Os Contos de Anima - Capítulo 88
— Você… — o homem rosnou — Sua maldita herege!
Kaella sorriu confiante ao recuperar sua energia.
— Ora, mas o que foi chama? — ela retrucou em desdém — Usar reféns não é algo estranho a sua doutrina, estou errada?
A voz da alfae baixou, uma frieza notável em seus tons. Os olhos violeta da mulher irradiavam renovada energia enquanto a treva se erguia uma vez mais ao redor do seu corpo, densa como liquido, mas móvel e misteriosa como névoa.
Neste momento, o oponente prepara a flecha e, ao invés de mirá-la na direção do garoto que mantinha sua pupila como refém, aponta o armamento para Luna, esticando a corda ao seu limite.
— Se quer mesmo fazer isso dessa forma, que seja!
As runas inscritas na luva branca reluziram por um instante, emitindo fagulhas de energia dourada que saltou por entre os dedos, atingindo a pluma que prontamente irrompeu em chamas. Estas logo se espalharam como serpentes, consumindo a estrutura antes de transformar a coisa toda em uma seta flamejante.
Entretanto, antes que pudesse disparar, Kaella se moveu mais rápido, mesmo que de uma maneira curiosa para o oponente. Sacando a segunda lâmina de sua bainha, ela arremessou o armamento na direção do homem que por reflexo deu um passo atrás, apenas para ver a lâmina quedar aos seus pés, cravando no solo.
— Talvez seja um pouco grande para chamar de faca — a alfae comentou — mas deve servir.
A voz do homem travou por alguns momentos, incredulidade escrita em cada mínimo gesto de seu corpo. O arco baixou com o retesar dos braços e o encolher dos ombros, o flexionar dos joelhos minimamente bem como a cabeça que levemente quedou.
— Tinta, você não pode estar sugerindo…
Kaella soltou um raro riso, impressionando quase que todos os espectadores que usualmente não possuíam a chance de interagir com um lado da alfae que não fosse o estritamente frio e profissional. Ainda que fosse óbvio para pessoas como Lucet e Luna, além de poderosa, a guardiã era extremamente bela, contudo, sua beleza era facilmente mascarada por sua postura impassiva e seus outros atributos mais combativos.
O sorriso charmoso, os olhos violeta resplandecentes, o cabelo escarlate e tantos outros detalhes marcantes, neste instante, todos eles serviam para ressaltar a figura formidável que era Kaella Rubrum, a guardiã da Lybra.
— É exatamente o que estou sugerindo, Chama! — ela disse, um luzir feroz em seus olhos enquanto ela apontava a lâmina remanescente na direção do corvo ao passo que a outra mão agora segurava um símbolo familiar para alguns dos presentes — Com a minha autoridade de corvo obsidiana, em nome do Ninho, eu, a que detém a alcunha de Tinta, te desafio para uma dança de facas!
Demorou algum tempo, contudo, quando finalmente o oponente a respondeu, sua voz soou séria, mas confiante.
— Tem certeza disso, Tinta? Não está em seu ápice neste momento, e mesmo que estivesse, sabe muito bem que sou melhor quando se trata de combate mágico.
A alfae, entretanto, sorriu em triunfo ao dizer.
— E quem disse que será um combate mágico?
Neste instante, até mesmo o confiante arqueiro hesitou.
— Você não pode estar falando sério… — ele disse, baixando seu arco, mas mantendo a flecha preparada — Está sugerindo o estilo bárbaro do inicio da organização? Ninguém mais usa isso.
— E que estilo melhor para equilibrar o combate?
O oponente suspirou, finalmente baixando guardando seus equipamentos ao olhar em direção a sua aprendiz uma última vez, vendo seus desesperados esforços de manter-se longe das chamas rubras que reluziam próximas ao seu pescoço. Ele então se aproximou da espada curta que estava próxima a si, pegando-a do solo, estudando o objeto por alguns momentos até que estivesse plenamente satisfeito.
— Que seja — ele por fim concordou com um aceno da cabeça, erguendo o armamento a altura do seu peito, posicionando-o em linha com seu braço, exatamente como se usaria uma adaga — Quais são os termos?
Kaella repetiu o gesto do oponente, erguendo o armamento e se preparando para o combate antes de responder.
— Nada de mana ou aura da fé, nem qualquer equipamento encantado, apenas habilidade física.
O corvo apenas acenou a cabeça, tais termos eram esperados, afinal, o estilo original da dança de facas era um combate com lâminas, sem qualquer auxilio externo.
— Submissão ou morte? — Questionou o oponente por puro protocolo, já sabendo a resposta que viria a seguir.
