Os Contos de Anima - Capítulo 84
Como se sequer tivessem existido, as sombras se dispersaram na presença da irradiância escarlate que começou a tomar conta do lugar. Agora, sem a resistência e interferência de Noctis, as raízes rubras pulsaram e cresceram a velocidades assombrosas, rapidamente se espalhando por todos os cantos. Lucet, que observava a situação desenrolar diante de seus olhos não pode deixar de notar que o acontecimento era estranhamente similar a algo que estudara em suas aulas de fisionomia.
As raízes possuíam uma textura esticada, lisa, e pareciam contrair e expandir constantemente enquanto se moviam, como se fossem a linha de algum tecido, mas, imbuídas de grande vitalidade. Além disso, pulsantes como eram, o garoto notou que os movimentos eram agraciados de alguma espécie de ritmo.
Ele estava tenso, ponderando tantas possibilidades a cada instante que seu cérebro parecia ferver ao passo que seu próprio coração batia acelerado, martelando no peito a tal ponto que sentia um mínimo tremor nas pontas de seus dedos, e foi aí que ele entendeu.
As vinhas escarlates se moviam e cresciam no mesmo exato compasso de um batimento, o seu batimento. A cada batida de seu coração, a cada jorro de sangue que era enviado por todo seu corpo e o mantinha energizado e, por falta de palavra melhor, vivo, as plantas ao seu redor faziam o mesmo, sincronizadas com sua existência.
Porém, as surpresas estavam longe de encerrar. As raízes continuaram a crescer, se esticando e movimentando acima e abaixo de si, formando uma espécie de céu & terra que se estendia muito além do que o garoto era capaz de ver. Acima e abaixo, placas de massa rubra entrelaçada que, quando prestou a atenção, eram extremamente similares a tecidos musculares sobre os quais estudara previamente.
“Eu… estou dentro de um musculo?” Lucet ponderou, confuso com a situação.
Antes que pudesse levar o pensamento mais longe do que a questão, todo o espaço então começou a chacoalhar, tremendo violentamente por todos os cantos, como se algo estivesse atacando as fibras que compunham o espaço.
“Ah maravilha…” o garoto pensou incomodado, já se preparando para algum ataque, contudo, sua preocupação foi desnecessária.
Dos confins do horizonte, o corvo quedou atônito ao observar manchas brancas surgirem do solo, rapidamente se conectando com o firmamento acima. Estes borrões se aproximavam em alta velocidade, agravando os tremores e, quando finalmente um deles se tornou distinto o bastante, Lucet identificou a mudança.
Ossos, grossos como montanhas, brancos como marfim e de tamanho incalculável cresciam do solo feito árvores e se conectavam com o céu, revelando-se pilastras pareciam sustentar o local. Um deles cresceu logo ao lado do garoto e ele, ainda apreensivo e desconfortável, mas definitivamente curioso, se aproximou e resolveu encostar na estrutura.
Não foi preciso muito mais que um toque para que o meio-sangue tivesse certeza. Este espaço era dotado de poder e vitalidade inimagináveis, bem como inteiramente indestrutível para qualquer um que não igualasse o poderio de seu mestre.
Na ponta de seus dedos, Lucet podia sentir um pulsar do mesmo ritmo que o seu, mas com uma força tão tremenda que, por um instante, o garoto sequer tinha certeza se existia, visto o quão imensa era a estrutura, imaginando se ele não era um mero fragmento do corpo de uma grande besta, inigualável em toda a existência.
Por alguns momentos o garoto quedou silente. Já havia entrado em contato com seres similares ao que ainda estava por vir, cada um deles demonstrando sua essência no espaço que residiam.
Faerthalux, o conceito da aura da fé, habitava em uma silhueta indistinta em meio a um mar de luz, transmitindo paz bem como um poder sacro, inviolável. Noctis, a quem acabara de conhecer brevemente, era o conceito da mana das sombras, habitando no corpo de uma bela e, excepcionalmente, elusiva mulher imersa em uma dimensão de fumo e escuridão intermináveis, pressão e poder emanando de cada um de seus atos, bem como infinitas possibilidades escondidas debaixo das trevas.
Ambos os seres são conectados diretamente a poderes que ele usa com frequência, mas este, com sua dimensão tão perceptivelmente colossal, fosse como fosse, definitivamente era o mais… excêntrico em sua escolha de decoração. Ao concluir, Lucet quase não foi capaz de conter um riso.
“Quem diria que diante de um deus, eu ainda seria capaz de pensar em piadas” ele pensou, zombando de si “Realmente estou ficando mais corajoso”, sorriu levemente.
