Pacto com a Súcubo - Capítulo 43
— Renato, Renato, acorde, meu filho. Está na hora.
Renato abriu os olhos, despertando de seu sono, e o olhar amoroso de sua mãe o encontrou.
— Está quase na hora de ir para a aula, filho — disse ela, daquele jeito firme e amoroso que as mães sabem dizer.
O garoto se ergueu, sentando-se na cama. Olhou para o relógio. Quase meio dia. Chegaria atrasado.
— Mãe… hoje eu não tô me sentindo bem. Posso faltar?
Ela arregalou os olhos, preocupada.
— Tá com febre? Dor? — E já foi botando o dorso da mão na testa dele para sentir a temperatura. — Não… não é febre… talvez seja…
— Eu só tô um pouco cansado.
A mulher suspirou.
— Tá bom. Quer faltar, falta; mas então o que faremos com o resto do dia?
Ela ficou de pé e pôs as mãos na cintura, esperando resposta. Ela fazia isso, às vezes. Renato se lembrava bem.
— Que tal se a gente fosse… não sei… ao cinema? — Ele sorriu, e uma lágrima de tristeza escapou de seus olhos e se misturou ao sorriso. — O que acha? Tem um filme novo que eu queria ver… — Nessa hora, ele quase não conseguiu segurar o choro, mas engoliu as lágrimas como se engolisse lava derretida e tocou no rosto de sua mãe.
Ela sorriu com uma ternura digna dos anjos.
— É claro, meu amor. Podemos ir sim.
Renato assentiu.
— O papai está?
— Tá procurando por mim? — O pai dele apareceu na porta. Estava do jeito em que era mais rico em sua memória: roupas sujas de cimento, botina velha, a calça com um rasgo no joelho. O sorriso dele era tão bonito, tão sincero.
Renato se levantou e foi até ele.
— Oi, pai.
— Oi, filho.
— Senti saudades.
— Ué… mas a gente se viu ontem — o homem ergueu uma sobrancelha.
— É mesmo. É que a noite foi longa. Tive um sonho, ou um pesadelo, que nunca tinha fim. Durou uma eternidade.
O pai acariciou a cabeça do filho e fez um cafuné.
— Agora tá tudo bem. O pesadelo acabou.
Renato sorriu, foi um sorriso amargo, e deixou transparecer um pouco de raiva, talvez até de desdém. Balançou a cabeça, indignado.
— Caraca… isso é sacanagem…
— Hum? O que foi filho? — Seu pai o olhou, confuso.
— Nada. Não é nada. Apenas… apenas me abracem, por favor. Só peço isso. Só um abraço.
— Oh, meu filho, mas é claro! — disse sua mãe, enquanto corria até ele para abraçá-lo.
Foi um abraço triplo. Sentiu o aperto forte; sentiu o cheiro deles. Tudo exatamente como ele se lembrava. Teve vontade de ficar.
— Já sei! — disse Renato, e se desvencilhou dos braços deles, e foi a coisa mais difícil de fazer, e correu até a cozinha.
Abriu a geladeira e, para sua felicidade, ele estava lá: o bolo de cenoura com cobertura de chocolate que sua mãe costumava fazer. Tinha um preparo especial, por isso era único. Essa era uma das coisas que Renato mais sentia falta. Tirou uma fatia generosa e mordeu. E tudo o que sentiu foi gosto de nada. Foi como morder ar.
Seus pais correram até ele. Pareciam preocupados.
— Tá tudo bem, meu filho? — disse o pai. Olhar carinhoso como sempre.
— Deve ser só fome, Roberto — respondeu sua mãe. — Ou… sabe como é… vai ver tá chegando na puberdade — ela cochichou essa parte, como se compartilhasse um segredo. — Garotos costumam agir estranho nessa fase, não costumam?
Renato suspirou. Encarou sua mãe. Os olhos estavam completamente vermelhos de lágrimas.
— Você é a coisa que eu mais odeio — disse ele.
A mãe fez uma expressão de espanto e depois de tristeza.