— Morte.
Kaella então ergueu o símbolo que carregava na mão em direção ao ar. Supostamente, o oponente deveria fazer o mesmo, porém, após pegar o símbolo de um bolso em seu manto, ele o reteve por alguns momentos, fazendo a alfae questionar.
— O que foi? Está com medo agora?
O oponente chacoalhou a cabeça, respondendo.
— Não, apenas ponderando os termos por um momento.
Por um breve instante que apenas o mais treinado dos olhos poderia notar, Kaella hesitou em responder, porém, imediatamente se recompôs e, em perfeita impassividade, prosseguiu a questionar.
— Algo de errado com eles?
— Nada especificamente, mas…
— Mas?
— Mas, como todo corvo é precavido, pensei em adicionar uma última clausula.
Kaella esperava alguma objeção, portanto, apenas assentiu com a cabeça.
— Ninguém externo pode intervir no combate.
A guardiã concordou sem pestanejar, e então, o par ergueu seus símbolos ao ar. Quando o fizeram, os objetos simultaneamente brilharam antes de serem cobertos por um diminuto domo luminoso que, em meros segundos, expandiu até que cobrisse os dois indivíduos com sua luz.
Os espectadores observaram atônitos ao passo que a estrutura cresceu. No solo, um anel de chamas azuladas que irradiavam energia repressora, desencorajando facilmente qualquer interferência externa. Lucet, ainda que um tanto irritadiço pelo poder rubro que fluía em si, era capaz de raciocinar com clareza, por tal, reconheceu facilmente o brilho azulado, lembrando-se de um certo evento envolvendo um determinado monarca que ocorrera meras horas após seu despertar.
— Droga mãe — ele murmurou um tanto frustrado — Porque foi erguer um contrato? Não dá para ajudar assim.
Como se ela houvesse escutado o garoto aborrecido através da barreira de chamas azuladas, Kaella olhou na direção do jovem, dando um familiar sorriso. Para muitos, aquele fora um sorriso de conforto, uma mãe dizendo ao filho que tudo ficaria bem, porém, para o meio-sangue, aquele fora um sinal que só ele poderia reconhecer, ele que era um privilegiado nas questões emocionais da alfae e podia lembrar dos sinais que aprendera.
Ele então dedicou um pouco da sua atenção para o combate que estava por vir, enquanto a outra parte estudava a nova energia que corria em seu corpo. Na ausência da aura e da mana sombria, o garoto tinha uma perspectiva inteiramente nova, capaz de sentir o talento da vida com distinta acuidade, portanto, seus pensamentos logo mergulharam nas memórias confusas de sua ira, nas novas impressões e, principalmente, no encontro com Blodren e seus atos aparentemente caóticos.
Qualquer restante de consciência fora dedicada para continuar a manter Sofia como refém, o que, considerando sua condição enfraquecida e estar amarrada com uma lâmina flamejante a milímetros de sua pele, não era algo muito difícil de fazer. Logo, o combate se iniciou ao passo que um grande silêncio se instaurou no campo.
Nenhum deles estava em condições de batalhar contra o corvo neste momento, então, Kaella forçar aquele combate ritualístico tinha ao menos atingido o intuito de os permitir recuperar suas forças, ainda que minimamente.
Lucet conhecia um pouco sobre a tradição, uma severamente cruel que, quando invocada, era impossível de ser recusada por um outro corvo, do contrário, aquele que recusasse o desafio recebia um selo de escravidão do próprio Ninho, se tornando o servo pessoal do desafiante. Ele então aguardou, silente, o desenrolar do conflito.
Os oponentes se encararam por vários momentos, olhos treinados buscando aberturas na postura e micro movimentos presentes no inimigo. Anos de experiência ensinaram a ambos como lutar, e para este momento especifico, como matar, contudo, sendo outrora companheiros de combate, era difícil avançar.
Devagar, o par começou a andar em círculos, sem desprender os olhos ou desfazer a guarda combativa, analisando o oponente, esperando um único momento.
Para quem observava de fora, cada passo, breve e deliberado, era uma eternidade. Mesmo aqueles que não praticavam da arte da guerra e matança como o par que se enfrentava, eram capazes de enxergar a tensão que ali estava. Por vezes, alguns dos guardas tinham de esfregar os olhos, tentando desfazer um combate imaginário que assistiam mentalmente.
Cada minúsculo flexionar, dobrar ou inclinar. Cada aperto, estalo ou inspiração, tudo indicava que a luta já havia iniciado, dezenas ou até centenas de movimentos sendo executados entre o par, ainda que nada fosse visto, um embate de altíssimo nível entre perigosos e renomados mestres.
