Pacto com a Súcubo - Capítulo 101
“O que é o mal?
Uma vez eu li um trecho da bíblia que dizia ‘o Diabo está ao redor, bramando como leão, procurando alguém para devorar’ ou algo assim. Não lembro as palavras ao certo, mas era próximo disso.
Me faz lembrar que o mal está em todo lugar, em volta, procurando uma brecha, uma abertura para nos atacar. Talvez esteja até dentro de nós. É aquele sussurro, aquela voz suave, adocicada, nos dizendo o que não queremos ouvir.
O mal não é uma coisa viva, mas um modo de agir, de pensar e de fazer.
Eu vi o mal quando era criança. Testemunhei meus pais serem mortos na minha frente e não pude fazer nada. O mal foi minha fraqueza. Se eu fosse forte, poderia impedir aqueles assassinos. Se eu fosse forte, minha mãe não teria sido estuprada e morta; meu pai não teria morrido tentando defender a ela e a mim. O mal foi meu medo. Minha covardia. Minha incapacidade de fazer alguma coisa. Minha fraqueza.
Eu tinha cinco anos.
Esse mal não vai se repetir! Nunca! Não vou deixar! É por isso que preciso de poder! Preciso ficar cada vez mais forte, mesmo que eu ponha a mim mesmo em risco.
A estrada até aqui foi perigosa. Dessa vez, conseguimos, mas e na próxima? O anjo foi derrotado, mas poderei garantir a segurança das pessoas que eu gosto? Não posso correr esse risco. Ficarei forte como um Deus, e qualquer um que ameaçar aqueles que eu amo, serão punidos. O mal não vai vencer.”
Renato bebeu mais um gole de sua cerveja.
— Está quente — disse ele, e jogou a latinha para fora, pela janela.
— Mas é claro. Você só fica aí enrolando, ao invés de beber logo. Tá pensando em quê?
— Em nada. — Renato pegou mais uma lata do cooler próximo de seus pés.
Clara deu de ombros.
— Se não quiser contar, não conta. Eu vasculho sua mente durante o sonho e descubro.
Logo em seguida, ela aumentou o volume do som porque estava tocando “Carry On My Wayward” e acelerou a van para ultrapassar a carreta. Estavam na BR-364, uma rodovia que cortava o Mato Grosso, voltando para casa depois de tudo o que passaram no Priorado.
— Pode mesmo fazer isso? Ver o sonho das pessoas? — perguntou Tâmara. Ela estava sentada num dos assentos, próximo de Renato.
A súcubo sorriu de forma arrogante.
— Eu posso fazer de tudo!
— Sei…
— Mais essa agora… — Clara estalou a língua, frustrada. — O que diabos tá acontecendo?
Parou a van logo atrás de uma carreta bitrem, e olhou para o engarrafamento à sua frente. Era um mar sem fim de carros e carretas. Uma floresta de aço sobre o asfalto.
E, entre os carros, uma multidão de gente se espremia, empurrando uns aos outros, dando socos, chutes e gritando palavrões. Não tinha espaço nenhum para passar, nem na estrada e nem no acostamento. E nas laterais da rodovia havia apenas penhasco de um lado e montanha do outro.
Um homem barrigudo e de pele muito branca ergueu um porrete de madeira e atingiu a cabeça de outro homem, e continuou batendo mesmo depois que o outro caiu no chão.
Só parou quando uma mulher lhe atingiu com uma facada nas costas. A mulher movimentou a faca, subindo-a, cortando as costas do homem em duas metades, e gritou, ensandecida, e puxou a faca, e saiu procurando pelo próximo alvo.
As pessoas estavam enlouquecidas. Eram centenas, talvez milhares, brigando, se matando entre os carros.
Um deles segurava uma chave de roda e a girava, ameaçadoramente. A ferramenta estava suja de sangue.
Outro tinha uma chave de fenda em mãos e a segurava como se fosse uma faca.
— QUEM VAI SER O PRÓXIMO A MORRER?! — gritou ele, quase rosnando feito um animal.
O estigma da guerra na pele de Tâmara formigou e os pelos da garota se arrepiaram.
Clara sentiu o cheiro de excitação.
— Tá gostando de ver isso?
Tâmara sorriu. Ela ainda usava a roupa tecnológica com várias armas anexadas, e o fuzil gigante estava preso ao seu corpo pela alça.
Abriu a porta da van e saiu.
