Pacto com a Súcubo - Capítulo 42
Renato caminhava, determinado, pelo corredor de pedra que levava à arena. Clara estava ao seu lado. As passadas dele eram firmes. Se sentia um lutador de MMA entrando no ringue. “Lutadores profissionais têm direito de escolher uma música, não tem? Que música eu escolheria?” pensou o garoto.
— Nego Drama! Eu faria o Inferno tremer com o rap do Racionais! — falou para si mesmo, com um sorriso no canto da boca, sentindo-se marrento.
— O que disse? — Clara lhe lançou um olhar confuso.
— Não é nada.
Já podiam ouvir a barulheira dos demônios eufóricos na arquibancada, loucos para ver um show de mutilação.
Se aproximaram da porta que dava acesso às areias. Três guardas demoníacos bloquearam a passagem. Clara notou que não se tratavam de simples demônios de baixo nível. Esses eram de fato perigosos.
— Só o gladiador pode entrar! — disse um deles, apontando uma Espada do Pecado. — Acompanhantes devem ficar do lado de fora.
— Certo! Certo! Eu já entendi! — disse Clara, lançando ao guarda um olhar de superioridade. — Renato, tome cuidado! Não esqueça aquilo que conversamos e nem o que aprendeu! Vença! Mostre ao Inferno todo o seu poder! Faça-os tremer! Faça-os entender o que o humano de uma súcubo é capaz!
— Farei — disse ele, e deu um beijo na boca dela.
Foi como a primeira vez que seus lábios se tocaram: uma explosão de sensações. A maciez, o calor, o aroma dela nas narinas.
Clara aproveitou para transferir a ele um pouco de seu poder demoníaco.
— Vamos! Não temos o dia todo! — reclamou o guarda. — A platéia está esperando.
Renato se afastou, e um fino e brilhante fio de saliva ainda os manteve conectados por alguns segundos, antes de se romper.
— Vai lá — encorajou ela.
O guarda abriu a grande porta de madeira. Renato se virou e passou por ela; e a porta se fechou logo em seguida.
— E aí vem o humano que desafiará os monstros infernais! Renato Yakekan! O humano da súcubo Clara Lilithu! — disse um demônio em roupas sociais, voando acima das arquibancadas, segurando um microfone. Era o comentarista dos combates.
Os pés de Renato afundaram na areia fofa e quente. Nas arquibancadas, demônios de todos os tipos e tamanhos gritavam, alucinados, xingando Renato, falando que ele morreria rápido, que queriam ver ele ser devorado, que queriam vê-lo morrer gritando. Ele fechou os olhos e suspirou.
— Calem a boca, seus demônios burros de baixo nível! — gritou a voz de uma garotinha, e as arquibancadas mergulharam em silêncio.
Renato olhou na direção da voz e viu que se tratava de Angélica. Ela estava flutuando acima das arquibancadas com as grandes asas brancas e brilhantes, com detalhes dourados nas pontas das plumas, abertas e se movendo lentamente. Em volta dela, fios de escuridão se contorciam ameaçadoramente como serpentes feitas do mesmo material que a noite.
— O senhor humano é legal! E ele vai acabar com esses monstros burros e feios! Vai acabar com todos eles!
Ela lançou para os demônios o olhar mais ameaçador que conseguiu fazer; e como não obteve nenhuma resposta além do silêncio, desceu e sentou-se junto de sua irmã para assistir a luta de um local privilegiado.
Próximo dela também estava Belfegor, segurando um copo com alguma bebida que estava pegando fogo na superfície, como uma vela; e ao lado dele, estava a garota-gato escrava. Ela olhava direto para Renato com olhos neutros.
“Na última vez que nos vimos, humano, você disse que sua espécie é mais forte do que parece. Vamos ver se é verdade.” Ela enviou os pensamentos telepaticamente a ele.
Abigor, Phenex e Hoopoe também estavam lá; e alguns degraus mais abaixo, num assento um pouco menos privilegiado, estava Kazov acompanhado dos dois diabinhos irmãos.
Eram tantas criaturas estranhas assistindo que parecia que todo o elenco dos pesadelos do mundo tinham se reunido ali para vê-lo ser morto. Mas ele lutaria! Tentaria sair vencedor! Se preparou para isso.
O sol avermelhado estava quente. Uma mosca zumbiu em seu ouvido e, zigue-zagueando, pousou em sua orelha. Renato a espantou com os dedos e a viu se afastar até sumir. Sentiu a areia nos dedos dos pés. Teve a sensação de já conhecer esse lugar.
Foi quando ouviu um som de baque surdo e a terra tremeu, como se algo pesado colidisse com o chão. Tump! De novo, e de novo. Tump! Tump! Ele não demorou para perceber que eram os passos de alguma coisa muito pesada se aproximando.
“Ferrou!” pensou. “Eles têm um dinossauro!”
A criatura surgiu, Renato não pôde acreditar nos próprios olhos. Preferia que fosse um dinossauro, mas não era nada disso. Diante dele estava um escorpião gigantesco, do tamanho de uma carreta. Devia ter uns 20 metros de comprimento. Batia as pinças presas aos pedipalpos e movimentava o ferrão na cauda acima de suas costas.
Cada passada do bicho fazia o chão tremer. O vento agitava as areias e dificultava a visão.
— E o monstro que tentará matar o gladiador chegou! É um Escorpião do Desespero! — disse o comentarista, com muito entusiasmo, segurando o microfone com as duas mãos. Ele voava por cima da arena.
