Pacto com a Súcubo - Capítulo 40
Em seu “quarto-câmara-subterrânea”, Renato pegou a mochila que havia guardado num dos cantos, e de dentro dela tirou algumas frutas que foram colhidas na Floresta Perdida. Tinham aspecto estranho: uma casca dura e verde com inúmeras estruturas semelhantes a pelinhos, e havia manchas que lembravam dois olhos, um nariz e uma boca, formando um rosto em expressão de tristeza.
Era bizarra, mas conforme Renato já provara, era bem gostosa e refrescante, e o sabor lembrava manga. A parte difícil era quebrar a casca dura. O garoto usou uma pedra que encontrou por ali e partiu a fruta em duas. Usando uma colher que trouxera na mochila, comeu.
Depois deitou sobre um colchonete, tão fino que mais parecia um lençol. Havia muitos demônios que dormiam na masmorra, mas eles levavam suas próprias coisas, então tinham certo luxo. Renato não tinha levado nada.
O reitor, meio a contragosto, conseguiu esse colchonete e o emprestou a Renato. Era melhor do que deitar sobre o chão de pedra, mas, francamente, a diferença era pequena.
Olhou para o alto, prestando atenção nas estalactites penduradas, que se projetavam do teto como lanças em sua direção.
— Espero que essas coisas não caiam.
Desejou muito ter água encanada para tomar banho, escovar os dentes e fazer algumas outras necessidades. O reitor tinha dito que conseguiria alguns cristais elementais que poderiam fornecer água, mas até agora nada. Talvez tivesse esquecido. Todos os outros hóspedes da masmorra, pelo que Renato sabia, poderiam fazer magias que produzissem água à vontade. Ele era o único em desvantagem ali.
Apesar de extremamente cansado, estava eufórico demais para dormir e o sono demorou para vir. Como de costume, sua mente divagou para longe. Sentiu falta de seu vídeo-game destruído no incêndio; sentiu falta de sua TV, do celular e da internet. Desejou, mais do que tudo, poder ver um anime, desses de comédia Slice Of Life, onde poderia dar algumas risadas e esquecer das preocupações. Suspirou e se virou de lado. Fechou os olhos.
— Não tem jeito. Eu preciso ficar forte, senão…
E finalmente o sono bateu na porta de seus olhos.
No outro dia, de manhã, depois de comer mais uma daquelas frutas esquisitas, Renato foi até a biblioteca para continuar sua sessão de estudos. Era assim que tinha sido definida sua rotina: de manhã estudaria na biblioteca o máximo que conseguisse, depois lutaria contra Kazov para fortalecer os punhos e melhorar seus instintos de batalha, em seguida treinaria sua mente e magia com Phenex. Pelo menos nos primeiros dias enquanto Clara ainda não tinha voltado seria dessa forma.
Procurou novamente o livro de Propedêutica Hermética. Estava curioso sobre algumas coisas, especialmente depois da última aula com Phenex. Queria entender melhor a natureza da magia e como poderia manipulá-la.
Novamente a grande câmara que funcionava como salão da biblioteca das luzes estava vazia. Ele era a única coisa viva ali, aparentemente. Os demônios que estudavam na masmorra também tinham direito de ler ali, mas eles preferiam fazer outras coisas neste horário. Participavam de disputas esportivas envolvendo bolas de fogo e armas mortais, saíam voando para se divertir na floresta ou no cemitério, ou até mesmo se escondiam para beber com algumas súcubos que ainda não tinham se graduado. Eram universitários, afinal.
Renato pegou o pesado livro e o colocou sobre uma das mesas para estudo e se ajeitou na cadeira. Abriu o livro. Procurou pelas explicações sobre a Equação Primordial. Leu um bocado e ficou surpreso com o fato das explicações serem ainda mais difíceis de entender do que a própria equação. Baixou a cabeça, desanimado, deixando-a bater contra o livro.
— Ah, eu deveria ter prestado mais atenção nas aulas de matemática!
A porta se abriu e através dela entrou o reitor Phenex junto da linda Hoopoe, que dessa vez tinha vários ornamentos coloridos no cabelo. Ela também usava um par de óculos de grau.
— Vamos, garoto! Hoje seu treinamento comigo começa mais cedo.
