Os Contos de Anima - Capítulo 87
Quem olhasse para a figura debaixo da sombra da árvore, enxergaria uma vista intimidadora. Ele se vestia de uma maneira usual a sua profissão, roupas negras de couro revestido acopladas com peças de armadura escura nas partes vitais, deixando-o ágil e ao mesmo tempo discreto, uma combinação letal.
Entretanto, isto era apenas sua vestimenta. Os mais analíticos, de visão mais precisa por assim dizer, eram capazes de avistar que, ainda que furtivo diante da treva, o corpo daquele corvo era formidável, músculos de razoável tamanho encobertos pelo tecido que os continham com elasticidade, marcando-os no traje.
Em sua cintura, uma aljava permanecia firmemente atada, plumas vermelhas alaranjadas de uma cor tão forte que pareciam flâmulas vivas. No equipamento, além das flechas que carregava, também havia uma tira de metal inscrita com runas e decorada com um diamante que luzia fracamente, um brilho pulsante em ambas a escrita e a gema.
Seu braço estava estendido, sua mão enluvada segurando um arco que em qualquer outro lugar seria apreciado como uma obra de arte. Ele era longo, de tamanho próximo a dois terços da altura total da figura que tinha por volta de um metro e oitenta. Sua estrutura era vermelha e detalhada em estilo similar ao da couraça de repteis, levemente curvada, carregando dois pedaços ornamentais de metal decorados com esmeraldas no formato de escamadas que definiam o espaço por onde a flecha passaria.
Além disso, a corda do equipamento era igualmente estranha. Mesmo após o disparo ser realizado, ela continuou vibrando por alguns momentos antes de finalmente cessar o movimento. A aparência da mesma nem sequer parecia ser feita de fibras trançadas de qualquer tecido, mas sim uma única e estranhamente viscosa extensão que só poderia ser descrito como o ligamento de alguma fera.
Junto da breve e restrita aura de sombras que ocasionalmente emitia fagulhas e diminutas brasas, o ser furtivo se mostrava uma ameaça. Contudo, diferente de qualquer corvo, este utilizava luvas brancas e, diferente da máscara usual que Kaella recordava ter visto no companheiro, uma cruz dourada agora decorava o material.
— Então você realmente pertence a Puritas, Chama?
A figura baixou o arco minimamente por um instante, como se hesitasse em responder, porém, logo firmou o aperto de seus dedos em volta do armamento, declarando.
— Exato, Tinta, onde mais um corvo poderia melhor se refugiar do que na sombra da onipotente e justa luz?
Nesse instante, Kaella não pode conter um breve riso desdenhoso.
— Pelo que vejo, você acredita realmente nas baboseiras pregadas pela Pontifícia.
O homem, sua voz firme e levemente rouca, uma tonalidade grave se destacando, chacoalhou a cabeça, um leve brilho refletindo de seus cabelos crescentemente grisalhos.
— Não se trata de crer na propaganda, mas de saber de que lado estar, e como um humano, meus dias estariam ainda mais restritos se me opusesse ao poderio da santa Pontifícia — ele comentou como se não houvesse algo mais lógico no mundo — Então, prefiro voar sob as sombras desta poderosa luz do que tentar voar em direção a este sol.
Ele então sacou uma flecha de sua aljava, erguendo-a lentamente.
— Mas nada disso importa neste momento — ele continuou, sua voz crescendo em severidade — Vocês tem minha aprendiz, não pretendo deixar que causem mais um ferimento sequer a ela.
O público podia sentir a crescente tensão, bem como o perigo que estava por vir. Os guardas, agora desarmados, também perceberam o conflito inevitável, por tal, liberaram sua mana em amplitude antes de cercar Luna, afinal, a princesa precisava escapar em segurança do campo de batalha, especialmente após exaurir tanto de seu poder ao derrotar e suprimir completamente ambos Sofia e sua fera.
Luna, por sua vez, ainda que um tanto frustrada, aceitou a proteção. Mesmo poderosa, ela sabia de seus limites e, sendo esta a primeira oportunidade de utilizar tanta mana de uma vez só, estava consideravelmente exaurida, sua mente e corpo protestando em dores devido ao esforço de manipular a gigantesca quantia de energia.
Tal como era esperado de alguém da realeza, ela era perfeitamente capaz de manter a compostura e a fachada de tranquilidade, contudo, isto não significava que ela era arrogante ao ponto de achar que estava em condições de enfrentar um oponente em perfeito estado.
Todos da guarda, bem como a própria Kaella, partilhavam esse pensamento. Estavam sim em maiores números, mas, a quantia de recursos energéticos gastos para conter ambos o ataque e a fúria descontrolada do jovem meio-sangue tiveram seu preço, mantendo a frieza em sua mente, optaram por unir suas forças e aguardar o próximo ataque, afinal, qualquer um ali poderia ser um alvo em potencial.
Entretanto, diferente do comportamento usual e ponderado do garoto, o brilho escarlate que o envolvia alimentava sua força, bem como sua ira. A sensação de energia interminável retornara ao seu corpo, desta vez desprovida do tamanho estresse que recebera ao ser forçado a compartilhar sua consciência em tantos ângulos diferentes, ao mesmo tempo.
