Os Contos de Anima - Capítulo 8
Por instantes que pareceram anos, o mundo ao redor de Lucet ficou escuro. Ele não tinha certeza do que estava acontecendo, mas, às vezes tinha a impressão de que estava se movendo muito rápido, e outras, que nem sequer havia se movido.
Naquele espaço negro, tudo era turvo e repleto de trevas como se uma grande névoa sombria lhe tivesse preenchido os olhos e roubado a visão. Seus ouvidos zuniam como se uma bomba tivesse estourado do seu lado e ele sentia como se seu corpo estivesse sendo esticado muita mais do que o possível enquanto seus pés permaneciam imóveis, pesados feito uma montanha.
Um estampido soou no ambiente seguido de um flash de luz. Seus pés então se desprenderam do espaço e seu corpo em instantes se sentia “inteiro” e “normal”, como uma borracha que havia sido esticada e depois houvesse recolhido sua forma. Kaella havia neste instante soltado seu ombro.
Seus pés tocaram o chão, mas, antes que pudesse reagir, uma grande dor tomou conta de todo seu corpo. Como se um relâmpago estivesse correndo por cada fibra da sua pequena existência, ele tropeçou e foi ao chão, rolando de dor enquanto sua boca abria e fechava como se tentasse urrar mas sem conseguir soltar um pio que fosse.
Seu corpo tremia. Seus músculos protestavam com constantes espasmos enquanto seu coração batia tão descontrolado no peito que parecia que estava prestes a explodir. Seus pulmões ardiam como se estivessem sendo queimados por dentro, sua garganta fechada como se alguém estivesse tentando lhe estrangular ao passo que veias saltavam por todo seu corpo.
Por um instante que apenas Kaella pode notar, o saco lustroso amarrado a sua cintura começou a pulsar. Ao checar, ela descobriu que o que pulsava era o medalhão que o diretor deixou aos seus cuidados.
Uma fraca luz vinha do objeto. A mulher retirou com cuidado o objeto e ao analisar, viu que as palavras em antigo byblônico brilhavam com uma luz branca. Uma idéia começou a surgir em sua mente. De início, ela pensou em ignorar, pois não tinha razão alguma dela pensar nisso, mas com o tempo sua cabeça começou a doer enquanto tentava resistir e, quando já não conseguia mais tolerar a dor, acabou aceitando e executando a idéia.
Não sabia exatamente de onde a idéia surgiu, apesar de ter suas suspeitas, mas resolveu pegar a corrente do objeto e passar em volta do pescoço do garoto, formando assim um colar, antes de deixar o medalhão repousando sobre o peito da criança.
O medalhão brilhou por um instante e, com um pulsar do metal prateado e um lampejo branco das letras, uma luz dourada envolveu todo o corpo do garoto.
— Acalme-se criança, essa dor que está sentindo é bem normal ao utilizar o passo dos corvos, eu coloquei um medalhão encantado em volta do seu pescoço para ajudar a amenizar a dor — ela disse — E ela já deve acabar bem…Agora.
Mal as palavras da elfa foram processadas por sua mente quando, exatamente como dissera, a dor passou e seu corpo se sentia melhor do que nunca. Ele se sentia leve e energizado, sua mente tranquila, ágil e com imensa facilidade de se concentrar.
— Você precisava ver a primeira vez que eu tive que usar essa técnica — ela riu — Foi igualmente doloroso, mas diferente de você, eu não tinha uma incrível mestra para me ajudar. Meu mestre disse que eu teria que aguentar a dor para me acostumar, e, apesar de ele estar certo, pois eu me acostumei muito mais rápido, ainda acho que não é absolutamente necessário fazer com que a experiência seja tão dolorosa.
O garoto então olhou para ela.
— Você passou por toda essa dor sem ajuda?!? — Ele questionou, descrente.
— Sim, na minha época de aprendizado eu não tive a sorte de ter relíquias como a sua — Ela respondeu.
Apesar de ela saber que aquele medalhão no pescoço do garoto era algo muito mais antigo do que até mesmo a existência da divisão dos cinco, ainda assim, ela não planejava revelar para o garoto, ao menos por hora, sua verdadeira, e, muito problemática, origem.
O garoto virou seus olhos para a relíquia que descansava no seu peito. O objeto era fascinante, com suas cores prateadas e um corpo que, apesar de metálico, era morno e agradável ao seu toque. Quando resolveu erguer o objeto com suas mãos para poder ver melhor, sentiu como se ele fosse uma parte de si, algo essencial que nunca devesse perder em toda a vida.