Estranhamente, nas outras duas dimensões, Lucet se encontrara respeitoso, solene diante de tamanho poder, mas nesta, tão gigantesca como era, o meio-sangue não sentia esta pressão para venerar ou se prostrar, ao invés disso, algo em si ressoava com o lugar, como se ele fizesse parte de cada fibra da estrutura, e cada célula do local também fosse parte dele.
Muitos pensamentos passaram por sua mente enquanto ponderava a curiosa familiaridade que sentia quanto ao local, mas nem de longe ele estava sequer remotamente preparado para o que viera a seguinte.
Dos grandes pilares de marfim, placas de osso começaram a surgir, surgindo na exata metade do espaço, formando então uma grande passarela ou talvez uma estrada, um imensurável caminho branco, composto do mesmo indestrutível material ósseo das pilastras de onde cresceram.
O garoto então se viu em cima destas placas, e por algum tempo, não teve escolha a não ser encarar a imensidão do local onde se encontrava, mas, logo o cenário começou a mudar. Liquido vermelho começou a escorrer pelas estruturas brancas, acumulando nas placas por alguns momentos, apenas para então coagular logo a frente do jovem.
Como se atraída por magnetismo, a poça rubra se formou e dela, Lucet pode observar uma cena muito familiar, ainda que não tenha entendido o que ocorrera da primeira vez quando a avistou.
Primeiro, ossos tão brancos quanto a própria luz se formaram, moldando rapidamente um esqueleto, no instante seguinte, o garoto observou passo a passo enquanto estruturas eram formadas.
Veias se espalhando por todo o corpo, musculatura crescendo em um ritmo visível, órgãos e tendões, articulações e eventualmente pele, tudo a uma velocidade assustadora, porém, antes que o corvo pudesse observar um detalhe sequer do ser a sua frente, notou que mais do liquido escarlate começara a fluir.
Dezenas, centenas, milhares. Incontáveis réplicas da poça inicial quase que instantaneamente se formaram, logo dando lugar para seres exatamente iguais ao primeiro. Lucet sequer teve a chance de sentir o embaraço de contemplar a nudez dos seres, pois esta foi logo coberta por armaduras formadas de placas sobrepostas de um aspecto similar ao material que compunha o lugar onde pisava, porém, distintamente diferentes, aparentemente compostas de alguma estrutura orgânica endurecida.
O garoto olhou então para as imensidões acima e abaixo e percebeu ao observar com mais atenção, os equipamentos eram feitos de fibras musculares densamente entrelaçadas e tensionadas, contudo, esta era apenas parte do processo, afinal, a tensão de um tecido orgânico era impossível de ser mantida eternamente. Com sua análise, Lucet detectou uma fina camada de cristal por cima das fibras, ponderando como exatamente algo assim poderia ter sido atingido, bem como estudando o espécime a sua frente.
Sem qualquer aviso, uma voz adentrou os ouvidos do garoto, ela era animada e energética, quase como se estivesse tentando conter um riso, mas, diferente das deidades que conhecera anteriormente, que falam em tons calmos ou opressivos, esta se comunicava de uma forma muito mais próxima a realidade, soando mais… mortal.
— E entãooooo… — soou subitamente — o que achou? Legal não é?
Os músculos do garoto automaticamente tensionaram ao ser abordado, sua mão, por puro instinto disparando para a garra que carregava atada a si. Neste instante, entretanto, um dos tantos seres, justamente aquele o garoto estava estudando, interceptou o reflexo do jovem antes que o mesmo fosse concluso.
Uma manopla pálida cravou dedos ao redor de seu pulso, travando qualquer tentativa de movimento.
— Ei, calma ai garoto — ele ouviu a voz uma vez mais ecoar em sua mente, breves risinhos escapando por entre as palavras — Não sou seu inimigo, muito menos tenho qualquer intuito em te ferir — O ser então soltou a mão do garoto — Viu? Sem hostilidades, fique tranquilo.
Lucet ergueu seus para o rosto do ser trajado em armadura, observando a região onde estariam os olhos da criatura, mas sem qualquer sucesso pois ali nada havia além de um elmo igualmente pálido composto de fibras tensionas e posteriormente cristalizadas, seu estilo similar a uma caveira cujo os espaços para os olhos misteriosamente ocultavam as feições oculares da figura.
— Quem é você? — o garoto questionou, mantendo um tom defensivo a sua voz — O que quer comigo?
