Pacto com a Súcubo - Capítulo 119
— Não deviam brincar com a morte desse jeito, crianças. O patrão não vai gostar — disse o ceifeiro, em tom ameaçador.
Renato, que ainda o segurava pelo braço, respondeu:
— Algo me diz que ele vai entender.
Ele se lembrou de algo. De uma época que durou uma eternidade e que tudo o que existia era fogo e vermes. E teve uma conversa metafórica sobre uma gangue. “ A gangue mais sinistra do universo” ou algo assim. A Morte também estava lá dentro, no Gehena, não estava? Se perguntou.
Andrei estava deitado no chão. Sem pele. Completamente vermelho. Parecia um boneco feito de carne. Balbuciava alguma coisa, baixo demais para ser compreensível.
Lírica se aproximou e se inclinou sobre ele, pondo as mãos sobre a cabeça escalpelada. Ele moveu os lábios, sussurrando alguma coisa.
— Consegue ouvir o que ele está dizendo? — perguntou Renato.
A demi-humana moveu suas orelhas, curvando-as como um gato, na direção do homem caído.
— Está conversando com a Kath. Dizendo a ela que resistiu até o fim. Que não contou onde ela está.
Renato franziu o cenho, pensativo.
A demi-humana deu de ombros.
— Está alucinando — disse ela. — Fantasiando que conseguiu voltar pra casa.
Lírica fechou os olhos e forçou seu pensamento em direção à mente daquele homem. Vasculharia seus pensamentos até encontrar a informação necessária. Nem que, para isso, tivesse que revirar cada canto daquele cérebro delirante.
Mas algo a perturbou. Com uma careta, a garota emitiu um gemido de agonia.
— Está… tudo muito confuso. Nada aqui faz sentido. Tá uma bagunça! Não consigo entender nada.
Clara sorriu de forma maliciosa.
— Pelo visto, os poderes telepáticos dos demi-humanos não é grande coisa, não é?
Lírica pensou por alguns instantes.
— Tenho uma ideia — disse, finalmente. — Crie um sonho para ele! Isso vai organizar os pensamentos. Então eu consigo vasculhar tudo nos bastidores.
Clara sorriu.
— Pode ser um pesadelo?
Lírica ponderou um pouco.
— Não é uma boa ideia. Isso vai deixar ele mais inquieto. Quanto mais calmo ele estiver, melhor para invadir a mente.
Clara fez beicinho, chateada.
— Certo, certo.
A súcubo também se aproximou e tocou as duas mãos nas têmporas de Andrei.
— Durma — sussurrou.
Um vento frio soprou, entrando pela janela, balançando as cortinas. No horizonte distante, os primeiros raios de luz despontavam nas nuvens, tingindo o céu com tons de vermelho e laranja.
O mercenário fechou os olhos e, finalmente, parou de balbuciar coisas sem sentido.
— Agora é com você, Pantherina — disse Clara, para Lírica, com um sorriso forçado.
— Não me chame assim — respondeu Lírica, e logo em seguida começou seu trabalho.
Entrar numa mente sonhando tinha algumas particularidades. Era como olhar os fios de uma tv em funcionamento ou vasculhar debaixo das tábuas de um palco de teatro onde uma peça estivesse sendo apresentada.
A atenção da consciência da pessoa estaria voltada para o sonho, então haveria pouca resistência. Além do mais, quase todo o caos mental seria projetado para dentro do sonho.
— Faça ele sonhar com a Kath — disse a demi-humana. — Ele precisa pensar nela.
Ainda de olhos fechados, ela continuou procurando. Até que:
— Achei… achei onde ele guarda as informações sobre ela. Medo… respeito… amor. Ele associa ela com todos esses sentimentos. Tem tantas emoções entrelaçadas que é até difícil distinguir uma da outra. Raiva… pena… esperança… a Kath está… faça ele pensar nela!
— Já tô fazendo! — retrucou Clara, mal humorada.
— Faça ele ver o local onde ela estaria escondida.
Clara bufou. Não gostava de receber ordens; de uma demi-humana então, era pior! Mesmo assim, obedeceu.
— Rússia? — sussurrava Lírica. — Povoado de Vassily? Não. Ela não estaria lá. Odeia o frio. Odeia aquelas pessoas. Brasil? Não. Está longe. Onde? Prédios… T… Já sei! Tóquio! Japão! Ela tá no Japão!
Lírica finalmente abriu os olhos e se levantou. Estava cansada. Respiração ofegante. Mas feliz porque foi capaz de ajudar.
Renato assentiu.
— Então é pra lá que nós vamos.
— E agora? Será que dá pra me soltar? Tenho trabalho a fazer, se não notaram — falou o ceifeiro.
O lindo sonho de Andrei foi se desfazendo aos poucos. Corroído por uma sombra que se erguia e aumentava de tamanho rapidamente. O frio aumentava sem controle, engolindo-o, envolvendo-o totalmente. Tudo girava. Parecia que o próprio céu estava desmoronando.
