luzes sanguinárias, acompanhando o ritmo de seu coração.
Ao mesmo tempo, os esqueletos começaram a tremer e, a cada vibração, eles se transformavam em algo novo. Primeiro, veias rapidamente cobriram seus corpos, espalhando de forma que, como Luna bem notou, era estranhamente similar as formas de vida inteligentes de Anima.
Em seguida, órgãos se formaram no centro da caixa torácica, mostrando pulmões, intestinos, rins, fígado, estômago e logo, um coração que batia no mesmo exato ritmo do casulo pulsante.
Depois, fibras nasceram, se espalhando por todos os lados, rapidamente cobrindo e conectando as juntas, acompanhadas de estruturas neurais que as acompanhavam e logo, a imagem de dezenas de humanoides sem pele se formou naquele campo, seus olhos brilhando com fogo que parecia ter surgido das profundezas da perdição.
Pele então cresceu naqueles corpos, anormalmente clara, pálida como a dos mortos, porém nova, sem qualquer marca ou apodrecimento, contudo, antes que tivessem tempo de admirar a nudez, a terra rachou uma vez mais, fragmentando ao ponto de se tornar poeira antes de, feito areia viva, escalar os corpos e os cobrir, dando-os roupas que, para a surpresa de ambos corvo e princesa, eram exatamente iguais às que vestia Lucet, incluso o furo na região do plexo solar, revelando parte da palidez abaixo.
As vestes, por sua composição, possuíam ambos uma cor mais clara que as roupas do garoto, como também uma textura mais surreal, arenosa, como se estivessem prestes a se desfazer a qualquer momento, contudo, as mudanças ainda não haviam acabado.
Para o toque final, adentrando uma categoria desconfortável, os rostos das criaturas se formaram. O que antes era uma massa disforme de olhos flamejantes, lentamente ganhou feições. Estalos ecoaram uma última vez ao passo que dentições, cartilagem e pelo começou a crescer.
Em questão de segundos, estruturas adicionais se formaram. As criaturas agora possuíam cabelo castanho claro, orelhas levemente pontudas, um rosto minimamente mais afinado, com um nariz e lábios que assumiam a mesma proporção. De uma forma macabra, os seres subitamente quedaram boquiabertos, formando um distorcido pseudo sorriso enquanto os dentes um a um cresciam e preenchiam os espaços da gengiva.
Simultaneamente, todos bateram os dentes, cerrando a boca numa expressão mórbida, olhando fixamente para o vazio, como se tentassem enxergar além do que estivesse diante de si, e foi então que Luna e Sofia notaram, abismadas, que estas dezenas de figuras eram idênticas ao garoto, com a única diferença que, ao invés de olhos, chamas rubras brilhavam em seu lugar.
Por alguns momentos, permaneceram em silêncio, as flâmulas vermelhas reluzindo em ritmo com o pulsar do casulo, porém, veio então o momento em que o mesmo começou a rachar, sons como o de galhos se partindo advindos da estrutura, rachaduras a cobrindo rapidamente até que, subitamente quebrando, fragmentos pulsantes caindo ao solo.
No instante em que encostaram no solo, se tornaram névoa, um fumo rubro que pairou em volta do corpo do garoto que agora permanecia imóvel, tal como suas dezenas de réplicas, mas, a inércia durou pouco tempo.
Lucet tomou um longo e alto fôlego, inalando com o máximo de força que seus pulmões eram capazes de produzir, sugando toda a névoa para dentro do seu corpo ao passo que seus olhos, duas joias sanguinárias, luziam com ainda mais intensidade. No fim do processo, o garoto parecia ter dois faróis rubros instalados no crânio, versões mais potentes das chamas que brilhavam em suas réplicas.
O garoto então sacou sua garra, erguendo a lâmina na altura dos olhos antes de abaixar seu corpo levemente, entrando em postura de combate, uma face enraivecida decorando sua face, lábios se movendo silenciosamente. As réplicas prontamente imitaram o movimento e então, ao alcançarem a área onde deveria existir o equipamento, a vestimenta arenosa se abriu, revelando uma parte da coxa.
Foi então que um som molhado se manifestou ao ponto que a pele, músculos e estruturas se partiram, revelando a estrutura óssea rubra uma vez mais, apenas para, em seguida, estalos ecoaram no ritmo que um osso começou a crescer a velocidade visível, formando um cabo similar ao do equipamento utilizado pelo garoto, porém, de cor rubra.
As réplicas então agarram os cabos e puxaram com toda a força, sem qualquer hesitação ou expressão em suas faces. Diferente da fratura esperada pelo acontecido, as garotas observaram atônitas ao passo que uma lâmina, uma versão sanguínea da arma utilizada pelo garoto, se formava em questão de segundos.
Momentos depois, as estruturas se fecharam, a veste arenosa cobriu a pele reformada e então, as réplicas assumiram a mesma postura do corvo, cada uma delas movendo os lábios no mesmo ritmo que ele.
— O que será que estão dizendo? — Murmurou Luna apreensiva.
Sofia, cujo corpo enfraquecido quedava mais próximo a uma das réplicas, porém, viu com clareza o que diziam ao interpretar os movimentos dos lábios.
“Não vou deixar…” Eles diziam “Não vou deixar você encostar na minha mãe… morra… paladino de Puritas… devolve… ela… solta… ela…”
A essa altura, guardas da cidade se aproximavam para averiguar o ocorrido, bem como a população curiosa que tentava enxergar por entre o círculo de contenção formado pelos agentes.
Lucet e seus soldados avistaram a multidão que se formavam e então, como um rugiram a frase que chacoalhou o campo no ritmo em que disparavam para o combate contra todos, indiscriminadamente.
— MORRA PALADINO MALDITO! MORRA PURITAS!