Pacto com a Súcubo - Capítulo 120
Renato estava sentado naquele assento confortável. À sua direita, através da janelinha, era possível ver a asa metálica do avião, e as nuvens passando rapidamente, sobre um fundo azul clarinho.
O garoto queria ficar sozinho, então as meninas respeitaram e mantiveram alguma distância. À contra gosto, é claro.
Diante dele, havia uma mesinha com uma garrafa de vinho pela metade. O jatinho particular de Clara possibilitava certos luxos.
O garoto manuseava o baralho de yu-gi-oh, observando as imagens, lendo as descrições dos monstros e das cartas mágicas.
As cartas estavam sujas de sangue seco. Quando ele passava a unha, um pó vermelho se soltava.
Conforme olhava as cartas, imaginava os terrores que Yuri teve que passar. Lembrava das outras crianças, das cuidadoras… e um ódio terrível se abatia sobre ele, como uma sombra que crescia e o consumia.
Mical finalmente se aproximou e sentou no assento de frente para ele.
— Renato… você tá doente. Eu consigo ver. Isso aí que tá dentro de você tá te fazendo mal.
O garoto desviou o olhar, pegou a garrafa de vinho e bebeu um gole generoso.
— Não me sinto doente.
— O ódio… é uma doença. Precisa se livrar disso, Renato. Não quero te ver sofrer.
— Ódio? — Ele riu de um jeito amargo. — E o que mais eu sentiria, Mical? Quer saber o que eu acho? Acho que às vezes ele é uma resposta válida. Acho que odiar é a coisa mais justa a se fazer, dependendo da situação.
Mical balançou a cabeça.
— O ódio é como uma espada sem cabo. Você precisa segurar pela lâmina. Machuca os outros, é verdade; mas machuca quem o carrega muito mais.
— Impossível não odiar, Mical. Não dá. Não depois do que eles fizeram. Talvez eu não seja uma pessoa tão evoluída quanto você… mas ódio é tudo o que eu consigo sentir agora. Eu preciso acabar com a Kath. Preciso matar ela! E tem que ser uma morte dolorosa! Eu quero ver ela gritando e se arrependendo do que fez! Eu quero que ela sofra!
— Eu sei que precisa. E eu… todas nós… estamos aqui para te ajudar. Só espero que você consiga se livrar disso depois.
Ele olhou para a janela, observando as nuvens passando rapidamente.
— Também espero — respondeu.
Tâmara queria ir até Renato, dizer-lhe algo legal, reconfortante, dar-lhe o ombro para que ele descansasse, e afagar seus cabelos. Queria enchê-lo de carinho; e que ele a abraçasse e dissesse palavras de amor.
Mas até ela sabia que isso não ia acontecer. Pelo menos não neste momento.
Olhou para Clara que, totalmente despreocupada, estava sentada num assento, com os pés sobre o estofado da frente, enquanto degustava um uísque caro.
E Jéssica que, apreensiva, olhava sua irmã de longe; e a demi-humana que, não conhecia aviões, pulava pra lá e pra cá, com os pelos eriçados.
A única que teve a audácia de se aproximar foi Mical. E justamente ela parecia saber quais palavras dizer.
Renato precisava disso. Todas ali sabiam, por isso não se intrometeram.
Tâmara, no entanto, não suportava o ciúme.
Queria se meter no meio dos dois, afastar Mical e tomar Renato apenas para si. Nenhuma das outras garotas poderiam amar Renato da mesma forma que ela amava.
Mas mesmo ela sabia que essa não seria uma estratégia inteligente.
Renato ainda não confiava inteiramente nela, e ela sabia disso.
Engoliu em seco.
“Droga! O que eu faço?!”
Sentiu vontade de beber alguma coisa, mas não gostava tanto do sabor do álcool, e ali naquele avião não havia nada como suco ou refrigerante. Aparentemente, todos, com exceção de Tamara, eram alcoólatras contumazes.
Suspirou.
Sem mais nada para fazer, foi até a janela e olhou para o céu infinito.
Azul salpicado de manchas brancas.
Era sua primeira vez dentro de um avião e estava maravilhada.
Decidiu ir até o cockpit. Talvez a vista de lá fosse ainda melhor!
Renato pôs o copo de vinho sobre a mesa, logo depois de beber um gole generoso. Sentiu sua visão embaçar.
— Eu tô de boa, Mical. Tô bem.
Mical abaixou o rosto e franziu o cenho. Sabia que era mentira. Queria dizer alguma coisa, mas não encontrou palavras.
A porta do cockpit não estava trancada, então Tâmara só girou a maçaneta e entrou.
O piloto a olhou por cima do ombro. Era um homem de cabelos grisalhos e olheiras profundas. Ele bebia de uma latinha de:
— Coca-cola?! — disse Tâmara, já salivando.
O piloto riu e apontou um cooler próximo ao assento do copiloto.
— Pode pegar.
— Obrigada! — disse ela, alegremente, pegou uma lata e, sentou-se no assento do copiloto, que até então estava vazio.