Por alguma razão, a voz que ouvira o convidava a ser mais honesto, não necessariamente desrespeitoso, mas simplesmente mais direto em sua abordagem com aquele que conversava consigo. Logo, uma resposta adentrou sua mente, mas sem qualquer sinal de movimentação dos tantos seres que avistava.
— Essa resposta já está um tanto óbvia, não acha? — a voz soltou um riso breve — Conheceu o cara da aura e a tia das sombras, quem exatamente acha que eu sou?
Este era exatamente o problema, Lucet reconhecia que este lugar era relacionado a si de alguma forma, mas não conseguia determinar como. O novo poder que surgira ainda era um tanto confuso, especialmente porque ele não estava inteiramente consciente de seus atos durante despertar.
Sua mente correu rápido em busca de respostas, tempesteando suas memórias a procura de todos os eventos nos quais interagira com Faerthalux, considerando que seu breve encontro com Noctis não tinha meios de o fornecer muita informação, e então, após alguns instantes de silêncio, lembrou-se.
Aquele que conceitualiza a totalidade da aura da fé explicara-lhe meses atrás as possibilidades e naturezas dos seres que são e controlam os poderes distribuídos por anima. O poder arcano, a energia da terra, a aura da fé, a necroforça e o talento da vida, e então, compreensão adornou as feições do jovem.
— Você é a personificação do talento da vida, não é?
A voz dessa vez soou ainda mais animada, como uma criança que acabara de ganhar um novo brinquedo.
— Correto, meio-sangue! Excelente!
As milhares de figuras que povoavam a grande estrada branca então ergueram suas mãos, aplaudindo. Tamanho era o poder por trás do gesto que até mesmo o ar começou a vibrar, o som ecoando e aumentando em intensidade até que Lucet foi forçado a se contorcer e cobrir os ouvidos, contudo, no instante que fez isso, o barulho cessou imediatamente ao passo que a voz soou em sua mente uma vez mais.
— Opa! Me desculpe — disse a voz, soltando um outro riso — Esqueci que os mortais são frágeis assim!
Uma tonalidade um tanto mais séria laceou as próximas palavras, ainda mantendo a energia prévia.
— Mas sinceramente, você não sabe o quanto eu esperei por isso… — desapontamento adentrou a fala — Uma raça inteira protegida pelo poder que represento, e ainda assim, nenhum deles — ira então manifestou-se por um segundo, todo o espaço tremendo por um instante — NENHUM — mas logo se dissipou — conseguiu despertar a verdadeira forma deste talento, mas agora, você, Lucet, um meio-sangue, um ser tão interessante e mal visto pelo resto do mundo, finalmente conseguiu!
Um último, reluzente traço rubro escorreu por uma pilastra próxima, rapidamente se movendo por entre os corpos dos soldados de armadura pálida como uma serpente de escamas sangrentas. Em menos de um segundo, mais rápido que olhos podiam acompanhar, uma poça se formou em frente ao garoto, porém, diferente da expectativa do processo de “crescimento” visto anteriormente, o meio-sangue foi tomado de surpresa.
Da poça, um borrão branco saltou e agarrou o pescoço do jovem antes que ele pudesse reagir. Lucet tensionou, algo que qualquer ser racional faria em uma situação como, contudo, ao invés de um ataque, ele recebeu o abraço mais gentil e animado que já detectara em toda sua existência. A voz que soara em sua mente então soou ao lado do seu ouvido.
— Como é bom finalmente conhece-lo, Lucet!
O rosto que reclinara sobre seu ombro se afastou e olhou diretamente para si e, completamente fora das expectativas, o que o garoto enxergara fora não um ser opressivo ou uma criatura amedrontadora, mas uma criança, entretanto, esta não era uma simples criança, mas sim, o próprio Lucet, só que mais novo, sorridente ao ponto de parecer surreal, visto que nem mesmo o garoto se lembrava de alguma vez ter sorrido assim.
Vestia uma camisa branca e uma bermuda vermelha, andava descalço, seus pequenos pés quase impossíveis de separar do solo branco abaixo deles. Além disso, seu corpo era magro, quase que pele e osso, de uma leveza que fazia o meio-sangue ponderar se o próprio vento não poderia erguer este pequeno do solo com facilidade.
Seus cabelos eram brancos e os olhos que deveriam ser heterocromáticos continham irises escarlates. Sua pele que já era clara por natureza, agora se mostrava tão pálida quanto a folha de um papel, ou talvez até mais, branca como a própria morte, como se a pele desse ser fosse feita de ossos, uma faceta enigmática que deixou o corvo imediatamente apreensivo. Grande poder se escondia atrás daquele sorriso que irradiava alegria, era sábio desconfiar.