Os Contos de Anima - Capítulo 90
Todo o público, com exceção de Lucet que mal conseguia conter seus risos, quedou silente, uma profunda confusão assolando suas mentes. Todos ouviram as regras e declarações contratuais, e justamente por isso, se encontraram confusos com o que acabara de acontecer.
No espaço da barreira de chamas azuis, eles ouviram a guardiã declarar que a luta seria sem o uso de aura ou mana ou interferência de ferramentas externas, enquanto que o corvo declarou que nada vivo poderia adentrar a barreira para ajudar, portanto, e nisso todos viraram seus olhos para o garoto que estava prestes a gargalhar, como exatamente ele acabara de usar seu poder.
Os guardas que enfrentaram os guerreiros rubros sabiam que aquela réplica era obra do meio-sangue, mas, sendo eles alfae, não pensaram muito sobre a origem do fenômeno, atribuindo este poder a algum uso complexo e inovador da mana. Mas, agora que sabiam das restrições do espaço de combate, era claro que isto não era um uso do poder arcano, mas algo totalmente diferente.
Eles observaram surpresos enquanto a imagem sanguínea surgiu, recebendo o golpe destinado a guardiã, interceptando qualquer dano sem o menor dos esforços. Em seguida, avistaram o cerrar do punho da figura, apenas para segundos depois o mesmo entrar em ignição, produzindo chamas escarlates.
Com um largo sorriso no rosto, a réplica então mirou e desferiu um soco flamejante direto contra a máscara do oponente, um impacto audível surgindo como resultado ao passo que o corpo do corvo foi arremessado para o lado, caindo imóvel. Neste tempo, o apetrecho facial se partiu, suas partes brancas incineradas pelo calor das chamas e sua intensidade.
Diferente da expectativa de tal ataque, apenas o objeto fora destruído, o rosto debaixo do mesmo sendo preservado.
— MESTRE! — A garota forçou suas amarras, um olhar violento direcionado ao seu captor — Maldito trapaceiro!
Sofia gritou, dobrando seus esforços para se soltar. Lucet, entretanto, não lhe permitiu qualquer conforto, virando seus olhos por um breve momento na direção da garota antes de falar, sua voz fria e perigosa, quase um rosnado de ira.
— Somos todos corvos — ele afirmou — Ele deveria estar preparado para alguma espécie de truque.
A garota se mexeu ainda mais, intuindo liberta-se por qualquer meio necessário, tentando desesperadamente invocar sua mana, contudo, o garoto não estava com paciência para qualquer resistência da jovem, por tal, aproximou sua lâmina flamejante da pele de seu pescoço, permitindo que a chama rubra encostasse na superfície dérmica.
A corvo tremeu no primeiro momento, temia que sua rebeldia traria uma punição letal, entretanto, diferente do que esperava, não sentiu o toque da lâmina e nem mesmo o calor das chamas que a assolavam momentos antes.
Isso é, pelo menos durante algumas frações de segundo.
Partindo do fragmento de pele tocada pela flâmula vermelha, calor se espalhou por todo o físico da garota instantaneamente, mas, este era apenas o início.
Uma dor lacerante, intensa como um relâmpago correndo por suas veias assolou a jovem. Ondas e pontadas de dor expandiram por todo seu corpo, consumindo qualquer semblante de bravata que ela outrora mantivera, trocando tudo por um irrefreável grito do mais puro sofrimento.
Seus batimentos dispararam ao passo que sua boca se abria, sugando o ambiente em busca de mais no mesmo ritmo que seus pulmões se recusavam a absorver qualquer coisa, expelindo em um surto de desespero. Ela conseguia sentir seu corpo acelerar ao descontrole imediatamente.
Sua visão desfocada, seus lábios secos, seus membros chacoalhando em espasmos involuntários. Mãos e pés esfriando rapidamente, a mente confusa e a cabeça latejando tanto que não seria surpresa pensar que o crânio estava sendo golpeado com um martelo. O sangue ardia em suas veias ao mesmo tempo que parecia se tornar gélido.
A estrutura que era sua própria existência assemelhava-se a não mais que uma massa de partículas, continuamente sendo compressas e esticadas além do limite, tal como um elástico. Esta sensação era familiar para os corvos, afinal, uma das técnicas mais úteis e comuns dos furtivos guerreiros transmitia algo parecido a si, contudo, Sofia não tinha sequer a paz mental para analisar tal feito.
Sua consciência era constantemente atacada, todos os seus sentidos simultaneamente disparando alarmes que nem toda a força de vontade no mundo parecia ser capaz de frear.
E foi então que, em meio a dor interminável daquele tão simples toque que a garota sentiu. A familiaridade que identificara previamente no estado incontrolável do meio-sangue surgira em si uma vez mais, mas diferente. Não era mais como um atributo alheio que seu corpo invejasse, mas sim algo seu.
Dentre o sofrimento, ela sentia algo despertar em si, algo feroz e irresoluto, indignado com o ataque que a assolava. Ela não sabia dizer exatamente o que era isso, mas entendia instintivamente que esse algo desejava lutar, e a cada fração de instante, o que quer que fosse aquilo, se aproximava de uma explosão.
