Os Contos de Anima - Capítulo 7
Até mesmo Kaella, uma Alfae altamente estudada que já vivera centenas de anos e passara por inúmeras experiências, não conseguiu manter a calma quando digeriu a questão.
— Então o garoto é mesmo um meio-sangue?!? — ela exclamou exasperada — Você tem noção do potencial dele? E do perigo que ele está se a Congregação o descobrir? Essa criança é um verdadeiro tesouro se bem direcionado e treinado e pode se tornar alguém formidável, mas se ele for capturado por aqueles com más intenções e preconceitos…
O homem apenas bufou e respondeu.
— É claro que eu sei Alfae. Esta criança é o fruto de um amor que de acordo com a congregação não deveria existir. O que o aguarda é uma vida dificil, pois são poucos aqueles que aceitarão sua existência e o tratarão bem. Seu potencial, como muitos meio-sangues que surgiram na história, é igualmente grande e ele pode alcançar muito, mas, ao mesmo tempo, até para aqueles que não seguem os ideiais de Puritas o verão como uma ameaça se não puderem incorporá-lo aos seus planos.
A elfa concordou com um aceno da cabeça. Muitas dúvidas, porém, ainda populavam sua mente, e então ela começou a dispara-las todas.
— Mas… quem foi que o deixou aqui? O garoto disse que, de acordo com você, foi um casal que o deixou sob sua guarda quando bebê e que esse casal seriam seus pais, isso é verdade? Você sabe como eles são? E sabe também a quais raças eles pertencem?
— Bem, sim, isso é verdade — ele respondeu — Oito anos atrás, um casal que nunca havia pisado em Elysium simplesmente surgiu na minha porta. Eles estavam feridos e ensanguentados, suas vestes rasgadas, e pareciam prestes a cair mortos a qualquer momento, além disso, ficavam constantemente correndo os olhos por todos os cantos, como se algo os fosse atacar. Em seus braços, um bando de panos brancos mal-ajeitados que guardava uma criança completamente limpa que nenhuma gota de sangue foi capaz de tocar.
— A mulher era uma Alfae de olhos violetas usando um capuz que cobria todo o seu corpo, nas partes rasgadas das suas vestes era possível ver que sua pele era pálida. A acompanhando havia um humano que, julgando pela armadura de cruzes douradas nos ombros e peito, deveria ser um paladino. Algo curioso que reparei é que eu não conseguia sentir um traço sequer da aura da fé que geralmente acompanha esse tipo de gente — o homem continuou — O estranho de tudo isso é que eles não deveriam ter conseguido entrar aqui com essa facilidade, só um poder maior que o do criador das defesas de Elysium poderia ter entrado assim, ou alguém que possua a autorização de Maximilian.
— E como se não bastasse essa esquisitice toda, eles apenas entregaram a criança, o homem falou a palavra “filho” e depois desapareceram como fumaça — ele reclamou — Pela aparência deles pude perceber que estavam numa situação desesperada, mas mesmo assim, não custava falar umas duas ou três palavrinhas a mais.
— Você tem alguma pista sobre a identidade dos dois? — Kaella questionou.
— Eu conheço a Alfae — ele respondeu — Não vi seu rosto, mas a aura dessa minha companheira de batalha era inconfundível. Ela participou de muitas caçadas ao meu lado e, apesar de não saber muito de sua identidade, tenho certeza que era ela, mas….
— Mas o que? — a Alfae questionou ansiosa.
— Do jeito que ela estava protegendo o garoto quando chegou indicava que era a mãe da criança, mas, a Angela que conheço jamais teria um filho com um humano — ele respondeu com um breve riso — Aquela mulher jamais se relacionaria com um homem da minha raça, ainda mais se ele for um paladino.
— Será então que o paladino estava apenas falando no lugar dela? — Kaella propôs.
