Os Contos de Anima - Capítulo 83
Por um bom tempo, Lucet permaneceu ajoelhado, em silêncio, maravilhado diante da visão daquela que era o centro de uma das partes mais significativas de seu ser. Longos foram os dias onde teve de aprender como utilizar as sombras, bem como igualmente extensos foram as lições de sua mestra sobre os perigos de ser um dos infames corvos.
Com exceção daqueles envolvidos com o ninho, e por consequência, trabalhando em contato direto com a organização que protegia e guiava estes usuários, o jovem nunca revelara sua identidade como um corvo para mais ninguém. Obviamente, os alfae tinham conhecimento deste fato, especialmente considerando quem era sua mestra, mas, devido ao contrato arcano entre eles, não era algo com que devia se preocupar.
Em um dado momento, o garoto notou que a mulher diante de si começara a mover os lábios, porém, ele não era capaz de ouvir qualquer coisa. Confuso, ele apontou para os ouvidos e questionou.
— O que está acontecendo? Não consigo ouvir o que diz.
Um leve sorriso surgiu no canto dos pálidos lábios da mulher, como se visse algo que a entretece. Com um leve chacoalho da cabeça, como se dispersasse alguma piada particularmente engraçada de sua mente, a mulher então ergueu um dedo. A estrutura longa e fina, com uma unha negra e afiada na ponta começou a reluzir, um punhado de chamas douradas acumulando em seus dedos.
Veloz e graciosa, ela começou a riscar o ar, alumiando a treva do espaço com símbolos estranhos que, conforme Lucet prestava a atenção, notou serem letras. Após alguns segundos, ela deixou de escrever e estalou os dedos, chamando a atenção do garoto antes de apontar para sua própria orelha e então para a mensagem que dizia.
“Use meu poder, pequeno aprendiz.”
Demorou alguns instantes para as conexões mentais chegarem à resposta necessária, estava sem mana que fosse para invocar a mana das sombras, como faria para aquiescer o pedido da senhora da noite? Tentou olhar para dentro de si, achar algum vestígio de mana que fosse para utilizar, mas, ali nada havia.
Foi então que se lembrou de um evento bem distante em sua curta vida. Neste dia, ou melhor, noite, Lucet teve seu primeiro contato com a magia dormente dentro de si, obtendo por acidente a revelação de uma facilidade ainda maior do que poderia imaginar. Lembrou-se do manto de sombras que invocara pela primeira vez, e logo, recordou o método que usara para ativá-lo, ainda que fora um tanto acidental na primeira tentativa.
Ainda que estivesse sem uma gota de energia mágica sequer, o garoto teve a estranha sensação que não necessitaria de energia interna para manter o uso da mesma nessa ocasião, portanto, o corvo espalhou sua consciência e concentrou seus sentidos nos arredores, buscando encontrar uma conexão com as sombras.
Diferente de sua primeira chance, desta vez o jovem encontrou imensa facilidade em não apenas se conectar com as sombras como também trazer a energia para dentro de si, recarregando suas reservas mágicas mais rápido do que jamais fora capaz.
Em questão de segundos, uma torrente de fumo e sombras se moveram em direção ao garoto, como se sugadas por um vórtice. Rapidamente, flâmulas cinzentas crepitaram ao redor das feições e traços do corvo, logo irrompendo e se revelando na forma de uma vibrante e poderosa aura escura.
Por alguns instantes, Lucet ficou maravilhado com o feito, ponderando sobre como poderia repetir o acontecido em situações mais críticas, bem como se poderia fazer o mesmo com suas outras habilidades. Até mesmo os guerreiros mais simplórios seriam capazes de determinar o quão valiosa seria esta capacidade.
Os combates de mais alto nível são determinados por cruciais segundos de vantagem, por tal, adquirir a chance de restaurar suas forças neste tempo poderia virar completamente o rumo da luta de uma derrota inevitável para uma vitória certa.
Entretanto, antes que pudesse levar seus pensamentos tão longe no futuro, Lucet teve sua atenção trazida de volta ao presente por uma série simples, suave e gentil de aplausos. Por um breve momento, o garoto ouviu o som das colisões das palmas, confuso sobre o significado do gesto, porém, logo um som diferente adentrou seus ouvidos.
Baixo como um sussurro, porém incompreensivelmente penetrante aos confins de sua mente, palavras foram ditas por esta voz.
