Os Contos de Anima - Capítulo 92
Qualquer noção de trauma ou ferimento era a coisa mais distante da mente do garoto. Diante da possibilidade de qualquer mal ocorrer á aquela que tanto lhe ensinou e protegeu, seu corpo e vitalidade irrompiam com grande potência, injetando um incremento considerável no corpo do soldado rubro.
O braço decepado sequer teve tempo de cair quando o outro membro disparou seu punho na direção das costelas do oponente, uma distinta expressão de fúria no rosto do guerreiro que imitava a exata mesma que decorava as feições do meio-sangue que o controlava e o dera origem.
Talvez fosse a confiança de uma vitória absoluta agora que estava apropriadamente armado ou até mesmo a distinta arrogância que vem com o poder, mas, quando o punho flamejante veio em sua direção, o corvo não teve tempo de desviar e, diferente das outras vezes onde aparou e evadiu os golpes, este o acertou em cheio.
No primeiro instante, o impacto foi apenas físico, o punho e toda a energia cinética atingindo a estrutura óssea com um baque potente, um que se fosse apenas por ele poderia ser tolerado, porém, um mero fragmento de tempo depois, o real poder daquele golpe irrompeu em uma explosão violenta.
Chamas sanguíneas se alastraram na colisão como se um canhão o tivesse acertado, destruindo parte da roupa e incinerando a pele e musculo até que se pudesse ver o branco dos ossos abaixo, estes fragmentados pela força do ataque recebido. O que veio a seguir era o resultado óbvio.
Por um momento, o branco dos olhos tomou o lugar das irises normais do homem, sangue jorrando de sua boca enquanto o corpo se contorceu por instinto para o lado ao tentar reduzir os danos e proteger o ferimento de danos mais severos, e justamente esse momento foi o que trouxe o fim a esse prolongado conflito.
Lucet urrou, comandando a energia rubra ao máximo, empalideceu ainda mais, sua face similar a um cadáver ao passo que injetava mais poder na réplica. Em uma velocidade quase que instantânea, cresceu outro braço, acendendo e compactando chamas ao redor do punho, desferindo outro ataque que atingiu o centro do torso do peitoral do homem, partindo e afundando seu esterno, incinerando mais uma parte da vestimenta e tecidos físicos, arremessando o corvo para trás com a explosão seguinte.
O garoto sentiu sangue quente subir a sua garganta, mas, este era o instante decisivo, portanto, suprimiu o dano e engoliu o liquido, ao invés disso gritando, agora sendo ouvido devido ao dano causado na barreira.
— VAI MÃE! ACABA COM ELE!
A alfae, inicialmente chocada pela demonstração assustadora do novo poder que Lucet acabara de despertar, firmou o aperto das mãos em volta de seus armamentos e disparou com um salto, pronta para desferir o golpe final e fincar as lâminas no peito do adversário, encerrando sua vida.
— MESTRE! NÃO!
Sofia urrou desesperada, chacoalhando-se em busca de escapar de suas amarras, não se importando mais com a ameaça da adaga e das chamas a centímetros de seu pescoço, o medo e a dor prévias engolidas pela urgência da situação e, estranhamente, isso pareceu funcionar pois uma faísca de energia dourada atingiu as cordas, rasgando-as com facilidade e libertando a garota que não perdeu um único instante e empurrou seu captor cuja atenção estava totalmente virada para o combate.
Em qualquer outra circunstância, ou até mesmo a alguns minutos atrás, o empurrão não teria sido suficiente para sequer mexer um dedo do garoto, quanto mais todo seu corpo, contudo, agora enfraquecido pelo esforço e energia que demanda o controle direto do soldado rubro, Lucet cambaleou para o lado e caiu sentado, sua atenção removida a força do conflito.
— Mas o que… Ah! Droga!
Um tanto confuso, o garoto tardou por um momento a entender porque se encontrava no solo, mas, quando enxergou a oponente agarrando seu armamento, um brilho nauseante ao seu redor enquanto estendia a mão em direção a grande fera presa no gelo, ele compreendeu e prontamente se ergueu.
Bem, ele tentou se erguer pelo menos.
Mesmo aprendendo um pouco mais sobre a extensão e potência do talento da vida, Lucet ainda não tinha total noção do quão abrangentes eram as capacidades do mesmo, bem como seus respectivos custos. Ao apoiar sua mão no solo e tentar se erguer, sentiu o braço tremer no instante em que tentou convocar forças sobre o membro, rapidamente tombando para o lado, forçado a enxergar sua oponente escapar, libertando a fera e a retirando para sua respectiva dimensão externa.
— Descanse, Raizen, lutemos outro dia.
Empunhando seu armamento, a garota então disparou em direção a redoma, buscando invadir o lugar pela abertura causada pela espada luminosa que despencou dos céus, contudo, ainda que fisicamente enfraquecido, Lucet, sua mente afiada, comandou o soldado, tomando controle dele novamente. O soldado se virou, punhos cerrados envolto em chamas, pronto para entrar em combate contra a jovem.
Foi então que um vento começou a soprar.
A corrente de ar era fria, rápida, violenta. Todos os atingidos não tiveram escolha além de tremer por um instante antes de tentar resistir a súbita queda de temperatura. Os céus acima, outrora alumiados por dezenas de feitiços e proteções, agora escureceram, nuvens negras cobrindo as luzes, prenunciando algo inédito nos acontecimentos.