Renato hesitou por um instante, mas logo assentiu.
— Certo!
Enquanto caminhavam pelos túneis, até a câmara do treinamento, alguns demônios jovens passaram por eles. Demonstravam alto respeito a Phenex e a Hoopoe, abaixando a cabeça ao cumprimentá-los, mas sempre tinham para Renato um olhar de desprezo e até de nojo.
— Se o Reitor não estivesse aqui, eu mesmo te mataria e cozinharia tua carne, macaco de barro! — disse um deles, ao passar por Renato.
O garoto simplesmente ignorou e continuou andando com olhar focado.
— Chegamos! — disse Phenex.
Era a mesma câmara do outro dia, onde treinaram meditação e controle energético, mas dessa vez tinha um muro de pedra subindo até o teto e dividindo a câmara ao meio.
Phenex se posicionou a alguns metros de distância e Hoopoe ficou ao seu lado.
— Renato — disse o Reitor —, sua missão de hoje é quebrar esse muro de pedra com um soco.
— O quê? — Ele arregalou os olhos. — Como assim quebrar isso com um soco?
O reitor franziu um cenho.
— Qual parte você não entendeu?
Renato suspirou e encarou o muro.
— Será que eu consigo?
— Isso é o que vamos descobrir. Não se preocupe tanto. Faça como fez ontem e direcione a energia mágica pelo seu corpo até a ponta dos punhos. Isso deve fortalecê-los.
— Entendi. — Renato encarou aquela parede de pedra como um inimigo a ser abatido.
Hoopoe permanecia calada olhando com indiferença.
— Vamos lá! — Ele respirou fundo e preparou o soco.
Já viu coisas impossíveis acontecendo várias vezes. Acreditava que mais uma dessas coisas poderia acontecer nesse momento! Afinal, ele conseguiu mesmo controlar o fluxo energético e, sendo franco, conseguiu até derrotar um demônio! Por mais que cada pedaço de seu corpo tentava se recusar a dar o golpe, sua mente estava determinada. Ele poderia conseguir! Sabia disso!
Conseguiu mais uma vez canalizar a energia por seu corpo. Concentrou-a em seu punho para o dar o soco mais forte possível. Respirou fundo. Posicionou-se.
Golpeou. Bateu com toda a força que tinha. O punho se chocou contra a pedra maciça do muro. Escutou algo estalando e se partindo. Era o próprio punho. O choque percorreu todo o braço, fazendo-o vibrar rapidamente e os ossinhos do pulso se estilhaçaram com o impacto.
— Arrrrrg! — gritou. — M-meu punho quebrou! Porra! Arrg! Isso doi pra caralho!
— Hoopoe — disse Phenex —, cure-o.
Ela assentiu e, ao direcionar seu braço para Renato, uma luz verde e quentinha envolveu o punho quebrado do garoto, e a dor foi diminuindo rapidamente até desaparecer por completo.
Renato ficou perplexo.
— A Magia Inata de Hoopoe é a cura. Então, não se preocupe, pode continuar tentando — disse Phenex. — Mas não se esqueça! A energia hermética é essencial para que consiga. Faça ela se acumular em seu punho antes do ataque.
— Sim.
Renato, instintivamente, acariciou o punho, antes de preparar um novo golpe. Deixou a energia fluir por ele. Ele podia sentí-la. Era suave e poderosa. Pensou no fogo. Teve a sensação da temperatura aumentar. Desenhou no ar, com o dedo, o delta que simbolizava o elemento e fechou o punho. Foi como se o próprio fogo estivesse em sua mão. Golpeou com ainda mais força.
— Aaarg!
Dessa vez foi uma fratura exposta. Um dos ossinhos do metacarpo se partiu e rasgou os tecidos em volta, e explodiu para fora da carne. A dor foi excruciante. Renato gritou alto.
O garoto, alucinado de dor, movimentava seu braço em espasmos descontrolados, o que dificultou que Hoopoe o curasse. O sangue quente pingava no chão.
Finalmente a luz verde de Hoopoe envolveu a mão machucada e o osso fraturado retornou para dentro da carne, e os ferimentos se fecharam. Não ficou nem cicatriz. Renato se acalmou. Movimentou os dedos, checando se sua mão ainda tinha vida.