— É possível, mas ainda assim eu não consigo ignorar o sentimento de que os dois são realmente os pais desse garoto — o homem respondeu — Mesmo que a Ângela que eu conheci realmente odiasse os paladinos e a ordem destes guerreiros fanáticos abolisse acima de tudo a mistura de sangues. Bem, quando eles deixaram o garoto, também deixaram uma outra coisinha junto com ele.
Ele então descruzou os braços e levantou uma das abas de seu sobretudo, o homem então procurou dentro de diversos bolsos que ali existiam e, após alguns instantes, retirou uma pequena corrente extensa o bastante para servir de colar que carregava em sua ponta um medalhão do tamanho de uma pequena maçã. O homem então jogou o conteúdo para a elfa que apanhou rapidamente, suas mãos levemente trêmulas.
Nas palmas pálidas da elfa descansava o objeto. O medalhão era frio ao toque e prateado tal como a corrente, ele tinha um cristal vermelho como sangue cravado na frente que servia como a púpila do símbolo de um olho no centro de um triangulo, contendo no verso os dizeres.
“Nam quinque, neque occident vos stillabunt”
Enquanto segurava o objeto, a Alfae conseguia sentir sua energia sendo drenada ao ponto de que após alguns segundos a fadiga já começava a ameaçar sua consciência. Assustada, Kaella tentou reforçar suas mãos com mana, mas, percebeu que ao fazer isso a drenagem apenas aumentou, além de também começar a drenar sua mana.
— Pare com isso, se continuar incentivando o medalhão com mais poder, ele vai te sugar até a morte — o homem aconselhou.
Kaella seguiu o conselho do homem e relaxou, parando então de resistir. Ela encolheu suas mãos para dentro de suas mangas e segurou o medalhão desta forma, assim impedindo o contato direto com seu corpo.
— Aliás — ele continuou — Alguém de sua posição e conhecimento deveria reconhecer essa relíquia não? Consegue reconhecer as inscrições em antigo byblônico?
Inicialmente, ao ser surpreendida pelo medalhão, a elfa por reflexo começou a resistir devido aos seus anos de experiência em combate e artefatos místicos. Mas quando o homem lhe chamou a atenção para o artefato, ela analisou o objeto com mais atenção e logo se lembrou exatamente de onde conhecia aquele artefato, uma expressão conflitante surgindo em seu rosto.
— Esse medalhão… — disse ela lendo as letras novamente com atenção, murmurando — Como conseguiram isso?… Isso é uma relíquia de Puritas, uma das ultimas que existe… Será que?… Não… Nenhum paladino faria isso… Mas eles estavam sendo perseguidos… E o paladino não tinha a aura da fé…
— Oh não! — A elfa continuou, sua voz aumentando fortemente laceada de preocupação — Se descobrirem… mas já fazem anos… será que acreditam que está com eles ainda? Não pode ser… Tudo isso para proteger uma criança? Mas isso é uma promessa divina! O que estavam pensando!? Existiam formas mais fáceis de protegê-lo…Mas não por quinze anos… aiai… Provavelmente aquele paladino gastou toda sua aura de fé para conseguir ativar isso… Mas… mesmo protegido por esse tempo… mesmo treinado em Elysium… Não seria o bastante para garantir sua vida… especialmente agora que não só é um meio-sangue, mas também o filho dos criminosos que roubaram essa relíquia…
O homem riu ao ver a elfa lutando contra si mesma.
— Provavelmente eles não apostavam na educação básica de Elysium, mas sim na guia de um mestre que descobrisse o verdadeiro valor do garoto… ou mestra — Ele disse, sorrindo levemente.
Um sabor amargo permeou os sentidos da elfa.
— Está insinuando que estou sendo manipulada? — ela bradou indignada.
— Euuuu? Claro que não mestra Alfae, excelentíssima Guardiã de Lybra, como poderiam meros fugitivos driblar a grande mente que você possui? — O homem retrucou rindo.
