Pacto com a Súcubo - Capítulo 108
Os bombeiros tentavam apagar o fogo. A polícia, sem saber direito o que fazer, apenas dava apoio e falava com a população.
O orfanato inteiro estava reduzido a escombros. E as chamas crepitavam, ferozes, cada vez maiores, como se estivesse consumindo até o concreto e o chão de terra.
Aquilo não era fogo normal, diziam as testemunhas. Relataram que, na hora da explosão, vários espinhos negros cruzaram os ares feito balas, atingindo algumas pessoas, e que a estátua da Virgem Maria, da igreja próxima, começou a chorar sangue.
— A Dona Clementina é médium, né? — dizia uma senhora, para alguns policiais. — Então! Ela disse que sentiu um mal pressentimento horrível! Um mal estar! E disse que havia algo de ruim nesse lugar. — A idosa fez sinal da cruz. — Como se alguma coisa maligna fosse despertada!
— Uhum…
O policial fingia que escutava, enquanto olhava, abismado, para o fogo.
As casas vizinhas das laterais e dos fundos tinham sido arruinadas; e uma viga que, arremessada na explosão, girou no ar e arrebentou o telhado do mercadinho da rua.
— Parece a droga do fim do mundo! — disse um dos bombeiros. Ele tinha olheiras profundas e um olhar cansado. Deu um suspiro resignado e acendeu um cigarro. Os últimos dias tinham sido uma loucura. Vários incêndios acontecendo ao mesmo tempo. A cidade queimava lentamente.
E os episódios de violência escalonavam para níveis nunca antes visto. Brigas de trânsito; crimes passionais; discussões simples que evoluiam para uma tentativa de homicídio. Nem o exército, que tinha sido chamado, estava dando conta da situação caótica das ruas.
Os hospitais estavam lotados.
Ele pensava que nada mais poderia surpreendê-lo. Porém, estava errado.
Achou que seus olhos cansados estavam enganando-o; ou que, não suportando o sono, tivesse desmaiado e sonhava.
O fogo se abriu, se dividindo em dois. E, do meio das chamas, um garoto saiu andando sem se queimar. Era como se as chamas se dobrassem, ou se curvassem para ele.
O bombeiro, boquiaberto, deixou o cigarro cair dos lábios.
A senhora interrompeu sua fala sobre a amiga médium e começou a se benzer.
Todos apenas assistiram em silêncio.
E Renato caminhou até a rua.
Suas roupas estavam queimadas e rasgadas. Ele estava sujo, coberto de cinzas e fuligem. Tinha arranhões por todo o corpo. Um corte no rosto, logo abaixo do olho, sangrava um pouco.
Tinha uma expressão dura, carregada de uma mistura de raiva e tristeza, e tinha um vazio profundo, quase Incognoscível, do tipo que habita o olhar daqueles que perderam ou desistiram de algo importante.
— Ei, garoto! O que você… ? — disse um dos policiais, mas não soube como terminar a frase, e não obteve resposta.
Todos ali testemunharam quando o garoto desapareceu numa sombra, se movendo como se deslizasse no ar. Rápido de um jeito que ninguém pôde acompanhar seus movimentos com os olhos. E então ouviram o ronco do motor da Hornet 600 ficando cada vez mais distante.
Testemunhas diriam que o próprio Diabo tinha saído das chamas naquela noite.
Outros, porém, discordavam. O que emergiu das sombras era algo pior que o Diabo, segundo estes.
*
Hiro estava caído no chão. O nariz quebrado sangrava; e o lábio estava cortado.
Tinha tomado tantos socos no estômago, rins e peito que sentia o corpo todo formigando, e mal conseguia respirar.
Andrei lançou para ele um olhar soberbo de nojo.
— Fraco. Deveria saber seu lugar.
Se virou para ir para os quartos. Mas o copo de vidro explodiu em sua nuca, e ele sentiu o cheiro de coca-cola. O mercenário quase caiu, mas recuperou o equilíbrio rápido.
Olhou para trás e viu Hiro se levantando.
— Você… não vai… passar!
O garoto estava muito ferido, com o braço quebrado pendurado ao lado do corpo. Mesmo assim, tinha um olhar determinado. Sua guarda de luta era defeituosa; não tinha técnica, e a dor não ajudava. Ainda assim, parecia sólida e inquebrável.
Andrei franziu o cenho, incrédulo, e balançou a cabeça.
— Como? Por que se levanta?
— Porque eu prometi pro meu amigo! Eu sei que não sou forte… e não sei que tipo de luta o Renato tá enfrentando, mas eu vou ajudar! Eu vou cumprir o que prometi!
Andrei sorriu.
— Impressionante. Tô nesse ramo há bastante tempo, e acho que nunca me impressionei tanto com alguém igual tô impressionado com você agora. Até eu fiquei curioso para saber o quanto você aguenta.