Até que tudo ficou escuro e sem vida, estático, e a única coisa se mexendo foi um homem esquisito, magro demais e alto. Tão branco que sua pele parecia transparente. Usava roupas negras com espinhos metálicos se projetando.
Andrei se aproximou dele.
— Então… acabou mesmo?
— Sim. É hora de ir — respondeu o ceifeiro. Seu tom de voz era neutro. Sem qualquer emoção.
— Posso me despedir de alguém?
— Infelizmente, não.
Andrei engoliu em seco. Seus olhos estavam avermelhados, e brilhavam lacrimejados.
— O lugar para onde eu vou… — Engoliu em seco mais uma vez. Tinha medo. — É um lugar bom?
O ceifeiro ficou em silêncio por alguns instantes.
— Depende. Você acha que merece ir para um lugar bom?
Andrei baixou o olhar.
— Não. Não acho.
*
— Obrigado, garota. Você ajudou muito.
E então o fogo a envolveu, destruindo sua pele, sua carne; seus ossos se tornaram pó. A dor foi excruciante.
Kath acordou subitamente, como se seus pesadelos a chutassem para o mundo dos despertos.
Suava frio. A respiração estava descompassada.
A escuridão em seu quarto parecia inquebrável.
A garota se sentiu desconfortável.
De um dos cantos, com um breu ainda mais intenso, parecia que alguém a observava. Tinha uma sombra, como uma silhueta. Era grande demais para ser de uma pessoa.
Com um movimento rápido, ela pegou a pistola debaixo do travesseiro e bateu o dedo no interruptor, ligando a luz.
Estava sozinha no quarto. Apesar disso, aquela sensação de estar sendo observada ainda permanecia.
Ligou a TV.
“Você está com medo?” Foi a fala do personagem de algum filme genérico. Não era português, mas ela entendia bem a língua local. “Ele vai atrás de você” falou alguém, em meio a gargalhadas.
Ela bufou e trocou de canal.
Terrace House, uma espécie de Big Brother, era o que passava.
“Estão todos sendo observados! O olho do Grande Irmão vê tudo!” disse o apresentador do programa. “E nesse jogo, todas as ações trazem consequências”.
Desligou a tv. Pôs o controle de lado e relaxou na cama.
“O Andrei sabe cuidar de si mesmo” pensou. “E se ele perder para um moleque possuído, não merece viver”.
Olhou para o teto, imaginando o desespero de Renato, lembrando de seu rosto choroso. Sorriu. Adorava esse trabalho. Desde pequena ela era assim. Sempre teve uma fascinação pela morte, pelo sofrimento. Via beleza nessas coisas. E a primeira vez que viu sangue escorrendo sobre o gelo, vermelho sobre o branco, achou tão bonito que precisou tirar uma foto para registrar. Sentia-se uma artista.
Nessa hora, a TV ligou sozinha, e um barulho alto de estática, um chiado incômodo, reverberou pelo quarto.
A garota, irritada, saltou da cama e puxou o cabo de energia da tomada, desligando o aparelho.
Mas, para sua surpresa, ficou desligado apenas por poucos segundos e, mesmo fora da tomada, a tela ligou, exibindo um emaranhado de cinza disforme e um som alto de estática.
Em meio ao cinza sem forma, Kath distinguiu um sombreamento que lembrava a forma de um leão, mas depois o rosto ficou humano, e olhava para ela, sorrindo.
A garota acertou três tiros na televisão, desligando-a de vez. O cheiro de queimado se espalhou pelo quarto.
O movimento rastejante chamou sua atenção.
Com um arrepio, notou a barata ao lado da mesinha de cabeceira e fez uma careta de nojo.
Bichos rastejantes como aranhas, escorpiões, formigas, cobras e especialmente baratas despertavam uma repulsa particular em Kath. Ela os odiava.
Matou o bicho no tiro.
Segundos depois, alguém abriu a porta de seu quarto.
— Senhorita, está tudo bem por aqui? — perguntou o segurança.
Ele usava um terno preto e carregava uma pistola na mão. Também tinha um pingente no peito, do tamanho de uma laranja, com formato de pentagrama, preso a uma corrente de prata.
— Está sim — respondeu ela. — Reforce as defesas mágicas. E avise para os outros ficarem alertas.
— Certo.
— E, Ronan… mande alguém para limpar aquela nojeira ali. — Apontou para a barata que tinha explodido com o tiro da pistola.
— Pode deixar, senhorita — o segurança assentiu.
Assim que ele saiu, Kath pegou a carteira de cigarros sobre a mesinha de cabeceira e o acendeu. Deu uma tragada forte.
Foi até a janela e contemplou, do alto daquele prédio de 35 andares, a paisagem noturna de Tóquio, com seus prédios exuberantes e letreiros iluminados. A cidade nunca dormia, embora as ruas estivessem quase desertas ultimamente. De todas as bases espalhadas pelo mundo, essa era a sua favorita.