Pacto com a Súcubo - Capítulo 102
A van estacionou em frente ao orfanato.
A fachada não era nada luxuosa e não tinha adornos. O portão era velho, enferrujado, do tipo sem grades, que não permitia ver nada dentro do terreno; e o reboco do muro estava rachado.
— Chegamos — disse Renato, com um suspiro. Parecia algo entre o alívio e a preocupação.
Ele ajeitou Mical e Jéssica em seus assentos, para garantir que permanecessem confortáveis, apesar de estarem desacordadas, em seguida ajeitou Lírica, a demi-humana. Se certificou de que o ar condicionado estaria numa temperatura agradável, e deixou os vidros das janelas um pouco abaixados, para garantir a entrada de ar. Finalmente, pegou a sacola onde trazia os presentes e saiu do carro.
— Eu também quero ir. Quero conhecer o local onde você passou a infância — disse Tâmara.
— Mas de jeito nenhum! Você seria uma má influência para as crianças — respondeu Renato.
Clara riu.
— Ai, ai. Infelizmente você ainda não tem a confiança dele. Eu por outro lado…
— Você também não vai.
— O quê? Por quê?
— Porque você também é uma má influência.
— O quê? Que absurdo!
— Sim! Eu concordo! Que absurdo! — disse Tâmara. — Eu sou uma pessoa totalmente confiável e legal. As crianças me adoram!
— A mim também! Juro que vou me comportar! — disse Clara. — Qual é, Renato?! Deixa de ser chato! Eu quero ver o lugar onde você cresceu!
— Eu também quero!
— Devem ter fotos…
— Do Renato criança…
— Todo fofo…
— E inocente…
— Deixa, Renato!
— É! Deixa!
Renato suspirou e deu de ombros.
— Afe! Essas duas estão se dando bem! Que pesadelo! Beleza, então! Podem vir comigo. Mas no primeiro sinal da sua loucura — ele apontou para Clara —, ou da sua — apontou para Tâmara —, a brincadeira acaba. E eu vou ficar bem pistola!
— Ui, que medinho! — riu Clara.
— Renato do velho testamento é poucas ideias — riu Tâmara.
— Eu tô falando sério! Se comportem! Nada de pintos explodindo, nem fumaça do mal e nem feitiços!
— Tá… — disse Clara, meio a contra gosto.
— E nada de poemas sinistros e nem de usar armas de fogo perto das crianças!
— Armas brancas podem? — perguntou Tâmara.
— Não! Nada cortante, nem perfurante, nem explosivo, nem nada que seja proibido por lei! Poemas sobre assassinato também estão proibidos!
Tâmara fez beicinho, chateada.
— Tá… Renato, seu chato.
— Certo. Então vamos lá.
O garoto se aproximou do portão e tocou a campainha.
— Já vai! — gritou uma voz feminina lá de dentro.
O coração do garoto acelerou. Fazia quase dois anos que ele não visitava o orfanato.
Sentia saudade. Mas também tinha medo de que o atual Renato assustasse as crianças ou decepcionasse as cuidadoras.
A pequena porta de ferro, no meio do portão, se abriu um pouco e um rosto desconfiado surgiu por ela. E de repente, o rosto se iluminou com alegria.
— Renato! Ah, que saudade! — a irmã Dulce pulou pra fora do portão e abraçou o garoto.
Seu rosto tinha marcas de idade, com rugas e olheiras de cansaço.
Era uma senhora na faixa dos 50 anos. Sorridente e simpática.
— Ah, que bom que veio nos ver! Você é sempre bem vindo!
Usava roupas casuais. Calça, camiseta, e um crucifixo no peito. Não era freira de verdade, mas sempre deixou claro sua fé em Deus e, carinhosamente, os internos a chamavam de irmã.
— E quem são suas amigas, Renato?
Clara se meteu no meio dos dois, com um olhar soberbo e nariz empinado.
— Clara Lilithu. Sou namorada desse humano. Por enquanto.
— N-namorada? É sério? Então o recluso e introvertido Renato finalmente conseguiu uma namorada? Deus, obrigado! Minhas preces foram ouvidas!
Tâmara pigarreou e também se intrometeu na conversa.
— E eu sou Tâmara. A amante dele.
— Você é o quê?
— A amante.
A irmã Dulce franziu o cenho e ficou em silêncio. Pensou por alguns instantes.
— Não… impossível — disse ela. — O Renato mal conseguia falar com mulheres. Já é um milagre ele ter uma. Duas é impossível! Vocês estão brincando com essa pobre senhora, não estão?
Renato coçou a bochecha, desconcertado.
— Você falando assim… me deixa um pouco deprimido…
— Vamos, entrem! Não percam tempo!
O quintal era gramado. Num dos cantos, à sombra de algumas árvores, havia um parquinho com escorregador e gangorra, e uma faixa de terreno cimentado onde tinha algumas amarelinhas pintadas.