Kaella ficou em silêncio por alguns minutos, mas não demorou muito até que sorriu amargamente ao falar.
— Ah! Que se dane! Eu certamente sou a mestra mais adequada para o pequeno corvo, sendo eu mesma um — Ela suspirou — Eu quero ele, não só como discípulo, eu vou adotá-lo.
O diretor, como se já tivesse previsto esse resultado, apenas sorriu e sacou um papel dobrado de um dos bolsos de seu sobretudo e atirou na direção da elfa. Ela prontamente apanhou, desdobrou, e, quando o leu não pode conter o profundo suspiro que a escapou pela boca, as pontas dos seus dedos massageando suas temporas.
Aquilo era o documento de adoção que continha seu nome e o da criança, além como o do próprio diretor, Albus Sabris, com o campo para a assinatura do homem já preenchido, deixando apenas uma linha para que Kaella assinasse.
— Você sabia que eu viria? — Ela questionou um tanto desconcertada.
— Claro que sim — Ele riu — Depois que este garoto foi entregue a mim, e especialmente depois que eu descobri o que era este medalhão, eu não tirei os olhos dele por um instante sequer, sempre o monitorando com diversas ferramentas mágicas. E… digamos que, como um experiente caçador de recompensas, sou muito bom em seguir meus alvos.
— Desde sua espetacular demonstração de ilusão até o teste sanguíneo do garoto e seus comentários sobre o potencial dele, tudo estava sob minha vigia — ele continuou, zombando — especialmente seu adorável feitiço de leitura emocional, não tem vergonha Guardiã? Invadindo os pensamentos de uma criança que não sabe proteger a mente?
A elfa tremeu levemente, um leve rubro colorindo seu rosto pálido.
— Então até mesmo a nobre Guardiã de Lybra consegue sentir emoções mundanas — O homem zombou ainda mais.
Uma aura violenta começou a irradiar da mulher. Ela estendeu sua mão e apontou na direção do homem, conjurando uma flecha negra que rodopiava no ar, antes de dispará-la no diretor, zunindo enquanto cortava o ar como uma sombra especialmente barulhenta e veloz. Runas brilharam por cada centímetro de roupa que Albus vestia, uma camada de luz cobrindo seu corpo.
O som de metais colidindo soou pelo ar. A flecha foi dispersada pela barreira luminosa, mas, a proteção rachou e explodiu em estilhaços brilhantes. O caçador estava intacto, porém, uma expressão de apreensão surgiu em seu rosto enquanto uma mão disparou na direção da lança, e em instantes ele estava de pé, a ponta da lança reluzindo na direção da elfa.
Kaella ergueu sua outra mão na mesma altura da primeira e seu corpo começou a irradiar mana. Dez flechas negras se materializaram, cinco de cada lado, flutuando próximas aos braços da Alfae. A joia na ponta da lança começou a brilhar, fazendo com que a sombra luminosa de um tigre de pelo branco com listras negras e olhos azuis como safiras surgisse atrás do diretor, soltando um rugido que chacoalhou toda a estrutura, estourando todos os vidros do orfanato. E o tigre falou, sua voz grave e poderosa:
— A muito já não pede meu poder Albus! Temos uma caçada?
Como se em resposta ao questionamento, vários gritos soaram atrás da porta, e logo, dezenas de passo soaram pelo chão do corredor. Tal como se tivesse sido banhado por água fria, o diretor encostou a lança de volta na parede.
— Não Baihou, meu companheiro, hoje suas presas permanecem guardadas, me perdoe.
O tigre rugiu e desapareceu, deixando, para trás as palavras.
— E finalmente achei que poderia sair deste marasmo, ache-nos uma presa Albus, estou me sentindo enferrujado.
O homem apenas suspirou. Kaella por sua vez retraiu seu poder e desfez as flechas negras, e como se tivesse previsto, se virou para a porta. Lá estava o centro desta discussão, o garoto meio-sangue os olhava, e pelos seus olhos arregalados, ele havia presenciado parte do confronto.