A criatura ficou movimentando os vários pares de olhos acima da cabeça, até que os fixou em Renato.
— Merda!
O bicho começou a se aproximar. Era pesado e seus movimentos eram lentos, mas as pernas eram longas e cada passo o aproximava vários metros.
Renato fez sua Espada do Pecado aparecer nas mãos, e a ergueu. Tentava desesperadamente pensar num plano. O bicho batia as pinças e movimentava as quelíceras, como se procurasse algo para morder.
Quando ficou próxima o bastante, a criatura moveu a cauda segmentada, fazendo o ferrão vir na direção de Renato como uma lança pingando veneno. Renato pulou para o lado bem a tempo de evitar ser atravessado pelo ferrão, que devia ter uns dois metros de comprimento, no mínimo.
A criatura recolheu a cauda bem na hora em que o rapaz girou no próprio eixo para tentar cortá-la. A espada bateu contra o ferrão e faíscas saíram. Respingos de veneno voaram para todos os lados.
O bicho rugiu, ameaçador, balançando o ferrão acima da cabeça. No local onde o ferrão havia se inserido, ficou a poça de um líquido amarelado que começou a corroer a areia feito ácido.
O bicho cuspiu, disparando, por entre as quelíceras, uma gosma amarelada. Renato pulou para trás, para tentar evitar ser atingido, e instintivamente pôs a espada na frente. A espada foi atingida pela gosma e começou a ser dissolvida no ácido, e um líquido metálico escuro começou a escorrer.
— Merda! Merda!
A plateia estava indo ao delírio. “Aposto 10 mil que ele vai ser comido inteiro” gritou um; “eu aposto 50 mil que ele vai começar a chorar daqui a pouco” gritou outro.
“Malditos!” pensou Renato. “Eu podia desafiar eles pra um combate igual o Jhony fez com os jurados!”
Balançou a cabeça, tentando afastar as distrações.
— Lembre-se do bestiário! — Renato gritava para si mesmo. — Escorpiões do Desespero?! Eles… lembrei de algo!
Renato começou a correr, percorrendo todo o perímetro da arena, se aproveitando que o bicho era pesado e lento, e por causa disso não podia acompanhar seus movimentos ágeis. Ainda assim, aquela cauda com ferrão na ponta se movimentava rapidamente, o que tornava qualquer aproximação perigosa demais. No momento, Renato queria manter uma certa distância.
O escorpião movia os vários pares de olhos, acompanhando o garoto.
— Capítulo 28 do Bestiário da Segunda morte: Escorpiões do Desespero. Informação número 1: apesar dos muitos olhos, eles são quase cegos. Então, vou torná-lo completamente cego!
Renato parou, próximo à parede que limitava a arena. O escorpião estava longe o bastante. O garoto ergueu sua espada e evocou toda a raiva que tinha, não era tarefa difícil, ele só precisava se lembrar; e a espada começou a emanar uma densa névoa negra e gelada.
— Só preciso que tudo fique coberto pela névoa. Eu vou conseguir distinguir essa coisa, com todo esse tamanho… mas eu serei quase invisível pra ele.
A platéia ficou em silêncio, observando a arena se tornando enevoada com uma mancha escura que se espalhava pelo ar.
Tump, tump, tump. O chão tremeu novamente. O Escorpião do Desespero se moveu na direção de Renato, e aquele ferrão surgiu por entre a névoa, cortando o ar feito um míssil. O garoto começou a correr novamente, percorrendo toda a circunferência da arena.
— Só tem… um problema… — sussurrou Renato, ofegante. Falar consigo mesmo o ajudava a pensar. — Escorpiões do Desespero tem excelente olfato. Então deixá-lo cego não vai ser o bastante!
Quando parou de correr, a névoa já tinha coberto toda a arena; os demônios, com uma super visão, podiam ver tranquilamente o que estava acontecendo; Renato via apenas o vulto gigantesco do escorpião se movendo; e o bicho não via nada.
O garoto parou para prestar atenção no vento. O sentiu batendo nos cabelos; e até a névoa entregava sua direção. Vinha de longe, trazendo os odores de enxofre e morte, mas ia servir.
— Eu só preciso… atacar contra o vento!
E foi isso que ele fez. Avançou na direção do bicho, com o vento vindo em sentido contrário. Dessa forma, o cheiro dele não chegaria ao escorpião, e ele teria o ponto cego perfeito.
O Escorpião do Desespero balançava o ferrão em todas as direções, enlouquecido, procurando sua presa, e rugia, fazendo o ar em volta tremer.
O garoto, correndo, se jogou no chão, num movimento parecido com um carrinho no futebol, e deslizou pela areia, até ficar embaixo do bicho. Se levantou rapidamente e ergueu a espada, e a enterrou fundo na barriga do escorpião, e a moveu, correndo, rasgando do tórax em direção ao abdome, e as vísceras do bicho caíram sobre ele.
As pernas da criatura bambearam e tremeram. Renato tentou correr, mas não deu tempo, e o escorpião despencou sobre ele, com o abdome aberto, e o garoto se viu preso no meio das vísceras e do sangue azulado. Teve que cavar a saída por dentro do bicho, até o dorso, onde abriu caminho com a espada, e se ergueu vitorioso.
— Eu falei! Eu falei que o senhor humano era legal e que esses monstros burros não tinham chance! Eu falei! — gritou Angélica, eufórica, enquanto se levantou de seu assento com as asas abertas. Brilhava como uma estrela.