Mas, no último instante possível, quando ela quase era capaz de se comunicar com essa nova sensação, quando estava prestes a verdadeiramente chama-la de sua, tudo desapareceu como se jamais tivesse existido.
Todas as sensações abruptamente foram removidas do seu ser, junto com aquela nova e intrigante ira. O pulsar de seu coração por fim desacelerou, seus pulmões por fim aceitaram o ar novamente e, em um fôlego súbito, a garota desatou em lágrimas, gritando em um profundo desespero que misturava tantas emoções que aqueles que ouviram não tiveram escolha além de se comover por um instante.
Vários olhares foram direcionados para o garoto que causara tudo isso, mas ele apenas sorriu, fingindo sequer ter ideia do que havia ocorrido, e então, um sonoro baque chamou a atenção do público.
Neste breve instante de infindável agonia para a jovem corvo, seguido obviamente do terrível grito da garota, o combate tomou um rumo inesperado. Ainda que tivesse direcionado uma breve quantia de energia para punir Sofia, Lucet mantivera sua maior concentração em aprender sobre e controlar a nova habilidade que despertara.
Assim, quando executou o contra-ataque no corvo que intuía matar sua mãe, ele aprendeu algumas coisas. A réplica escarlate era essencialmente imortal. O talento da vida consistia em partilhar fragmentos da própria essência vital manifestada através do sangue, para dar movimento e poder a matéria não-orgânica, além disso, qualquer que fosse a matéria tocada pela essência, agora fazia, temporariamente, parte de si, portanto, estava sob seu total controle e desejo. Então, enquanto houvesse essência para reconstruir a réplica, era impossível destruí-la.
Obviamente, tal energia não era ilimitada, muito menos onipotente, contudo, quanto maior a vitalidade de um ser que manifestasse tal talento, maior seriam os feitos que tal ser seria capaz de executar e Lucet era alguém que exemplificava tal restrição.
Após os quase três anos de coma, o meio-sangue, alguém já possuidor de vitalidade extraordinária devido a sua origem alfae que lhe garantia extensos anos de vida, recebera um incremento qualitativo em seu poder e essência vital como presente de Faerthalux, além disso, quando recebera o olho do tirano de Dracul, também fora agraciado com um doloroso batismo que o abençoara com uma fração da vitalidade da fera, algo que para alguém tão pequeno como ele era como tentar comprimir uma montanha dentro do bolso da calça.
Por tal, no despertar deste talento, mesmo que em descontrole, o garoto fora capaz de invocar dezenas de réplicas e, após tomar algum tempo para analisar a habilidade, sabia que quando obtivesse uma compreensão superior bem como prática, seria capaz de trazer à tona aplicações ainda mais extremas do poder.
Ao observar o espaço do combate, Lucet comandou a réplica a se aproximar, seu intuito sendo de finalizar a luta o mais rápido que possível. Ainda que estivesse sob controle agora e aumentando constantemente sua compreensão do talento, fazê-lo requeria muito da energia, afinal, adquirira a nova capacidade apenas a algumas dezenas de minutos, não podia manter o mesmo por muito tempo.
Mas, no instante em que o soldado rubro se aproximou, chamas escarlates brilhando em seu punho cerrado, o corvo se mexeu rapidamente, agindo com surpreendente agilidade para alguém que instantes atrás havia sido golpeado com tanta força que fora arremessado por alguns metros.
A lâmina ainda em suas mãos, ele apoiou-se com as palmas, girando o corpo antes de se arremessar, mirando um chute na cabeça da réplica. Sem qualquer surpresa, o soldado foi capaz de desviar apenas virando o pescoço, afinal, possuía as mesmas habilidades do garoto, ainda mais com ele direcionando sua consciência para o combate.
O guerreiro tentou agarrar a perna do corvo, contudo, no inicio do movimento ele foi prontamente interrompido pela lâmina que atravessou o braço e cravou-o junto ao peito. Retraindo o corpo, o corvo então rolou para trás antes de se erguer com um salto, imediatamente entrando em postura de combate.
— Tch! Desgraçado! — Lucet reclamou — Não é à toa que é alguém reconhecido pela mãe — Um largo sorriso então brotou em seu rosto — Mas, isso não vai ser um problema por muito tempo.
Ininterrupta pela lâmina, a réplica então removeu o armamento do braço, limpando o sangue do metal antes de jogá-lo na direção de Kaella. A mesma, ainda um tanto surpresa, recebeu o armamento e então sorriu, direcionando o mesmo para o lado de fora desta vez onde o garoto a esperava com um gesto semelhante.
Ele então falou, ainda que não pudesse ser ouvido, mas sabia que a alfae poderia ler seus lábios. Neste momento, a réplica se virou para o oponente, estalando os dedos.
— Vamos acabar com ele mãe.
Fala ao qual a guardiã apenas respondeu com um raro riso antes de se virar para o oponente, dizendo.
— Sim, está mais do que na hora de encerrar este combate.