Pacto com a Súcubo - Capítulo 104
Capítulo 104: O cavaleiro da Guerra
A última coisa de que Abigor se lembrava era de ter sido sugado através de um buraco no chão.
Depois tudo ficou escuro, gelado e úmido. Quando abriu os olhos, estava numa sala muito bem decorada, com uma mesa redonda no centro. Ele conhecia o lugar. Já esteve ali algumas vezes exercendo sua influência sobre as pessoas. Até já ajudou a passar algumas leis e barrar outras. Estava na torre do senado federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Pendurado por uma corda presa ao teto, tinha um homem enforcado. O corpo girava lentamente e balançava como um pêndulo. Seus olhos tinham sido arrancados, e bolas feitas de terra úmida ocupavam o lugar deles nos buracos das órbitas. Um olhar atento e Abigor percebeu que a terra não tinha sido umidificada com água, mas com sangue, que escorria pelo rosto em direção à boca do cadáver.
O demônio assentiu, em sinal de aprovação.
— Legal. Mas como diabos eu vim parar aqui?
Na sala havia muitas outras pessoas. Mas ele não se deixaria enganar pela aparência delas. Conhecia quase todos ali. Nesses milhares de anos de existência representando a guerra no reino dos demônios, chegou a se encontrar algumas vezes com os representantes dos outros reinos.
Às vezes, os encontros eram cordiais; mas às vezes, não.
Mas todos ali pareciam tão confusos quanto ele.
— Abigor — disse um homem forte, ao se aproximar. Carregavava um machado de guerra preso às costas; e um grande abutre negro, dos bicos curvados, estava empoleirado em seu ombro.
— Ares. Há quanto tempo?
— Uns três mil anos, eu acho — respondeu, com um sorriso. — Desde aquele… pequeno desentendimento envolvendo os Povos do Mar e o Império Hitita.
— Verdade. Na época eu tinha pegado gosto pela pirataria, pilhagem… sabe como é.
— Sei. O que eu não sei é o que a gente tá fazendo aqui. Odeio esse país. Odeio ser convocado dessa forma. Nem um convite formal mandaram. Um desrespeito!
— Deixa eu adivinhar — disse Abigor. — Você foi sugado por um buraco no chão logo depois de começar a chover sangue?
— Sim. E minha irmã também.
Abigor acenou, cumprimentando, de longe, a linda Atena. Ela usava uma túnica branca cingida por por um cinto carmesim, e um diadema dourado com formato de folhas de oliveira na cabeça.
A deusa acenou de volta.
Abigor sorriu.
— Eu vou ali falar com ela.
— Nem pensar! Ela te odeia!
— É claro que não. A gente se dá super bem!
— Da última vez em que vocês se viram, ela enfiou uma lança no seu peito.
— É a forma dela de demonstrar afeto.
Ares estalou a língua e encarou o enforcado no meio da sala.
— Faz tempo que não vejo um feitiço assim.
Abigor deu de ombros.
— Acho que tem estilo. Veja, seu equivalente romano também veio — disse o demônio, direcionando o olhar para Marte.
Ares bufou.
— Equivalente nada! Já matei gente por muito menos!
— Calma, Ares. Tô só brincando. Ali… Tyr, Ogum , Seth… Mitra. Tantos representantes da guerra. Quem teria poder para reunir todos nós?
— Você parece meio… nervoso, Abigor.
O demônio, disfarçadamente, limpou a gotinha de sangue que escorria de seu nariz.
— É que, aparentemente, eu sou o único aqui que não tem o rabo iluminado por uma centelha divina. E, pela minha experiência, deuses são um pé no saco.
Ares riu.
— Você tá sangrando, não tá? Tentou esconder, mas eu vi! Francamente, como você consegue suportar a pressão de estar no mesmo lugar com tantos deuses reunidos? Você não deveria ser desintegrado ou coisa do tipo? Pra falar a verdade, eu apostaria dinheiro nisso.
— Cale a boca. E você, Ares, ainda comendo a propria irmã? Irmã essa que, aliás, é casada com seu outro irmão. Caramba, Ares! Isso daria um bom quadrinho da Família Sacana!