O ar parecia tão denso que ninguém ali conseguia respirar, pois tamanha era a tensão que sentiam, todos segurando o fôlego por medo de perder um instante que fosse do que estava por vir. Silenciosa, as nuvens negras da guerra prosseguiram, e logo, como se a primeira gota por fim caísse, quedou então a tempestade.
Kaella avançou, um simples toque da ponta do seu pé encostando no solo, impulsionando-a. A distância entre ela e o oponente era de meros dez metros, algo que ela cruzou com facilidade, tocando os pés na rocha mais duas vezes. Levemente inclinada para frente, a alfae ergueu sua postura subitamente, desferindo um corte diagonal ascendente que surpreendeu o oponente.
Contudo, os reflexos do humano agiram rápido, enquanto ele girou o torso para o lado, escapando do dano antes de rapidamente jogar a lâmina de uma mão para a outra e, com a mão esquerda, mirar um golpe na direção do pescoço da corvo. Ela, por sua vez, agiu rápido, abaixando a postura a tempo de ouvir o metal cortando o ar acima de sua cabeça, quase atingindo seu cabelo.
O homem então mirou uma joelhada no queixo exposto da alfae, esperando que ela se defendesse de alguma forma, entretanto, ela agiu de forma errática, pisando com força antes de se lançar a frente, girando o corpo no meio do ar para desviar do golpe antes de acertar uma cabeçada no estômago do inimigo.
A maioria do dano fora aparado pela veste do homem, porém, o impacto restante fora suficiente para desequilibrá-lo, fazendo com que retrocedesse um passo, suas costas quase encostando na parede de chamas azuladas. Obviamente, Kaella não perdeu a chance e pressionou o ataque, erguendo a lâmina em uma velocidade alucinante no intuito de atravessar a parte inferior do crânio com o armamento.
O homem, no último instante, pendeu a cabeça para o lado, desviando da ofensiva por milímetros, finalmente o garantindo uma abertura. Ele não perdeu sequer um segundo, executando uma estocada na direção do coração da mulher, ela, porém, já previa o contra-ataque, desferindo uma palma na direção do pulso do oponente, alterando a rota de forma tão abrupta que quase fez com que derrubasse a lâmina.
Sem desistir, o corvo mirou um soco nas costelas da alfae, ela, entretanto, manteve a guarda, seu braço retraído ao lado do corpo, aparando o impacto, contudo, isto fez com que ela fosse arremessada ao chão quando o inimigo aproveitou a oportunidade para passar-lhe uma rasteira.
Avançando, o guerreiro de Puritas dobrou o corpo e prosseguiu a esfaquear a mulher. A lâmina caiu feito um meteorito reluzente, veloz e letal, grande força carregando o intuito assassino por trás do instrumento, entretanto, no último segundo, Kaella rolou para o lado, desviando da arma que facilmente cortou a rocha até que sua guarda tocasse o solo.
Chama tentou extrair o equipamento o mais rápido possível, porém, sua velocidade foi insuficiente, pois no instante seguinte, Kaella girou o corpo e, apoiando as mãos no solo para dar impulso extra, a alfae saltou, executando um chute duplo com força total nas costelas do oponente.
Uma vez mais, a vestimenta absorveu muito do dano, mas o resquício de força foi suficiente para fazê-lo grunhir de dor enquanto seu corpo era jogado para o lado. Kaella, agora de pé, agilmente revertera a situação, entretanto, ao invés de executar um golpe similar ao do oponente, intuindo esfaqueá-lo, resolveu manter sua distância e desferir um chute contra a cabeça do inimigo.
Apressado, o homem ergueu a guarda, seus braços fortes bloqueando o impacto. Ele tentou agarrar o pé que se aproximara, mas, isto foi em vão, pois a alfae facilmente escapou de tal armadilha, porém, no próximo ataque, o corvo reagiu com mais agilidade, encolhendo o corpo em uma posição fetal antes de girar para outro lado, escapando da posição desfavorável, rapidamente erguendo-se.
A essa altura, os dois respiravam apressados, permitindo que o público finalmente soltasse o fôlego preso, resultando em uma onda de suspiros exaustos, bem como o choque de Sofia que não pode evitar um murmúrio atônito.
— Como uma herege pode ser tão forte?
Para qual Lucet respondeu com um grande sorriso no rosto, bem com imenso orgulho de ser o aprendiz desta mulher tão formidável.
— É claro que ela é forte, ela é minha mãe.