Os Contos de Anima - Capítulo 81
— Você… — ele continuou dizendo, palavras entrecortadas pelo ranger de seus dentes — Pare de balançar…
O garoto impôs força ao seu braço que relutava em obedecer, enviando ondas de dor ao seu cérebro já sobrecarregado, causando-o ainda mais desconforto enquanto a energia fervente tempesteava em seu interior.
A essa altura, quem observava por detrás da proteção dos guardas se encontrava atônito na crescente ameaça emanando daquele único ser. Os próprios defensores lutavam desesperadamente em busca de cumprir sua tarefa e assegurar a retirada dos civis, bem como conter o perigo até que chegassem reforços.
Quase meia hora já havia se passado desde o ataque inicial a princesa, habilmente impedido pelo poder do mesmo meio-sangue cujas forças eram agora obrigados a enfrentar, sua relutância e medo crescendo a cada ofensiva do jovem e seus companheiros.
Relutantes, a batalha continuava entre os serviçais do monarca alfae e do filho da guardiã, porém, quando a defesa deles finalmente foi ultrapassada por um dos guerreiros rubros, uma figura surgiu, envolta em sombra, cruzando a praça em alta velocidade, impedindo um crime em um momento oportuno onde a criatura hesitou.
Ela protestara, pedindo o cessar do combate, dizendo coisas sobre um passado que a esta altura já virara conhecimento público, mas ninguém exatamente sabia a total extensão dos danos a todos os envolvidos.
Ainda confuso com o constante mesclar da figura a sua frente, o guerreiro apontou a arma escarlate na direção da oponente. O esforço custava muito de seu corpo já atribulado, ele podia sentir o dano que a mera tentativa causava, as fibras musculares de cada uma das estruturas envolvidas no movimento rasgando perceptivelmente.
Podia enxergar familiaridade diante de si, mas, toda vez que a figura estranha parecia estar próxima de estabelecer uma identidade, a outra prontamente interrompia. A voz feminina era logo sobrepujada pela face retalhada do paladino.
Não se podia deixar enganar, este era só mais um truque sujo de Puritas! Sim! Ele tinha de lutar! Abandonar sua mãe a própria sorte não era uma opção! Respirando fundo, o guerreiro rubro rugiu, erguendo a lâmina e cortando verticalmente me direção ao inimigo, investindo com um passo carregado de tanta energia que o solo fragmentou e luziu com poder escarlate.
A figura saltou para trás, desviando com facilidade do ataque, porém, o guerreiro não se renderia tão fácil, pisando com ainda mais força no solo para seguir sua ofensiva, passando a espada para uma mão antes de ergue-la em um largo movimento diagonal. A oponente, porém, foi mais rápida.
Sacando um par de espadas curtas da sua cintura, a figura aparou o golpe antes mesmo dele chegar à metade de sua trajetória, empurrando o armamento de volta ao chão.
— Lucet! — ela exclamou — Sei que você pode me ouvir! — insistiu, olhando em uma direção em particular enquanto uma mensura de angustia adentrava sua voz — Não há mais perigo, por favor, pare!
Os sons emitidos pela figura, a silhueta, confusa, porém familiar, e seu estilo de luta, tudo isso apontava para alguém que o garoto conhecia, contudo, isso não era possível! Ele podia enxergar o paladino, os tantos malditos paladinos, a centímetros de distância de si, bloqueando seus ataques de tantas maneiras diferentes, ferindo mais e mais esta pessoa, estas pessoas.
— Urgh…. — O meio-sangue respirou com dificuldade.
O garoto grunhiu enquanto as dores de cabeça pioravam. Ele podia ver dezenas de paladinos olhando para si, o provocando, zombando, gargalhando em prazer doentio, entretanto, este último era diferente, ele olhava diretamente para si de alguma maneira. Seu olhar violeta atravessando sua confusão e olhando para o centro de sua essência.
Por um momento, todos os soldados tremeram diante desse olhar. Lucet, que estava atacando um soldado cessou seu ataque, segurando sua cabeça tentando fazer sentido do que ouvia e enxergava, seus sentidos misturados.
Em alguns instantes, era capaz de sentir um grande fluxo de magia, bem como o cheiro de árvores e tantas outras coisas que deveriam estar dizimadas. Neste tempo, sua visão clareava e ele conseguia avistar no canto dos olhos estruturas cristalinas gigantescas danificadas com algum tipo de poder elétrico que ainda as danificava.