O domo de trevas criado por Kaella previamente já era intimidador o suficiente, contudo, comparado a isto, deixava um pouco a desejar. Lucet, bem como qualquer um dos envolvidos, espectadores ou combatentes, sentiu seu corpo pesar em um ritmo exponencial, o solo abaixo de si protestando contra sua massa que esmagava a rocha partida com uma fina proteção rubra ao redor de sua estrutura.
— Mal…di…to… — Lucet disse com grande esforço por entre dentes cerrados, uma clara irritação decorando sua expressão — Precisa… mesmo… disso… tudo?
A guardiã, seu ataque interrompido pelo súbito incremento gravitacional, quedou ao solo em despreparo e caiu de joelhos, sentindo um choque correr por seus nervos e escalar a coluna, causando-lhe calafrios por um instante, devolveu a clareza aos seus pensamentos instintivos que ansiavam destroçar o oponente em combate.
Para Kaella, a pressão não bastava para derrubá-la, ao menos não como fizera com Lucet, que agora não conseguia mexer sequer um dedo enquanto resistia o poder que acabara de ser introduzido ao cenário combativo, entretanto, ela voluntariamente cessou o combate e se ajoelhou. Não demorou mais que alguns instantes para que os espectadores se ajoelhassem, afinal, todos reconheciam exatamente de onde vinha este efeito.
Sofia, por sua vez, não conseguiu resistir o crescente peso sobre seu corpo, caindo de joelhos antes de se encolher em posição fetal, abraçando sua lança, enquanto tentava suportar a energia esmagadora que comprimia seu físico.
Em uma voz, Kaella e os outros alfae entonaram.
— Majestade! Estrela de Lumina!
E então, de um ponto distante, uma grande fera, serpentina em estrutura, escamas colossais feito casas, essencialmente uma versão drasticamente maior que as criaturas de gelo conjuradas por Luna, surgiu, sobrevoando a capital, entrecortando e criando seu caminho através das nuvens, reluzindo como um cometa que viajava livremente acima do coração do continente das luzes eternas.
Sobre o crânio da bestas, estava um ser, sua estatura altiva e imperiosa, uma existência tamanha que simplesmente demandava respeito de qualquer que avistasse. Suas feições pálidas, de olhos azuis que brilhavam com uma quantia assustadora de mana ao passo que a aura que normalmente estaria ao redor de si manifestava-se na forma de sua criação gigantesca, a enorme massa arcana sob seu perfeito controle.
Ele vestia uma armadura radiante de branco e azul, uma espada em sua cintura, um manto esvoaçando heroicamente em suas costas, seu longo cabelo ajustado em um rabo de cavalo. Uma de suas mãos, esta cerrada em um punho, reluzia com energia azul, já a outra, repousava sobre o pomo da lâmina que carregava.
Eventualmente, a luz da fera cresceu e se espalhou, suprimindo todas as outras exceto um ponto teimoso de luz dourada que insistia em permanecer intocado, inexpressivo, circundando uma figura encapuzada.
As gemas da coroa na cabeça deste guerreiro brilhavam quando ele projetou sua voz a todos, impondo sua autoridade e exibindo seu poder.
— Qual é o propósito desta visita tão repentina, cão de Puritas? Sua pontifícia decidiu abandonar as pretensas e declarar guerra contra meu povo?
Por alguns momentos, o ser encapuzado envolto em chamas douradas permaneceu em silêncio, seus pensamentos e desígnios um mistério, contudo, tal como o silêncio antes da tempestade, ele logo agiu.
Abrindo o manto que o envolvia, o ser revelou uma armadura totalmente branca, pura e pristina, imaculada. Em sua cintura, um sabre negro, escuro como a mais sombria das trevas e lustroso como a mais polida das joias. Uma mão então se apresentou, esta coberta por uma manopla radiante que em instantes concentrou uma quantia considerável de luz acima de si e, instantes depois, criou um pergaminho enrolado, uma fita dourada com um selo carmesim sobre si.
O ser então manipulou ainda de sua energia luminosa, criando uma bolha protetora ao redor do documento antes de enviá-lo na direção do guerreiro oposto a si, que recebeu o objeto, observando-o por um momento antes de abri-lo. Após ler por alguns instantes, o monarca não pode conter um riso furioso, dizendo:
— Então a Pontifícia realmente quer um combate!? Que espécie de exigências são essas? — ele questionou, amassando o documento enquanto labaredas azuladas consumiram o papel em questão de segundos, a expressão outrora plena do líder dos alfae se contorcendo em uma verdadeira face de indignação e fúria — Render-nos a seu poder? Entregar o meio-sangue criminoso, um aliado de minha nação, bem como a sua mãe, a minha súdita leal, como compensação pelos anos de proteção do garoto? Isso é alguma espécie de piada?
Acompanhando a crescente ira do monarca, a terra começou a tremer, os ventos correndo velozes enquanto as nuvens de tempestade cresciam, relâmpagos correndo ao lado da grande besta azul que carregava o rei. O alfae sacou sua lâmina, pronto para o combate, porém, a figura encapuzada apenas sacudiu a cabeça, apontando sua mão em direção ao corvo ferido, em seguida direcionando a outra a Sofia raios luminosos reluzindo sobre o par de aluna e mestre.
Orbes protetoras se formaram ao redor da dupla e então, antes que até mesmo o monarca pudesse reagir, o ser encapuzado liberou um flash de luz, cegando os presentes por um breve instante, forçando-os a cobrir os olhos, quando finalmente puderam enxergar novamente, a figura havia desaparecido, o único rastro da existência dos últimos eventos sendo um ponto luminoso que brilhava no horizonte, se afastando cada vez mais rápido dali.