— O que aconteceu, meu filho? Por que você tá agindo assim? Por que tá me tratando desse jeito?
— De toda a criação, você é a pior de todas. Sua existência deveria ser apagada, verme desgraçado.
E nessa hora, o olhar de sua mãe foi tomado pelo medo. Tentou fugir, mas não deu tempo. A Espada do Pecado de Renato afundou em seu plexo solar e atravessou o estômago. A lâmina brilhou nas costas dela.
Todo o cenário começou a se desfazer, se tornando pó. A casa derretia feito cera quente, seu pai apenas estava se desintegrando. O chão borbulhava e se desmanchava. Até que tudo se quebrou feito vidro e logo em seguida Renato estava de volta à arena.
Diante dele, estava o Verme dos Sonhos, com o corpo cilíndrico, com vários tentáculos se movendo desesperadamente, tentando se soltar. Os tentáculos, que até alguns segundos atrás estariam conectados nos ouvidos, narinas e boca de Renato, enviando impulsos elétricos e sinais químicos ao cérebro, se balançavam, batendo, tentando se livrar e fugir, e o verme gritava de dor com a espada atravessando seu corpo úmido e pegajoso.
Renato puxou a espada só para enfiá-la novamente na criatura. Ela caiu no chão, se contorcendo na areia, com os tentáculos se movendo lentamente em movimentos ondulados. Renato puxou a espada e a enfiou mais uma vez. Estava transformando aquela coisa gosmenta numa peneira. Depois passou a fazer cortes consecutivos, dilacerando a criatura. O sangue violeta escorreu e molhou a areia. Renato não parava de golpear e gritar como uma fera. Ele era apenas ódio. Era apenas vontade de destruir.
Fez sua espada desaparecer e começou a golpear a coisa no chão com os próprios punhos. Eram golpes seguidos, carregados com toda a energia que sua raiva poderia acumular.
—Você é o pior de todos! — ele gritava. — Deveria ser exterminado! Todos de vocês deveriam!
Chutou o Verme dos Sonhos, e o corpo mutilado dele foi arremessado para longe. Num segundo, Renato estava sobre ele novamente, dando socos, chutando, cortando com a espada. Continuou até não ter mais forças e ser vencido pelo cansaço. Quando parou, ficou de pé, ofegante, e encarou a platéia silenciosa. Depois virou as costas e saiu da arena.
Clara estava esperando-o atrás das portas. Ela, sem dizer nenhuma palavra, o abraçou.
— Renato — disse ela — você viu o paraíso, não viu?
— Vi. E foi a pior coisa de todas. Prefiro mil vezes o Inferno — disse ele, soluçando, tentando conter as lágrimas.
— Tá tudo bem. Você conseguiu. Venceu a criatura que ninguém poderia vencer. Aquela que suga o sangue de sua presa até a morte, enquanto lhe distrai com seu maior desejo, o maior sonho.
— Quase, Clara. Quase que eu aceitei morrer. Eu sabia desde o início que era tudo falso, sabia que era o verme na minha cabeça, mas foi tão bom ver minha mãe e meu pai que… quase… eu quase aceitei o preço de ser morto ali mesmo enquanto aproveitava os meus últimos momentos ao lado deles.
— Não se culpe. Todo mundo pensaria a mesma coisa. A maioria teria morrido.
— Eu não lembro do gosto do bolo, Clara. Não lembro do gosto do bolo que minha mãe fazia. Eu adorava aquele bolo… adorava mesmo… mas hoje eu não consigo me lembrar do gosto, não importa o quanto eu tente. Achei que aquilo me ajudaria a lembrar. Se ele tivesse gosto no sonho, talvez eu… não sei se eu resistiria. Mas aí eu lembrei. Lembrei de você, que está ligada a mim e só consegue sair do Inferno se eu sair também; lembrei de Jéssica e Mical, que eu jurei proteger… jurei que voltaria vivo. Não podia abandoná-las. Não podia deixar o Abigor matá-las na explosão da bomba.
— E você vai cumprir sua promessa. Tenho certeza.
— Eu também.