Devido a distinta diferença, Lucet pode finalmente apreciar o poder que o envolvia. A ira que sentia não era exatamente o ódio, mas uma agitação interna, como se seu corpo estivesse desesperado por ação e, de certa forma, violência. Esta energia sangrenta amplificava sua recuperação visivelmente, tendo em vista que uma vez que retirara as unhas de sua carne, o ferimento regenerara tecidos a uma velocidade impressionante.
O garoto então começou a se lembrar das demonstrações de Blodren. As memórias de sua inconsciência surgiram em flashes confusos que o garoto lutou para tentar compreender por alguns momentos. Após alguns segundos Lucet teve de admitir que, diferente do uso tão tranquilo e natural do conceito, sua utilização e despertar foram severamente mais, por falta de palavra melhor, crus.
Além disso, sua utilização descontrolada requerera uma quantia extravagante de energia apenas para destravar a habilidade, tanto que agora não restava sequer uma gota de mana ou aura em seu corpo, mesmo que estivesse totalmente energizado fisicamente. Ainda assim, ele sentia grande confiança em confrontar o oponente, mesmo sem o uso de suas habilidades mais prevalentes.
Lucet sorriu largamente, agora sob controle de sua razão, mesmo que um tanto agitado, sacando seu armamento antes de se desvencilhar com facilidade de Kaella e caminhar alguns passos em direção a Sofia antes de se virar para o corvo, apontando sua lâmina para a garota.
A energia rubra que fluía ao redor de seu corpo logo começou a se conectar com a garra e, em instantes, assumiu a forma que outrora tivera quando energizada pela aura dourada, crescendo até que tivesse o tamanho de uma espada. Mantendo o vinco negro, o fio da lâmina era completamente rubra, contudo, não existiam marcações no centro ao passo que o poder sanguíneo incendiava o armamento.
Sofia recuou, se aproximando do gelo ao sentir a perigosa energia. Ela sabia, mesmo que não conscientemente, o perigo que aquelas chamas representavam. Seus instintos gritavam para que se afastasse e, sem seu armamento ou uso de seu poder, não tinha qualquer confiança de confrontar o oponente atual.
— Sua estudante é impressionante — Lucet subitamente admitiu com um aceno da cabeça, chamando a atenção do corvo — Ela quase me matou sabia disso? — Ele então indicou com os olhos a parte furada e ensanguentada de sua vestimenta — Não acha justo que eu faça o mesmo?
As chamas vermelhas cresceram um pouco mais, alcançando a mascara da garota antes de deixar uma marca negra com um breve toque.
O homem não respondeu, ao invés disso respondendo com a liberação de sua energia, manifestando-se com um irromper de chamas e fumaça, incinerando a árvore que sombreava suas feições em segundos.
— Não seja arrogante, criança — O homem rosnou.
Lucet apenas riu, apontando sua lâmina desta vez para o corvo, pronto para o combate, contudo, antes que pudesse dar um passo sequer, sentiu uma mão encostar em seu ombro. Ao virar seu rosto, viu Kaella, seus olhos violeta olhando para si com grande preocupação enquanto dizia.
— Esta luta não é sua, filho, descanse, você está exausto.
O garoto, entretanto, chacoalhou a cabeça.
— Eu estou bem mãe, sinto como se pudesse enfrentar um exército.
A alfae, sua voz crescendo em severidade, porém, retrucou com uma ordem.
— Você está sem uma gota de mana no seu corpo, criança, e sei que não pode mais usar a aura da fé — ela racionalizou — Acha mesmo que pode combater um veterano como o chama sem usar suas melhores armas, confiando neste novo poder que sequer compreende? Vá descansar, agora!
Lucet instintivamente tremeu diante do comando. Nem mesmo a agitação do talento da vida era capaz de fazê-lo ignorar seus anos de treinamento tão facilmente, mas, ele não desistiu.
— Você também está exausta, sei que usou muita mana para me parar, como vai lutar neste estado, me deixe te ajudar.
Um leve sorriso decorou os lábios da alfae.
— Não precisa lutar para ser útil, criança, será que não aprendeu nada?
Confusão surgiu nas feições do corvo, porém, Kaella logo o ajudou a entender com um simples comando.
— Relembre o oponente que ele não deve subestimar nossas capacidades, ou determinação de vencer.
Lucet riu, lembrando-se dos ensinamentos que aprendera a tantos anos atrás. O garoto se aproximou de Sofia, trazendo sua lâmina próxima ao pescoço da garota, controlando as chamas para que ficassem mais compressas, sem encostar ou causar qualquer dano a jovem.
— Você não ousaria! — O homem rosnou em direção a Kaella — Acha que consegue escapar da fúria de Puritas se fizer isso?
— Se estivesse em qualquer outro lugar, talvez não teria tanta certeza, mas… — a alfae então saca uma poção de mana de seu equipamento, bebendo-a em segundos, recuperando uma parcela de sua energia e estamina — Aqui, em Alta Lustra, sob a vigília da família real de Lumina, eu ouso.