— Não me subestime!
— Tá bom. Não subestimo! — Ele se moveu e afundou a sola do pé no peito de Hiro. O garoto foi jogado para trás e colidiu contra uma parede.
Antes que Hiro pudesse cair no chão, Andrei o interceptou com uma sequência de socos.
— Fraco! — disse Andrei, enquanto Hiro deslizava pela parede até o chão.
Ele olhou o garoto desacordado e se permitiu um sorriso contido, com um único lado da boca.
— Gostei disso. Aposto que ele vai se levantar de novo. Pena que é fraco. Mas é sempre útil ter um saco de pancadas para treinar. A Kath iria gostar disso aqui também.
Ele foi até a cozinha, abriu a geladeira e serviu um pouco de coca-cola num copo. Olhou na direção do fogão e:
— Oba! Batatinhas!
Voltou para a sala, trazendo consigo um copo de coca e um bocado de batatas fritas num prato, e sentou-se no sofá.
Observou Hiro por alguns instantes. Massageou os próprios punhos. Estavam doendo e adquiriam um tom arroxeado.
Bebeu um gole generoso de coca e suspirou.
“As garotas estão ali” pensou. “Não vão a lugar algum. Vou me divertir um pouco primeiro. A Kath faria a mesma coisa no meu lugar, tenho certeza”.
Comeu uma batata e ligou a tv. Estava passando o noticiário. Ele fez uma careta de desprezo e trocou de canal, e continuou trocando até achar os desenhos.
Hora de Aventura. Ele adorava. Bebeu mais um pouco de coca e olhou para Hiro. “Acho que dá tempo de assistir um pouco antes dele se levantar”
Mais ou menos vinte minutos depois, Hiro se levantou. Suas pernas tremiam e o corpo formigava.
— Incrível! Como você consegue se levantar, mesmo sendo tão fraco?!
— Porque… eu já disse… não vou… deixar… você passar!
Andrei deu de ombros.
— Sabe que eu já teria passado se quisesse, né? Você ficou aí apagado um tempão. Não tem como você me vencer.
— Eu não preciso te vencer. Só preciso te segurar aqui até o Renato chegar.
Andrei caiu na gargalhada.
— Seu amigo tá morto a uma hora dessa, garoto. E morto pela Kath — O mercenário baixou o volume da voz quando disse a última parte, como alguém que evita dizer o nome de alguma assombração ou entidade sinistra, ou como os bruxos de Hogwarts evitando dizer o nome de Voldemort. — Você tem sorte. Sou eu quem veio até aqui. Se fosse a Kath, você estaria em problemas maiores. Seu amigo sim teve azar. Foi ela quem cuidou dele. E ela é… dona de uma personalidade única.
Hiro apoiou as costas na parede, permanecendo de pé. Seu peito subia e descia por causa da respiração pesada.
— Você tá enganado. O Renato não morreu. Eu já vi ele lutando. Aposto que a sua Kath está implorando por piedade uma hora dessas!
Andrei riu e bebeu o último gole de coca de seu copo, e pôs mais algumas batatinhas na boca.
— Acabei de lembrar. Você jogou um copo em mim…
Andrei jogou o copo contra Hiro. O vidro bateu contra o rosto dele e se partiu. O garoto nem sentiu dor. Apenas viu a visão ser completamente tomada pelo vermelho. Fechou a guarda. Ainda aguentaria lutar mais.
— Fraco! — berrou Andrei antes de atingir o golpe de misericórdia.
Mas seu punho foi detido.
Renato o segurava.
Andrei olhou para ele como alguém vendo um fantasma. O choque em sua expressão era impossível de disfarçar.
Renato pôs a mão sobre o ombro do amigo.
— Tudo bem. Pode deixar comigo agora.
— Renato… ! Eu não… deixei ele passar!
— Obrigado, amigo. Pode descansar.
— Certo…
Hiro suspirou, aliviado, e deixou suas costas deslizarem pela parede, e ele caiu no chão, e finalmente pode sucumbir aos ferimentos e perder a consciência.
— Você chamou o Hiro de fraco, não é? Mas estava enganado. Ele não é fraco.
— Você diz que ele não é fraco —, se afastando —, mas ele não pôde fazer nada além de apanhar! Não sei como diabos você ainda tá vivo, mas vocês dois são dois fracos! E vão morrer agora!
Andrei tentou um soco, mas Renato o interceptou, segurando o braço do mercenário.
— Já disse que Hiro não é fraco. Você é.
Com um movimento, Renato torceu o braço de Andrei de modo que estalou feito galho seco se partindo, e a ponta do osso saiu para fora da pele. Era uma fratura exposta.
Ele gritou.