Subiu no alto do bitrem e gritou:
— Ei! Seus inúteis! Chamam isso de luta?!
— O quê? Quem é essa pirralha? — disse alguém no meio da multidão.
— Vai morrer, garota!
— Vou brincar com ela antes de matar! — disse uma voz sádica.
A garota riu, mirou o fuzil no dono daquela voz e disparou. Ele nem teve tempo de se arrepender pelas palavras. A bala atravessou o tórax do homem com facilidade, e o corpo dele foi jogado a dois metros de distância, com o impacto.
Tâmara acionou os propulsores embaixo de seus sapatos metálicos e ganhou altura.
— Agora que tenho a atenção de vocês, só vou falar uma vez. Em cinco segundos, vou atirar em qualquer um que estiver no acostamento.
Aquelas pessoas se entreolharam, confusas, ainda tentando entender a situação.
Tâmara riu mais uma vez.
— Já deu cinco segundos! Hehe — falou em tom de brincadeira, sorridente, e atirou.
Ela disparava os dois tiros, e engatilhava a arma para atirar novamente.
Alguns até tentaram reagir, atirando de volta, mas Tâmara se movia no ar, flutuando por causa dos propulsores, e não era atingida. Por outro lado, a garota não errava um tiro. Ela puxou duas granadas de sua roupa e as jogou, provocando explosões.
A garota gargalhou.
— Vamos, seus idiotas! Abram caminho! Saiam da frente! Ou vou transformar todos em carne moída!
Não demorou e aquela multidão resolveu obedecer a ordem dela e desocuparam completamente o acostamento. Correram aos empurrões. Alguns foram para o meio da estrada, outros entraram em seus carros e procuravam um espaço para fugir pelo meio da pista.
Tâmara olhou, contemplativa, o que tinha provocado. O sangue, o pânico, e assentiu, orgulhosa.
— Se o sangue é vida, então não é de se estranhar que eu, ao vê-lo escorrer das artérias como água brotando de uma mina, me sinta tão viva! — Suspirou. — Caramba! Eu preciso escrever isso! Estou ficando boa em fazer minhas próprias poesias!
Ela voltou rapidamente para a van, pegou o celular e escreveu a frase que tinha feito.
— Vamos, gente! Pé na tábua! O acostamento está livre.
Clara deu de ombros.
— Até que isso teve estilo.
— Você acha? Ah, veja, eles já estavam se matando. Eu só… interferi um pouco, ou a gente ia ficar preso aqui pra sempre. Veja, eles estão apavorados e confusos. Acho que nem eles sabem o que aconteceu. Não devem nem saber porque estavam lutando.
— Você acha?
— Tenho certeza. Do nada, é como se aquele ímpeto violento tivesse desaparecido. O medo fez eles voltarem a si. É o que eu acho. Talvez seja obra de algum demônio.
— Não sei… — disse Clara. — Não sinto nenhuma presença demoníaca.
Renato olhou para a palma de sua mão. Não tremia. Não havia nenhum sinal de nervosismo, embora ele tivesse testemunhado ainda mais mortes. Se sentiu culpado.
— O que tem… de errado comigo? — sussurrou para si mesmo.
“ Por que não sinto nada? Por que não me importo? Por que não os vejo como… seres humanos?”
Suspirou e baixou os ombros.
— Eu só tô cansado. E machucado. Machucado e cansado demais para me importar.
— Ei! O que está dizendo aí, Renato? — inquiriu Clara.
— Vamos logo. Tem um lugar que eu quero visitar. Fica próximo da entrada da cidade.
— É aquele orfanato onde você passou parte da infância? E de onde você fugia para ir para o bar jogar sinuca, e que uma vez chegou a botar fogo na cama? Legal! Quero conhecer! A irmã Dulce é tão legal e inteligente quanto dizem? E é verdade que tinham uma sala de cinema? E que os banheiros são mal assombrados? E a comida da Irmã Clarisse é tão boa quanto dizem? Ah, eu quero conhecer! — falou Tâmara, muito animada. — Ei, Renato, por que você tá me olhando assim? Não é como se eu fosse uma stalker nem nada do tipo… eu só… sabe como é, né… a gente acaba tropeçando numa informaçãozinha aqui, outra acolá… principalmente quando somos almas gêmeas. O destino conspira a nosso favor, sabia? Eu não fiquei te investigando, nem nada… por favor! Não me olhe desse jeito!
Renato suspirou.
— Pelo visto, eu só atraio mulher doida mesmo.