Inicialmente, ao ouvir de Kaella como ela havia superado a dor por conta própria, ele queria tirar o medalhão e passar por outra demonstração da magia, para que ele pudesse fazer o mesmo. Queria de todo jeito ser capaz de fazer o mesmo que a elfa, sabia que era capaz de suportar! Porém, ao olhar para o objeto, qualquer pensamento de retirá-lo desapareceu e, portanto, simplesmente o deixou ali. Ele se virou para a elfa e tentou questionar.
— Mas…Instrutora Kaella, de onde…
Kaella porém o interrompeu.
— Não sou sua instrutora criança — Ela repreendeu — Sou sua mestra! E portanto, você irá se referir a mim como tal.
— M..Mas Ins… — Ele tentou dizer.
— Mestra — Ela interrompeu.
O garoto suspirou, respirou fundo e se concentrou.
— Mas mestra Kaella — ele disse tentativamente, e ao ver o sorriso da mulher, continuou — De onde veio essa relíquia?
— Essa relíquia é uma coisinha interessante que consegui numa de minhas explorações pelas antigas ruínas de Byblos — Ela fabricou a história — Não tem muito uso para mim pois seu efeito já não pode me auxiliar, porém, para alguém que está começando a aprender sobre a magia como você, será muito útil.
Kaella havia analisado as emoções e pensamentos do garoto para tentar descobrir quais efeitos que o medalhão havia proporcionado. E pelo que foi capaz de descobrir, começou a montar a “história” do medalhão.
— Ela ajuda na recuperação da fadiga física e mental, além de tratar dores, e, em situações de emergência, prover o usuário com energia para conseguir escapar do perigo — Ela afirmou — Creio que já consegue sentir os efeitos não? Como a energia que ela provém é muito pouca para minhas reservas atuais de mana, creio ser melhor dar ela a você, para que num perigo que eu não esteja por perto, você possa ter uma chance maior de sobrevivência.
Obviamente, o garoto que já os havia sentido, ficou ainda mais maravilhado e facilmente acreditou na explicação.
— E qual é o nome dessa relíquia?
“Droga! Será que o medalhão aumentou a inteligência do garoto também?” ela pensou, rapidamente tentando fabricar um nome aleatório para a coisa.
— Nunca exatamente descobri — Ela disse, xingando em sua mente antes de ter uma idéia que a fez sorrir gentilmente — Também nunca exatamente me importei em dar um nome, pois, quando descobri, já não tinha mais uso para mim. O que acha de dar um nome para ela?
Nesse instante, o mundo ficou silencioso para Lucet. Ele fechou os olhos e sua mente relaxou ao passo que uma sensação peculiar tomou conta de seus pensamentos. Uma coroa reluzente e majestosa surgiu diante de si e uma voz estrondosa, como o estourar de um trovão soou para si, numa língua que não reconhecia, mas que estranhamente, compreendia o significado.
“Ego Sum Fortuna Impera”
— “Ego Sum Fortuna Impera”? — ele repetiu — “Eu sou o destino do imperador?” É esse seu nome? Destino do Imperador?
A coroa reluziu ainda mais e pulsou, como se assentindo.
— Que nome forte! Eu gostei! — Ele riu.
O garoto abriu os olhos.
— Gostou do nome mestra?
— Nome? que nome? — Ela questionou, confusa.
— Você não me ouviu dizer? — Ele perguntou.
Ela chacoalhou a cabeça uma vez, indicando que não.
— Estranho… Achei que a voz tinha sido bem alta…
Apesar de curiosa, Kaella imaginou que se continuasse pressionando a criança por respostas, acabaria despertando questionamentos desnecessários, então, desviou do assunto e apenas disse.
— Qual é o nome afinal?
— Fortuna Impera — Ele respondeu.
Kaella, que conhecia o significado disse.
— Destino do Imperador huh? Bom nome.
O garoto apenas sorriu e então virou a atenção para o medalhão.
A elfa observou o fascínio da criança e sorriu. “Bem, se eu tivesse uma promessa divina direcionada a mim, eu também ficaria bem feliz” pensou. Apesar de querer explorar as outras habilidades que a relíquia poderia possuir, Kaella reconheceu que este fora um dia em tanto para o menino, pois, não só foi introduzido a magia que tanto queria aprender, mas também foi adotado e se tornou um discípulo seu. Descansar era o ideal agora.
— Sei que está animado com sua nova vida, porém, agora está bem tarde criança — ela disse — Não apenas de entusiasmo, talento e esforço é feito um grande mago, mas também de grande conhecimento. Especialmente a sabedoria de quando parar e descansar.