Contudo, logo em seguida, podia sentir o fumo adentrando suas narinas, cinzas ainda quentes tocando sua pele e a interminável risada do paladino penetrando sua mente, desdenhosa de seus esforços.
Por vezes, detectava sombras estranhas e confusas diante das tantas visões que sitiavam sua mente, seus equipamentos estranhamente familiares, apenas para no momento seguinte ver as armaduras brancas dos guerreiros de Puritas se tornarem mais claras, e cada vez que isso acontecia, ele ficava mais irritado.
Tentando focar sua mente em uma única tarefa, Lucet concentrou sua consciência na visão especifica da figura que sobrepujara sua espada com grande destreza. Com a palma e a garra em frente ao seu rosto, o garoto lentamente virou seu corpo em direção a ela, questionando.
— Fique quieta… — Rosnou por entredentes enquanto observava a constante alternação visual da oponente — Revele-se!
— Você sabe quem sou Lucet — ela respondeu com uma voz suave, gentil e melódica — Sabe disso — ela então retirou as lâminas e tentou se aproximar do soldado rubro, erguendo uma de suas mãos para alcançar seu rosto — Não precisa lutar mais… Por favor, já chega, eu estou bem.
Por um momento, enxergou a figura se fixar em uma imagem, a de Kaella, a mesma mãe que ele lutava desesperadamente para salvar. Isto o fez hesitar, permitindo que a mulher desse mais um passo a frente, seus dedos a alguns centímetros de seu rosto, contudo, no instante seguinte, a visão se transformou no rosto desfigurado de Alexander, um sorriso grotesco crescendo em seu rosto.
— O que foi herege? Ficou com medo? — ele gargalhou, gotículas de saliva cruzando o ar e aterrissando no rosto do garoto.
A ira de Lucet irrompeu em um violento pulso de poder rubro ao passo que ele disparou um soco na direção da figura. Esta, entretanto, desviou o rosto para o lado, evitando o impacto antes de agarrar o braço do guerreiro.
— Me solta paladino desgraçado! — O guerreiro rugiu, disparando um chute.
Veloz, a oponente aparou o golpe ao erguer sua perna, erguendo uma defesa ambos física e mágica. A aura negra e viscosa condensando na área para aplacar a agressiva flâmula sanguínea que irradiava do membro que a atingira.
Atônita, a figura observou o poder escarlate corroer a mana que a protegia com grande velocidade.
— Lucet! Se acalma! Sou eu! — ela apelou — Não sou o inimigo!
Infelizmente, sua súplica caiu em ouvidos surdos, a energia irrompendo com ainda mais ferocidade, porém, esta mesma tremeu por um instante. Todos os soldados rubros vibraram e, por um momento, uma quase indetectável fração de segundo, alguns dos envolvidos conseguiram notar que havia algo de errado.
Neste fragmento de tempo, os corpos dos guerreiros escarlates tremeram, sua estrutura brevemente chacoalhando como se fossem feitos de algo mais pastoso. A figura que confrontara um deles então olhou diretamente para o garoto e viu que o rosto já claro do jovem empalidecia cada vez mais.
Quando o soldado a sua frente recuperou a compostura, assistiu o garoto cambalear para trás e percebeu que algo estava muito errado com ele, algum risco inexplicável afetando o meio-sangue. Sem perder tempo, a aura negra ao seu redor irrompeu em força.
O guerreiro tentou ataca-la com um punho, porém, ela aparou o golpe, agarrando o antebraço da criatura antes de girar seu corpo, arrastando o oponente com seu giro. Ela carregou mana em seus braços e costas, reforçando-os para o próximo movimento antes de arremessar o oponente em um de seus semelhantes próximos, livrando o protetor encarregado para que pudesse ajudar um colega.
Felizmente, seu improviso e intelecto não a falharam, pois ao cair, nenhum dos dois se levantou, ao invés disso rapidamente se desfazendo em poças de liquido escarlate reluzente que prontamente penetrou as rachaduras. Uma luz rubra surgiu no local antes de se movimentar rapidamente em direção ao corvo e, quando o fez, seus passos cambaleantes estabilizaram por alguns momentos.