Também tinha uma pequena capela no canto oposto, com uma cruz de madeira no teto. Clara, ao vê-la, fez uma careta.
As crianças, que brincavam no parquinho, ou brincavam pelo quintal, correram até eles.
— Tio Renato! Tio Renato! Ei, o tio Renato voltou, pessoal! — disse o pequeno Raí, no auge de seus 7 anos.
Ele, junto das outras crianças menores, deram ao Renato um apertado e aconchegante abraço coletivo que quase derrubou o garoto.
— Você voltou, tio Renato! Eu senti saudades! — disse Ana Alice. Era uma garotinha loira dos olhos azuis.
— Eu senti mais saudade ainda! — disse Kawanne, uma menina de 6 anos, dos olhos amendoados, cabelos pretos longos e pele morena. — Senti mais saudade do que a Ana Alice!
— Mentira! Eu que senti mais!
— Eu nem senti tanta saudade assim! He! He! He! — disse Raí.
— Mentiroso! — gritou Kawanne. — Você vivia chorando pelos cantos, falando que o Renato tinha esquecido de nós porque não vinha visitar a gente!
— E-eu?! Eu não lembro disso aí não!
Renato deu um sorriso sem graça e fez cafuné na cabeça das crianças.
— Eu jamais esquecerei vocês, crianças. Nunca! Aqui, olha o que eu trouxe…
Ele pôs a mão dentro da sacola que trazia consigo e tirou vários doces. Eram bombons, pirulitos, suspiros e marias-moles. Também tinha balões, bolinhas de pingue e pongue, raquetes, e línguas de sogra para as crianças poderem brincar.
— Oba!
— Que legal!
— Agora vão brincar, crianças! E escovem os dentes depois de comer os doces, senão os bichinhos vão comer eles!
— Sim, tio Renato!
— Pode deixar!
Eles correram de volta para o parquinho, em meio a gargalhadas e risos alegres, enquanto abriam as embalagens dos doces e dos brinquedos.
— Será mesmo? — disse Yuri. Ele era um dos meninos maiores. Tinha 15 anos. — Será mesmo que não se esqueceu da gente?
— Não. — Renato tirou de dentro da sacola um deck de cartas de Yu-Gi-Oh — Ainda lembra como se joga?
O rosto de Yuri se iluminou.
— É claro que lembro. Ainda tenho aquelas cartas antigas. Estão velhas, mas ainda dá pra jogar!
— Agora você tem cartas novas. O que acha da gente jogar daqui a pouco?
Yuri sorriu e seus olhos brilharam de alegria.
— Não vou deixar você ganhar dessa vez!
Renato assentiu.
— Beleza. Não vou pegar leve também.
— O Renato leva jeito com crianças… — disse Clara.
— O útero chega a coçar, né? — disse Tâmara.
— “Azidéia”! — riu Renato.
— O Renato sempre levou jeito com crianças — disse a irmã Dulce. — Quando ele chegou aqui, ele era todo emburrado e não conversava com ninguém. Nem comer ele queria. Também, não julgo… depois de uma tragédia daquelas… mas aos poucos ele foi se abrindo para as crianças. Começou a brincar com elas, e aí… bom, ele foi se revelando o Renato carinhoso que todos adoramos.
— Renato carinhoso? — Clara levantou uma sobrancelha. — Estamos falando da mesma pessoa?
— Ei, Renato, você veio?! Que surpresa agradável! — A irmã Clarisse saiu da capela e se aproximou, correndo como podia, erguendo o vestido, quase tropeçando. Ela tinha limpado bem os olhos e o rosto na tentativa de disfarçar as lágrimas, mas Renato percebeu.
Clarisse era assim. Ela chorava escondida, na capela, quando algo a preocupava.
— Todos sentimos sua falta — disse ela, com um sorriso sereno.
— Eu senti também.
— Vamos! Eu vou preparar um lanche.
— Um lanche da irmã Clarisse… é algo irrecusável!
— Eu tô com fome! — disse Tâmara.
*
Enquanto Clarisse preparava o lanche, Clara e Tâmara insistiram que queriam ver fotos do Renato criança. O garoto protestou, mas, de acordo com Dulce, as fotos eram tão lindas que seria um desperdício não mostrá-las.
— Veja! Ele só de cuequinha! Que bonitinho! — disse Tâmara, sentindo um rubor nas bochechas.
— Dá vontade de mergulhar ele no meu café! — disse Clara.
Renato olhou de soslaio para as duas.
— Esquisitas…
— Eu me lembro desse dia como se fosse hoje! Estava tão calor! Então o Renato pegou a mangueira que a gente usava para regar as plantas e começou a se banhar, assim, no meio do quintal. Ele parecia tão feliz, que eu resolvi tirar essa foto… — disse Dulce, com um brilho nostálgico nos olhos.