A vista ali, realmente, era incrível. Estava navegando num oceano feito de nuvens.
Bebeu um gole e suspirou com prazer.
— Por que é tão difícil achar alguma coisa sem álcool por aqui?
O homem riu.
— A maioria das… criaturas sobrenaturais… bebem muito álcool. Não sei bem porquê…
Tâmara assentiu.
— Ei, não devia ter mais um de você? — perguntou a garota.
Ele deu de ombros.
— Eu dou conta sozinho. Faço isso há muito tempo.
— Isso, tipo, pilotar para monstros? — Ela bebeu mais um gole.
— Pilotar.
— Acho incrível como um tubo de aço desses consegue se manter no ar! Parece magia!
O piloto emitiu um riso contido.
— Essa é uma das poucas coisas no meu cotidiano que não é magia, menina. Apenas ciência e engenharia. Algo totalmente humano.
— É incrível! — disse ela, olhando todos aqueles botões e monitores no painel.
O homem sorriu.
— Gosta de tecnologia?
— Gosto.
O piloto assentiu.
Tâmara, depois de um tempo de silêncio, prosseguiu:
— A Clara disse que você é um piloto especial.
— Eu sou bom. Sou discreto. Só isso.
— É verdade que pilota para vários tipos de criaturas?
— É.
— Como conseguiu esse trabalho?
O piloto suspirou. Pensou, por um tempo, se daria continuidade àquela conversa. Escolheu falar, já que não tinha nada melhor para fazer.
— Da mesma forma que a maioria dos humanos se envolve no mundo sobrenatural, eu acho. Eu estava vivendo minha vida à parte de tudo, até que um dia tudo virou de cabeça para baixo. — Ele sorriu, e seus olhos pareceram mirar algum ponto aleatório do chão, enquanto recordava. — Eu era um piloto da Força Aérea, sabe? Bem sucedido, até. Naquele dia, a gente estava transportando uma coisa. Ninguém ali sabia o que era. Mas fedia! Fedia igual sangue podre! Aquele cheiro empodreceu todo o avião. Sinto náusea só de lembrar. E o nosso capitão disse que precisávamos obedecer aqueles desgraçados do Monitoramento.
— Monitoramento? — Tâmara ergueu uma sobrancelha.
— Eles são uma agência secreta do governo. Na época, eu também não conhecia. Acho que só o capitão sabia da existência deles. Inteligência e Monitoramento Anti-Magia. O IMAM. Mas eles são chamados por vários outros nomes: Depam, Grupo tático anti-magia, caçadores de bruxas do Estado. Mas acho que a maioria só chama de Monitoramento mesmo.
— Nunca ouvi falar neles.
— É melhor tomar cuidado. O uso da magia é proibido no nosso país desde a época do Império. Monstros e criaturas são caçados, estudados e aprisionados. Mas algo tá acontecendo. Há alguns anos, já. A magia tá descontrolada. Muitos focos de esquisitices. Acho que é o que acontece quando se tenta controlar uma força da natureza. É mais ou menos como tentar segurar a água da torneira com o dedo. Você até segura a água por um tempo, mas a pressão se acumula e vai explodir mais cedo ou mais tarde.
Tâmara balançou a cabeça, assentindo.
— A cada dia que passa, eu descubro uma coisa nova! E o que estavam transportando no avião?
O piloto riu de maneira cínica e deu de ombros.
— Nada demais. Só a porra de um vampiro ancestral! O filho da puta arrebentou aquela jaula de aço no soco. Foi uma emboscada. Os súditos daquele monstro já estavam no avião só esperando a hora certa para libertar o mestre. Foi um massacre. Os caras do Monitoramento até tinham algumas armas e preparo para combater as criaturas, mas a maioria de nós ficou completamente indefeso. Me pouparam porque eu era o piloto. Acho que o piloto deles foi morto, e nem mesmo os vampiros queriam pagar pra ver se aguentariam uma queda de avião. Me ofereceram dinheiro. E eu aceitei. Pousei o avião no solo e a vida seguiu. Um dos sangue-sugas até queria me matar depois disso, mas o chefe deles não deixou. Disse que minha vida seria parte do pagamento pela ajuda. — Ele deu de ombros. — Os vampiros precisaram de um piloto de novo. Depois um grupo de lobisomens; os capelobos. Esses dão arrepios! Já transportei até um deus uma vez. Doideira, não é? E aqui estou eu, agora, transportando um demônio sem asas, duas irmãs transpirando magia de anjo, e você, que fica andando com esse fuzil pra cima e pra baixo. Pelo menos a garota das orelhas de gato é novidade pra mim.
Tâmara sorriu.
— Entendi.
— Oh, já vamos pousar daqui a pouco. Bem vinda ao Japão, menina! Se ficar andando com essas armas pelas ruas, a polícia vai te parar. Não que a polícia represente algum problema pra vocês, não é?
Tâmara viu o solo se aproximando, através do vidro, e sorriu de um jeito estranho.
— Não vejo a hora da violência começar.