— Arg! Mas isso ainda tá doendo! — disse o garoto, com uma careta.
— Eu não entendo — disse Hoopoe. — Eu o curei completamente.
— A dor é psicológica — respondeu Phenex. — É uma sensação produzida no cérebro. Pelo jeito, teu cérebro ainda não entendeu que o ferimento não existe mais e por isso continua produzindo dor. Vai ter que continuar assim mesmo.
Renato movimentou os dedos mais uma vez.
— Vamos lá! Mais um soco! — disse para si mesmo. — Eu preciso ficar mais forte! Não posso deixar que machuquem quem eu amo mais uma vez! Não posso!
Respirava pesadamente. Era como se os ossos da mão arranhassem uns nos outros. A dor não era tão terrível como quando o ferimento estava aberto, mas ainda incomodava.
— Vamos lá, garoto! Você consegue!
— Essa voz?!
Era Kazov, parado na entrada da câmara, com os dois diabinhos que torceram para ele no outro dia.
O reptiliano sorriu, o que foi um tanto bizarro, com aquela pele escamosa e os dentes afiados.
— Eu e os dois meninos aqui estávamos te procurando. Era hora da nossa luta, afinal.
— Desculpe, Kazov. Hoje eu precisei antecipar meu horário com o humano — disse Phenex.
Kazov chacoalhou a cabeça, negativamente.
— Não tem por que se desculpar, reitor. O garoto precisa mesmo aprender a dar um soco direito.
— É verdade! — disse o diabinho de pele azul. — Ontem ele tava muito fraco!
— Mas acho que ele vai ficar forte! — disse o de pele vermelha.
— Estou torcendo por ele!
— Eu também!
— Acho que perdi a torcida das crianças. — Kazov sorriu e coçou a cabeça. — Vamos lá, Renato! Você consegue!
Ele fez sinal de positivo, com aquela garra curvada que dera tanto trabalho no outro dia se projetando do polegar.
Renato sorriu e se sentiu verdadeiramente grato. Aquelas pessoas estavam mesmo torcendo por ele!
Encarou novamente a parede de pedra com o olhar fixo de um predador. Concentrou a energia hermética no punho e bateu com toda a força possível.
Seu punho, ao bater na parede de pedra, produziu um som agudo semelhante a chinelo batendo com força contra um chão cimentado e, pela primeira vez, a parede tremeu. Entretanto, ainda ficou de pé. Quando Renato puxou o punho, ficou um pouco de sangue sobre a pedra, com o formato do soco, como um carimbo.
Hoopoe esticou seu braço para curar o machucado. Renato balançou a cabeça.
— Não precisa. Nem tá doendo tanto assim!
A garota demônio olhou confusa para Phenex, como se procurasse aprovação.
O reitor assentiu.
— Se ele acha que não precisa, então deixa.
— Acha que ele consegue, Kazov? — disse o diabinho de pele azul, com cara de preocupação.
— Acho sim. Mesmo que não consiga hoje; uma hora esse muro cai.
Renato se virou para o muro mais uma vez. Fechou o punho. Sorriu, e o sorriso saiu misturado a uma careta de dor.
— Vamos lá! Mais um soco! Como eu posso lutar contra demônios e monstros se não consigo fazer algo simples assim?! Droga! Cai, seu muro de merda!
Renato gritou enquanto dava aquele soco. O punho bateu contra o muro com força, e o choque percorreu seu braço, fazendo o cotovelo estalar e causando uma dor lancinante, e Renato sentiu a energia percorrendo o braço em câmera lenta, indo do punho ao ombro, e conseguiu fazê-la voltar. E a energia fez o caminho de volta e retornou para o muro. Ele empurrou com ainda mais força. E o punho de Renato afundou na pedra, estilhaçando-a, jogando destroços e pedaços para todo lado, e a onda de choque percorreu todo o muro, e em segundos ele explodiu e caiu, transformado numa pilha de escombros e poeira.
Renato encarou a pilha de pedra diante de si. Respirava pesadamente e de forma ofegante. Sangue pingava de sua mão. Ergueu a cabeça e estufou o peito. Estava orgulhoso.
— Consegui.