— Cale a boca. E eu não sei o que é “Família Sacana”. — Suspirou. — E você não é um único sem uma Centelha Divina aqui. Ali — o deus apontou — Asuras da Guerra.
— Ah, ótimo. Indianos. — Abigor fez uma careta de desprezo. — O que eles vão fazer? Uma guerra sobre quem faz a comida mais nojenta?
— Aliás, sobre quem nos convocou aqui, não tenho ideia. Eu até pensei em alguém, mas seria loucura. Aquele cara está, você sabe, na masmorra mais profunda e escura do Universo.
Abigor novamente deu de ombros e um sorriso contido surgiu em seu rosto.
— Vai saber… — murmurou.
Ele tinha algumas informações privilegiadas que não compartilharia com esses caras. Informação, na guerra, é algo tão valioso quanto qualquer arma poderosa. Essencial para boas estratégias.
Então o ar ficou denso e um som agudo tiniu por alguns segundos.
Um poder que, mesmo na presença de tantos deuses, parecia esmagador.
Abigor engoliu em seco.
— Ele está vindo.
A primeira coisa a surgir foi uma sombra grande e disforme. Então a sombra começou a tomar forma, até que surgiu aquele cavalo vermelho com um cavaleiro de armadura montado sobre seu dorso. Das ferraduras do cavalo, escorria sangue, mesmo não havendo nenhum ferimento aparente.
O cavaleiro desmontou. A armadura era brilhante e avermelhada, como o cobre polido, e protegia todo o seu corpo. Em suas costas, trazia uma espada gigantesca quase do tamanho de sua própria altura. O guarda-mão era revestido de pequenas pedras preciosas, e o cabo era dourado como ouro. O pomo era um único e grande rubi.
— Finalmente, estão todos reunidos aqui — disse o cavaleiro. — Foi pra esse momento que eu criei vocês.
O choque e espanto foi generalizado.
Ares franziu o cenho.
— Não pode ser ele.
— Pode sim — respondeu Abigor.
“Ah, Renato, você não saiu sozinho do Gehenna, não é?” pensou ele.
— Meus filhos. Meus servos. Vocês sabem de sua missão. Aparentemente, a Terra dos Homens têm experimentado muita paz. Uma guerra aqui, outra ali; mas nada tão grande. É… decepcionante.
— Senhor! — disse um dos Asuras —, tivemos duas guerras mundiais!
— E por que não tiveram mais? Por que tem tantos primatas de barro vivos e não mortos? Por que eles vivem, trabalham, estudam? Por que as casas deles não estão em chamas e os corpos cobertos de napalm? Por que eles não se apedrejam e nem se esfaqueam nas ruas? Por que as nações não disparam mísseis nucleares? Por que as crianças não se mordem feito animais famintos? A tranquilidade desses novos tempos me enoja. Essa paz toda embrulha meu estômago.
Abigor sentou-se numa das cadeiras à mesa e materializou, usando poder mágico, um copo de uísque. Bebeu um gole. Fez uma careta. Bebidas feitas assim tinham um gosto horrível. Suspirou, pensativo.
“Ele bem que podia trazer umas bebidas de verdade para essa reunião”. pensou. “Onde já se viu uma reunião sem bebida?”
O cavaleiro começou a andar, calmamente, entre os presentes, e continuou sua fala. A cada passo, sua armadura tinia, e o som de baque surdo era produzido cada vez que os pés deles tocavam o chão, demonstrando o quão pesada era toda aquela carapaça metálica.
O cavalo o seguia, produzindo pegadas ensanguentadas. Do nariz do animal, saía uma fumaça escura com cheiro de sangue e podridão cadavérica.
— O mundo já está sentindo minha presença. A violência aumentando. As pessoas perdendo o controle. Mas eu preciso de mais! Preciso que vocês façam… o mundo queimar. E queimar lentamente. Afinal, é o trabalho de vocês, não é?
De repente, o cavaleiro interrompeu sua fala e olhou fixamente para a janela.
Abigor inspirou, sentindo o cheiro, e olhou na mesma direção, e viu aquele homem possuído, dos olhos fendidos.
— Baalat…
O homem caiu da janela, logo em seguida.
O cavaleiro curvou os lábios num sorriso malicioso.
— A Filha da Serpente.