Ao ouvir isso, Lucet já sabia que sua nova mestra queria que fosse dormir. Ele sabia que já passava da hora de um bom descanso, afinal, o sol no horizonte já havia desaparecido quando ele havia encontrado o duelo entre sua mestra e o diretor, mas mesmo assim, ele estava mais energizado do que nunca após vestir a relíquia, por isso, protestou.
— Mas mestra!
Kaella porém o interrompeu, um tom mais severo em sua voz.
— Nada de mas! Agora é hora do seu descanso criança — ela disse, sua voz firme — Amanhã começaremos seu treino no momento em que o primeiro feixe de luz solar banhar o vale e eu não tenho nenhuma intenção de me repetir, portanto, sugiro que durma para que esteja nas melhores condições pela manhã.
Enquanto a elfa falava, diversos argumentos surgiam em sua mente para contestar a necessidade de dormir, porém, no momento em que ela citou que o treino começaria quando o primeiro raio de luz iluminasse o vale, ele logo ficou ainda mais animado, pois, faltavam poucas horas para aquele momento, e apesar de muito a contragosto, aceitou ir dormir sem mais protestos.
Ao passo que aceitou ir para cama, uma questão surgiu em sua mente, e finalmente ele desgrudou seus olhos de Kaella e observou o ambiente. Ele estava em um quarto que era todo feito de madeira. Sua mente trabalhou e logo notou que não era uma mera construção, mas sim, o interior de uma árvore.
Cada detalhe do cenário era natural e era como se a própria árvore tivesse crescido naquele formato. Não havia qualquer móvel que fosse ou decoração, apenas a natureza. havia uma grossa raiz que se destacava no ambiente, pois ela crescia para fora da parede e tinha o formato de uma bacia, e dentro dela havia uma diversidade de folhas verde-escuras que forravam e, até onde podia perceber, provavelmente serviam de colchão para essa “cama”.
Existia uma janela e lanternas no local. Não, o mais correto a dizer é que existia um buraco por onde a luz podia entrar e iluminar o lugar, e também um conjunto de cogumelos luminosos que, pensava ele, brilhavam no escuro o bastante para que pudesse enxergar ali. Lucet então se virou novamente para Kaella e perguntou.
— Mestra, onde estamos? Você mora aqui?
— Estamos dentro de uma das árvores do vale que eu pedi a um dos mestres Faeram de Elysium para moldar com sua arte druida para servir como moradia quando vim morar nesta vila pela primeira vez — ela respondeu com um leve sorriso — Porém, com o passar dos anos eu naturalmente construí minha própria moradia dentro da vila e acabei deixando este local em desuso. Por sorte, ele não mudou muito desde a última vez que estive por aqui, portanto, creio que esta seja uma moradia apropriada para você.
— Espera… — ele disse — Está me dizendo que eu vou morar aqui… sozinho?
— É exatamente o que eu estou dizendo garoto — ela riu — A sua volta existe a abundante natureza que pode lhe prover comida e água, e caso esteja com medo, posso facilmente utilizar minhas habilidades arcanas para vigia-lo e aparecer rapidamente no caso de perigo.
— M…Mas mestra! — Ele protestou — Eu não sei quais frutas posso comer, quais ervas posso usar ou até mesmo como escalar as árvores para pegá-las! Se algum animal aparecer, não sei como lutar ou me defender!
— E é exatamente isso que vai aprender vivendo por aqui — Ela respondeu — Eu irei lhe ensinar como fazer todas essas coisas! Sou sua mestra e ensina-lo é meu propósito, não sou uma irresponsável como aquele diretor que não lhe ensinou nada da vida.
Lucet riu e logo a elfa o acompanhou. Por alguns instantes riram e logo, ambos, mestra e discípulo sorriram. Kaella sabia que seriam grandes os desafios do garoto, e, por mais que lhe cortasse o coração, ainda tinha de ser dura com ele para que seus talentos florescessem o mais rápido possível, afinal, sua vida dependeria disso no futuro.
Quando a promessa divina se cumprisse e desfizesse sua proteção, ele terá de depender apenas das suas próprias habilidades, portanto, quanto mais ela conseguisse ensinar até esse dia, melhor. Lucet por sua vez, apesar de um pouco amedrontado com o aspecto de viver sozinho no vale, ainda assim sentia alegria brotar em seu peito e espalhar pelo corpo. Finalmente iria começar a treinar! Iria aprender magia e se tornar um mago!