— I-instrutora Kaella? Diretor Albus? P-Porque estavam brigando? E diretor, o senhor é um invocador?
Como se o feroz guerreiro nunca tivesse existido, um sorriso gentil decorou o rosto do homem quando ele se virou e respondeu com a maior delicadeza que pode juntar em seu corpo.
— Era apenas um pequeno teste para sua nova mestra Lucet, e sim criança, eu realmente sou um invocador.
O garoto ficou paralisado. Nova mestra? Do que ele estava falando? O seu cérebro já começara a trabalhar furiosamente para chegar a uma conclusão, porém, antes mesmo que pudesse concluir seu esforço, Kaella se virou para ele e disse:
— Sim — ela afirmou, uma tinge de rubro em seu rosto — A partir de hoje você será meu discípulo, e para garantir que tenha o maior tempo e qualidade de aprendizado possível, eu resolvi adotá-lo e tirar você deste lugar onde este invocador rude não o ensinou sequer um pingo sobre magia, apesar de todas as suas habilidades.
— Além disso — ela continuou — para que possamos dar foco para seus talentos pequeno corvo, você não terá mais aulas em Anansi, e receberá todo seu treinamento, seja de magia, combate ou qualquer outro assunto, diretamente de mim. Posso não ser uma mestra em outros assuntos como os especialistas de Anansi, mas lhe garanto que não existe ninguém em Elysium mais compatível e qualificada para lhe ensinar o caminho de um corvo do que eu, afinal, sou a única daqui com esse poder.
— Caso duvide de minha habilidade, basta perguntar ao “exímio” mestre tigre aqui — ela debochou, apontando para o diretor.
O garoto nem sequer havia removido os olhos da mulher, afinal, já sabia o quão poderosa ela era, quando a viu invocando aquelas paisagens e as flechas negras em instantes. Ele então apenas deu uma leve sacudida com a cabeça, indicando que não precisava questionar.
Nisso, a elfa, cujos dedos brilhavam, atirou o papel, novamente dobrado, com uma nova assinatura negra em seu conteúdo para Albus e caminhou em direção a porta, guardando o medalhão no lustroso saco negro amarrado em sua cintura, onde várias cabeças agora espiavam por trás de Lucet. Ela então estendeu sua mão para o garoto.
— Vamos?
A elfa nem ao menos precisava usar a leitura emocional para saber a resposta do garoto já que seus olhos que reluziam como fogo já diziam tudo, não havia nada no mundo que ele quisesse mais do que isso! Mesmo assim, ela parou em frente a ele, pôs uma mão em seu ombro e disse:
— A não ser que prefira ficar? — ela disse sarcasticamente.
Ele chacoalhou a cabeça de um lado para o outro furiosamente. Sua escolha era óbvia, afinal, tudo que mais queria era ser capaz de aprender magia, e com alguém que, tal como ele, era um ‘corvo’ como mestre, ele certamente poderia aprender isso da melhor maneira possível!
— Então vamos! Hora de mostrarmos para seus colegas e para esse Albus brutamontius como nós corvos sabermos sair — Um sorriso largo decorou o rosto da elfa — Com estilo!
Luz percorreu seus corpos e, tal como estrelas, iluminaram a sala. O ar então zuniu e o canto de um corvo soou pelo ambiente, mas não alto como o rugido do tigre, e sim como um sussurro que penetrava diretamente na mente e soava distante, melancólico feito um lamento antes da morte. Segundos depois, ambos explodiram, deixando centenas de penas negras para trás que voaram para todas as direções, escurecendo a sala num tapete negro de plumas.
As crianças pegas na explosão não se feriram, mas ficaram cobertas de penas. Com sons de tosse ao seu redor, Albus suspirou ao bater em sua roupa, tirando a plumagem recém adquirida.
— Humph! Exibida!