Renato coçou a cabeça, envergonhado.
— Isso é meio constrangedor… Ah, ali! Os lanches chegaram!
— Gente, eu fiz cachorro quente e suco de acerola! — disse a irmã Clarisse, se aproximando com uma bandeja e uma jarra.
— Obaaaa! — gritaram as crianças, em uníssono, com alegria.
O suco era natural, feito das acerolas colhidas no pomar do orfanato, e desceu refrescante pela garganta.
Os lanches eram feitos com salsichas cortadas em rodelas e estava bem temperado. Dava pra notar que foi feito com carinho. Não tinha sabor melhor!
Enquanto comiam, Raí disse, ainda mastigando:
— Tio Renato! Por que você não liga pra Irina igual da última vez? Eu quero falar com ela!
— Sim! Liga pra Irina! — concordou Ana Alice.
Renato pareceu em dúvida, mas a irmã Dulce assentiu:
— Seria bom falar com sua irmã também. Também sentimos falta dela.
— Certo. — Renato pôs um sorriso terno no rosto, e ligou, mas: — É, parece que a Irina não pode atender agora. Ela deve tá ocupada.
— Ahhhhh — disseram as crianças, em uníssono, chateadas.
Continuaram comendo e conversando, e em algum momento o pequeno Raí empurrou Ana Alice, fazendo a menina cair no chão e começar a chorar.
A irmã Dulce pegou a menina no colo, acalmando-a, enquanto Clarisse repreendia o menino.
Renato balançou a cabeça, negativamente.
— Por que você fez isso, Raí? Você não disse que sempre ia proteger sua irmã?
O menino baixou a cabeça, emburrado, e não respondeu.
— Ele tá assim ultimamente — disse Clarisse, com olhar preocupado. — Todas as crianças, na verdade. Estão brigando muito. Brigam por qualquer coisa. Não sei mais o que fazer.
— É essa onda de violência que tá se espalhando pelo mundo, sabe? — acrescentou Dulce. — Acho que não é natural, não. É algo espiritual. E tá contaminando até as crianças.
Renato pensou por alguns instantes.
— Quando a gente estava voltando, vimos uma briga bem feia entre várias pessoas.
— Tá vendo! A violência tá se espalhando entre as pessoas como um vírus. É terrível! Nem as crianças estão a salvo.
Renato se levantou e, pensativo, andou alguns passos. Saiu daquela sala e observou o sol brilhante do lado de fora. Ouviu o canto dos pássaros.
— Clara — disse em voz baixa, mas a súcubo ouviu.
Ela surgiu ao lado dele no mesmo instante.
— Chamou, querido? — A voz dela era macia, e tinha um tempero de sarcasmo.
— Essa onda de violência… também tô achando estranha.
Clara deu de ombros.
— Os humanos sempre foram violentos.
— Mas agora tá mais intenso. E mais, as pessoas parecem mais acostumadas à violência do que o normal. Eu notei. O Hiro, outro dia, deu um tiro na cabeça de um homem e nem se importou. O Hiro! Ele não é assim, sabe? Tudo bem que a gente estava numa situação de perigo, mas mesmo assim… Não é normal.
— Vai ver você só tá cercado de amigos psicopatas e não sabe, Renato. Olha a princesinha homicida ali. — Ela direcionou o olhar para Tâmara que, apesar de estar sentada no sofá, junto das irmãs e das crianças, observava os dois com olhos afiados. — Você não sabia dela antes, sabia?
— O Abigor… quando ele aparece, todos aqueles próximos a ele sentem raiva, ódio, vontade de matar os outros.
— Sim. Mas é limitado àqueles que estiverem próximos, como você disse. Esse negócio aí de influenciar todo o mundo não faz sentido. É teoria da conspiração.
— Mas se ele pode fazer isso… não pode existir algum demônio mais forte que possa influência o mundo? Seria a mesma coisa que o Abigor faz, porém mais forte, com um campo de ação maior?
— Impossível, Renato. Influenciar todos dessa forma seria… grande demais. Seria necessário ter poderes quase divinos. E não tem demônio e nem anjo tão forte. Não mais.
— Mas já houveram?
— Já. Morreram todos na grande guerra. Os que sobreviveram à Rebelião de Lúcifer, pereceram nas Guerras Pelo Enxofre. Não tem mais ninguém tão forte. Nem mesmo os antigos deuses da guerra têm mais tanto poder restando.
— Essa… violência no ar… não é por acaso. É a influência de alguém. Eu sei porque sinto o mesmo arrepio que sinto com o Abigor, mas agora é o tempo todo. Tá no vento; na água; até na luz do sol. E tenho certeza que não sou só eu que notou.
Clara sorriu.
— Uma coisa tão grande assim… só poderia acontecer se…
— Se o quê?
— Se o Apocalipse tivesse sido iniciado.