Kaella então abriu o saco escuro amarrado a sua cintura e tirou dele um manto feito de um tecido azul escuro que parecia imitar o céu noturno. Ela acenou a cabeça para Lucet e apontou na direção da cama de folhas, e ele, prontamente foi a ela e se deitou. No momento em que deitou, todas as suas expectativas sobre as folhas foram desfeitas. Esperava que pinicassem e que ficaria desconfortável ao deitar, pois afundaria e ficaria todo torto, porém, quando deitou, deu de encontro com a superfície mais confortável, macia e agradável que já deitou em toda sua vida. As folhas eram macias como penas, e, ao mesmo tempo resistentes como chapas de metal que não dobravam e pareciam ser capazes de aguentar um elefante sobre elas.
— Aaaahhhh…Tão bom… — Ele disse, suspirando aliviado.
— Claro que é — Kaella comentou rindo — Você acha mesmo que eu deixaria que fizessem o material da minha própria cama com um servicinho meia-boca?
O rosto de Lucet ficou escarlate enquanto ele ria desajeitado. Era óbvio que era bom! Essa era a antiga morada da sua mestra, como poderia ser algo comum? O garoto então virou seu corpo e ficou de costas para Kaella, tentando esconder seu rosto avermelhado, e a Alfae, por sua vez, andou na direção da criança a passos silênciosos e cuidadosamente pôs sobre ele o manto que, alguns segundos depois, reluziu e começou a aquecê-lo.
— Este é um manto encantado que me acompanha desde os dias que eu comecei a treinar — Ela comentou — Ele foi dado a mim pelo meu mestre como presente de aprendizado, e agora, eu passo ele a você. E não pense que só porque é antigo que ele não é grande coisa! Ele nunca deixará que fique frio mesmo nas temperaturas mais congelantes, e no calor, ele o manterá refrescado se o usar sobre si, sempre mantendo a temperatura ideal. Além disso, é quase impossível de rasgar ou perfurar pois foi tecida com fios-estrela e encantada por um renomado mestre Gnoma sob as ordens diretas da corte real de Aeter Adamas.
Sem que Kaella tivesse o tempo de entender o porquê, Lucet se virou e levantou abruptamente antes de lançar seus pequenos braços ao redor da cintura da elfa e abraçá-la. Através de suas vestes, a elfa pode sentir um líquido quente escorrendo por sua cintura, seguido de soluços abafados, e logo, ela suspirou. “Ele ainda é uma criança” pensou “Mudanças demais de uma vez só certamente são assustadoras, ainda mais para alguém da idade dele”
Ela então afastou a criança da sua cintura, se ajoelhou e a deu um abraço apertado enquanto falava.
— Está tudo bem… é só um presente — ela disse, seu tom de voz suave como uma brisa — Não precisa chorar, não é nada de mais.
— M… mas… é… é a primeira v… vez que eu g… ganho um presente… — Ele respondeu aos soluços — N…nem meus pais ou o diretor me deram alguma coisa…S…Será que eles não me queriam?
O coração da elfa doeu por um instante e seu abraço apertou um pouco mais enquanto ela afagava sua cabeça.
— Está tudo bem pequeno— ela disse, sua voz um pouco trêmula — Esse é só o primeiro de muitos. A partir de hoje, todos os anos, nesta mesma data, lhe darei um presente para comemorar o seu aniversário de discípulo.
Ela se levantou, limpou o rosto do menino e o deitou na cama, cobrindo-o novamente, a ternura reluzindo em seus olhos enquanto ela o ajeitava com todo o cuidado. Sem perceber, a Alfae já tinha se apegado a criança, seus instintos maternos, que nunca havia desenvolvido pois nunca explorara um relacionamento que lhe gerasse um descendente, afloraram e, sem que notasse, um carinho nasceu em seu peito pela criança diante de si.
Kaella se sentou ao lado da cama e começou a cantar uma cantiga Alfae. Lucet não entendia uma palavra sequer, porém a voz da elfa era doce, suave, e tão carregada de carinho, além de um tanto de mana, que ele não pode resistir e em questão de alguns minutos, adormeceu.
Quando ela notou que o menino já dormia e sua respiração era tranquila, ela murmurou algumas palavras e fez alguns gestos com suas mãos cobrindo cada superfície do local com feitiços de vigilância e proteção. Depois, com uma silenciosa distorção do ar, ela afundou em sua sombra e desapareceu, deixando para trás apenas umas sutis e gentis palavras.
—Descanse bem criança, pois seu caminho ainda será muito difícil.