— Que maravilha — disse a voz que parecia estar dentro da cabeça do jovem, bem como ao redor de toda sua existência — É tão bom finalmente encontra-lo, criança do pó e da eternidade.
Lucet observou a figura, e viu que a cada palavra que o alcançava, os lábios da figura reproduziam movimentos similares. Suas suspeitas de qualquer outro presente não tinham qualquer fundamento, esta treva era única, pertencente a esta mulher de tão imenso poder que nem a luz mais brilhante que sua aura da fé poderia criar faria qualquer coisa além de parecer um floco de pó minimamente mais luminoso que os demais.
— Lady Noctis — ele retornou a solenidade, dizendo em um tom respeitoso — É uma grande honra a conhecer.
— Ora ora… — a voz se repetiu nos confins da sua mente, chacoalhando os sentidos do garoto, um certo desdém decorando a tonalidade, como se relembrasse um fato desagradável — E eu pensei que minhas crianças não passavam de rufiões, trapaceiros e lunáticos, pelo jeito, boas maneiras também podem existir entre as sombras.
— Tive uma boa professora — Lucet respondeu com um certo orgulho na voz.
— Alguém lhe ensinou a cortesia e educação? Que interessante… — a voz pronunciou-se uma vez mais — Que tal me dizer mais sobre isso?
A mulher começou a se aproximar, contudo, talvez fosse o espaço onde se encontravam ou possivelmente a própria dama, mas ainda que avistasse o mover, não era capaz de ouvi-lo. Os passos da senhora das sombras eram inaudíveis, tão furtivos que sequer traços da movimentação do ar podiam ser captados. Nas trevas, a figura não parecia andar, mas sim deslizar através do espaço para se movimentar.
Enquanto se aproximava, Lucet não poder evitar engolir seco. Ainda que estivesse diante de alguém absolutamente digna do máximo de seu respeito, era difícil se manter concentrado quando cada uma de suas ações parecia deliberadamente atacar seus sentidos.
Antes que pudesse agir, a mulher o alcançou, estando a menos de dois passos de distância do garoto. Ela o observava de cima para baixo, como se olhasse para um simples infante, ainda assim, algo em seus olhos cinzentos transmitia uma sensação indescritível ao garoto, uma miríade de possibilidades contidas naquele estranho luzir que habitava os orbes com pupilas em forma de fenda.
Uma grande pressão bem como uma inexplicável atração por aquele desconhecido, olhar para Noctis era como tentar enxergar as profundezas de um abismo e entender, mesmo que em um nível subconsciente, de que o abismo também o observa. A senhora das sombras obviamente notou o desconforto e sorriu.
— Porque o silêncio, passarinho? — ela disse em um tom sereno e gentil — Não pedi que cantasse mais?
De repente, as sombras se moveram. Terríveis e violentas como a mais feroz das tempestades, repletas de ventos, sons e trevas. Lucet sentiu-se cercado por dezenas de oponentes e ainda assim, completamente incapaz de enfrentar sequer um deles, ainda assim, seus instintos lhe afirmavam, se tentasse lutar, as consequências seriam desastrosas.
O garoto, por fim, criou coragem e começou a falar.
— Minha mestra… — ele começou, tentando extinguir o tremer da sua voz quando um luzir incomum surgiu no olhar da mulher — Minha mãe, uma corvo, como eu, me ensinou muito, muito além do combate e da guerra, me ensinou tudo aquilo que alguém poderia querer aprender para lidar com praticamente qualquer um.
O final da frase, contudo, pareceu incomodar a figura, os ventos uivando com ainda mais ferocidade, o que fez com que o garoto rapidamente adicionasse em um tom de casualidade forçada.
— Não que qualquer um possa equipará-la, Lady Noctis.
A mulher apenas sorriu misteriosamente antes de movimentar seus lábios.
— Sabia escolha de palavras, criança — Ela então estalou os dedos e uma lufada de vento carregou o garoto aos seus pés, erguendo-o — Contudo, sabes bem que esta não é a verdade, afinal, outros dois de meus iguais tem seus olhos cravados em sua existência tão curiosa.
— Minha existência? — O garoto não pode resistir questionar.
Noctis acenou com a cabeça, logo começando a “andar” em círculos em volta do garoto, tal como um predador observando um alvo particularmente saboroso.
— Híbridos que sobrevivem tanto quanto você são raríssimos — disse a mulher, entrelaçando os braços por trás das costas enquanto circulava — E ainda mais escassos são aqueles que tem a oportunidade de explorar e desenvolver os mistérios e poderes que carregam em seu sangue.