Com dois locais a menos para observar, bem como o reforço, ainda que minúsculo, de suas forças, permitiu com que o garoto recuperasse o fôlego, firmando seus movimentos antes de prosseguir seus ataques, fazendo com que todo o resto dos guerreiros rubros partissem para a ofensiva, virando o fluxo de combate uma vez mais.
Contudo, a reviravolta durou pouco tempo, afinal, depois de observarem o ocorrido, os protetores que até este momento tentavam eliminar os inimigos com cortes e estocadas, usando seus escudos para conter e aplacar os movimentos do oponente, entenderam que era mais simples apenas jogá-los uns contra os outros.
Desta forma, o combate rapidamente tomou um turno mais favorável para os alfae, seus equipamentos em péssimo estado, mas, esta era uma questão para ser resolvida depois. Partiram para o plano de supressão do oponente, usando técnicas de submissão e arremesso para travar o avanço dos soldados e reverte-lo.
A cada colisão de um soldado com o outro, os corpos se desfaziam, luzes rubras caminhando por dentre o solo, revigorando o jovem. Isto, porém, devolvia-lhe o poder, a ferocidade e a clareza de seus ataques crescendo com cada guerreiro aliado derrubado.
Lentamente, a leveza retornava aos pensamentos do jovem que, um a um notava sua visão sendo reduzida, sua mente reavendo a ordem que ali previamente existia, as dores e náuseas melhorando consideravelmente, contudo, com cada um de seus soldados derribados, a fúria em si crescia, aumentando a força dos remanescentes, bem como sua selvageria e habilidade.
Foi no momento em que o número de soldados fora reduzido a nove que os protetores e a figura encontraram um impasse. Nesta divisão, Lucet era capaz de enxergar diversos paladinos, um número intimidador considerando o poderio do guerreiro, entretanto, com a tensão diminuída em sua mente, ele era capaz de pensar com mais facilidade, podendo assim usar os recursos que possuíam com maior eficácia.
Assim, uma unidade de combate sólida de formou, bem como um grande obstáculo para os intuitos da figura que liderava os guardas. Munidos de suas espadas e grande poder na forma da instável, porém definitivamente formidável, aura sangrenta, o grupo liderado pelo meio-sangue apresentava um desafio para os mais de noventa guardas que, mesmo enfrentando os soldados rubros em dez contra um, não eram mais capazes de subjugá-los e os reintegrar a seus companheiros.
Obviamente, a figura líder lidava com um deles sozinha, ou melhor, lidava com ele, o principal, por si só. As réplicas, agora em números mais modestos, demonstravam grande agilidade e força, driblando e contendo os oponentes com algum esforço, entretanto, se comparados ao original, ainda tinham um longo caminho a percorrer.
Eles lutavam sem se importar com ferimento ou morte, atacando como indestrutíveis bestas desenfreadas. Lucet por outro lado, demonstrava uma finesse e habilidade inigualavelmente superiores, mesmo restrito por tais fatos.
A oponente diante de si ainda permanecia enigmática, sua aparência e voz constantemente alterando e, somado a seu senso de crise, enfurecendo-o em grau exponencial. Com sua garra, agora uma grande lâmina rubra em mãos, ele atacava com inteligência, demonstrando seu crescimento para aquela que o aplacava.
Em um certo momento, o garoto chutou um bocado de solo particularmente frágil em direção ao oponente, fragmentando-o a ponto de se tornar areia que alcançou seus olhos. Assumindo o acerto, Lucet avançou, desferindo um corte diagonal de baixo para cima, ela, contudo, agiu mais rápido, desviando do solo fragmentado ao inclinar a coluna para trás e para baixo antes de desferir um chute próprio que forçou a lâmina a ter seu curso redirecionado para trás, quase causando uma ferida no usuário da mesma.
No instante seguinte, a figura pisou duro no solo e então, o garoto sentiu uma vibração familiar de energia, o distraindo por um segundo, tempo que, quando ele voltou a olhar para a oponente, a deu tempo de desaparecer.
Os instintos do garoto zuniram em alarme e, instintivamente, girou a lâmina, executando uma estocada reversa. A oponente reagiu mais rápido, saltando por cima do ataque antes que o armamento pudesse sequer tocar suas roupas, aterrissando, para a surpresa do jovem, em cima do corpo da espada, declarando antes que a energia rubra pudesse começar a corroer a mana viscosa que fluía em torno de si.
— Já chega, hora de acabar com isso.