Lucet tentava acompanhar os movimentos da figura, entretanto, sua própria existência era algo elusivo e, sendo esta a vontade da senhora das sombras, absolutamente impossível de rastrear, mesmo ele sendo um dos usuários deste mesmo poder. Mas, ao considerar que diante de si estava a essência de toda a compreensão e conhecimento da mana sombria, não era tão estranho tamanha proeza e furtividade.
— Mas você… — comentou Noctis ao subitamente parar em frente ao garoto — Você é um caso excepcional, criança, indo muito além do que centenas de anos de seres como és jamais foram capaz de ir.
Foi então que o espaço de sombras começou a vibrar. Por um instante, uma quase indetectável fração temporal, as pupilas da mulher se contraíram diminutamente, neste fragmento de tempo, Lucet pode detectar um distinto desapontamento irradiando da figura a sua frente, uma emoção perigosa de se ver, concluiu ele.
Raízes vermelhas então começaram a crescer por entre as trevas. Elas pulsavam e vibravam, brilhando com chamas rubras enquanto lenta, mas certamente, invadiam e dominavam o espaço.
Absorto como estava pela presença da persona das sombras, o jovem não foi capaz de notar, mas, o local era extremamente frio, ventos constantemente soprando, carregando fumo e sombras para todos os lados, porém, com a chegada das raízes, o lugar rapidamente começou a ganhar cor e aquecer.
— Bem, parece que nosso tempo está chegando a um prematuro fim — ela sacudiu a cabeça lentamente — É uma pena, mas acredito que o despertar do talento pela primeira vez desde o nascer dos filhos do pó é algo que merece prioridade.
Diferente das palavras, a mulher ao invés de, por exemplo, mergulhar em sombras e desaparecer como fariam os corvos em situações desvantajosas, agiu. Erguendo sua mão, espalhou seus dedos que luziram com flâmulas bruxuleantes de tons roxeados.
— Entretanto — Noctis observou as chamas que brilhavam em seus dedos — Não é meu intuito abandonar a oportunidade de um encontro futuro, afinal, há muito que ainda verás, histórias interessantes para contar, estas que, de preferência, pretendo acompanhar.
Ela então se moveu, agindo mais rápido do que qualquer sentido do garoto, mesmo os seus mais instintivos, seria capaz de captar. Em menos tempo do que levaria para piscar os olhos, os dedos atravessaram o espaço, transpassando a energia sombria que fluía ao redor do garoto.
Lucet esperou que suas roupas provessem alguma defesa, ainda que mínima, mas nada ocorreu. O som de impacto e rasgar de tecido, bem como dor, não surgiu, ao invés disso, as flâmulas penetraram os fios encantados e proteções múltiplas ignorando por completo sua existência. Quando o garoto se deu conta, a mulher já havia retraído o membro, bem como seu poder.
Espaçando a vestimenta, o meio-sangue buscou observar sua pele, tentando encontrar qualquer sinal, porém, por mais que procurasse, nada existia ali para ser analisado, o que o fez ponderar exatamente o que acabara de acontecer, criando muitas questões em sua mente.
Contudo, antes mesmo de ser capaz de questionar uma delas sequer, o espaço tremeluziu, ameaçando colapsar ao passo que raízes surgiam em velocidades exponencialmente crescentes.
— É verdadeiramente uma pena — Noctis suspirou, antes de sorrir brevemente — Mas agora, tenho certeza de que serei capaz de contatá-lo em uma data posterior.
Por um instante, a dama das sombras observou algum canto especifico do lugar, ponderações incalculáveis passando por sua mente, um genuíno sorriso triunfal surgindo em seu rosto, como se zombasse de alguém. Ela então se virou para o garoto antes de acenar com a mão, seu corpo todo envolto por fumo.
— Boa sorte com ele — ela disse gentilmente — Vai precisar.
Ela então se virou, sua figura levemente se misturando a escuridão, entretanto, Lucet desta vez reagiu rápido o suficiente, questionando antes que a chance lhe escapasse por entre os dedos.
— Ahn? Porque?
A senhora das sombras soltou um breve riso e então deixou uma mensagem antes de desaparecer, sua silhueta convertendo-se em uma nuvem de fumo antes de dispersar como névoa diante da brisa do mar.
— Ele pode ser um pouco… Energético demais?