Pacto com a Súcubo - Capítulo 44
— E o monstro que irá lutar contra o gladiador está entrando na arena agora! — disse o comentarista das lutas, enquanto voava acima das areias, segurando um microfone.
Renato se preparou. Era seu último combate. Só precisava vencer mais esse monstro e poderia ir para casa.
Não acreditou quando ele entrou.
— Então é você — disse o rapaz, relaxando os ombros, mas sem demonstrar qualquer emoção.
— Sim. Eu. — Kazov curvou a boca num sorriso sinistro no qual suas presas reptilianas ficaram evidentes, e movimentou a língua fendida. A calda se balançava atrás dele. Dessa vez, suas escamas tinham um tom alaranjado, parecido com as areias tocando seus pés. As garras curvadas deviam ter, pelo menos, trinta centímetros cada uma.
Tinha uma carapaça de metal sobre o peito. Era a única proteção que usava. Dispensou as outras partes da armadura porque, segundo ele, eram pesadas, e ele queria se movimentar livremente e com velocidade.
— Acho que podemos começar — disse o reptiliano.
Renato ficou em posição de luta, segurando a espada com as duas mãos.
— Pode vir.
O reptiliano se moveu rapidamente e surgiu diante dele, saltando, movimentando a pata de cima para baixo, mirando as poderosas garras curvas na direção do rosto de Renato. O garoto firmou as pernas para conseguir uma boa base e bloqueou o ataque usando a espada. O impacto fez Renato quase cair no chão, mas ele conseguiu se manter de pé; movimentou a espada horizontalmente, se aproveitando da postura abaixada, tentando atravessar o abdome do adversário. Kazov pulou para trás, evitando ser atingido.
Renato atacou. Foi para cima, movimentando a espada, e desferiu vários golpes seguidos. Kazov os bloqueava com as garras. Faíscas voavam para todos os lados, como gotas douradas em chamas.
Enquanto bloqueava os ataques, o reptiliano moveu a calda sem que Renato percebesse, e acertou um golpe com ela, como uma chicotada, que atingiu em cheio o rosto do garoto. Renato viu estrelas, ouviu algo estalando, e foi jogado para trás, rolando sobre a areia. A espada escapou de suas mãos, e girou no ar, e na hora em que se cravaria no chão, se transformou em névoa escura, e desapareceu. E então a névoa surgiu na mão de Renato, retomando o formato da espada.
Dessa vez foi Kazov Yutar quem avançou, não dando chances para o rapaz se recuperar, movendo as garras, tentando abrir o peito de Renato. O garoto rolou para o lado bem a tempo, e Kazov enfiou as garras no chão.
Renato se ergueu. Kazov também. Ficaram parados por alguns instantes, analisando um ao outro. Sabiam que seria uma luta difícil e queriam descobrir uma abertura, uma fraqueza, que pudesse ser explorada.
— Você ficou mais forte, Renato.
— Fiquei.
Os dois respiravam de forma ofegante.
“Reptiliano” pensou o garoto, com os olhos fixos em seu oponente. “Droga. Eu não estudei nada sobre eles. Não estão no Bestiário da Segunda Morte. Com certeza foi algo planejado.”
Kazov movia a calda atrás de si como uma serpente. Era como se ela tivesse vida própria. A marca dela estava carimbada no lado esquerdo do rosto de Renato. Ardia e pulsava.
“Vou cortar essa calda fora”.
— Vai, senhor humano! Acaba com ele! — gritou Angélica, de seu lugar na arquibancada.
Renato não conseguiu evitar de sorrir.
— Vai, Renato! Você consegue! — gritou um dos diabinhos que Renato conhecera na Masmorra das Luzes.
— O que está fazendo?! — Seu irmão o cutucou. — Tem que torcer pro Kazov! Vai Kazov! Parte o humano no meio!
O restante da plateia começou a se manifestar. A maioria torcia para o reptiliano, mas uma parte considerável torcia para Renato.
O reptiliano sorriu.
— Parece que a torcida está dividida.
— Não entendo porque torcem por mim. Achei que eles só queriam me ver ser morto.
— É porque reptilianos são próximos dos demi-humanos; e demi-humanos não passam de escravos para os demônios. Para eles, qualquer um de nós dois que morrer, Renato, está ótimo. Eles só querem ver matança.
— E vamos dar isso a eles?
— Vamos.
Kazov avançou. Renato correu de encontro a ele. O reptiliano atacou com as garras; Renato bloqueou com a espada, produzindo faíscas. Com o impacto, Kazov se desequilibrou e quase caiu, Renato se aproveitou e investiu com a espada. O reptiliano desviou do ataque, jogando o corpo para o lado. A lâmina passou a poucos centímetros de seu rosto, cortando apenas o ar. Porém, logo atrás da espada, veio o punho fechado de Renato. O reptiliano não teve tempo de se defender, e o punho se chocou contra o peito dele. Atravessou a armadura, despedaçando-a, e bateu contra o tórax escamoso. Kazov gemeu de dor e seu corpo foi jogado para longe, rolando sobre a areia, jogando poeira para o alto.
Renato correu para se aproveitar que seu oponente estava no chão, mas antes que chegasse até ele, Kazov se levantou e ficou em posição de luta novamente. Cuspiu, por entre os dente afiados, um pouco de sangue.
— Seu soco ficou forte demais, garoto. Deixou o professor com orgulho.
— Por que quis lutar comigo?
— Hum? — Kazov teria erguido uma sobrancelha se as tivesse. — Pelo mesmo motivo que você, rapaz. Não tive escolha.
O reptiliano moveu os ombros e os braços. Estava se aquecendo. Moveu a língua fendida, e Renato viu a saliva escorrendo por entre os dentes da criatura, e se perguntou se ele seria venenoso.
Kazov disparou em direção a Renato. O garoto girou sobre o próprio corpo, para ganhar impulso, e jogou a espada em direção a seu oponente, como se ela fosse uma lança. Kazov foi pego de surpresa, vacilou por um instante, mas com um golpe de suas garras, desviou o curso da espada para o lado, e continuou avançando. Porém, assim que fixou novamente o olhar em Renato, o garoto já estava sobre ele, pulando com os dois joelhos sobre seu peito.
Os joelhos bateram contra o peito da criatura e os dois lutadores caíram no chão. Renato estava por cima, e jogou todo o peso do corpo contra seu oponente, e mirou a cara dele, desferindo uma sequência poderosa de socos. Todos carregados com energia hermética. Eram capazes de derrubar paredes de pedra; ele esperava que fossem o bastante para derrotar o reptiliano.
O couro escamoso da cara da criatura começou a ficar desfigurado devido aos vários golpes consecutivos. Num dos socos de Renato, Kazov conseguiu segurar sua mão entre os dentes, e a apertou até sentir o gosto de sangue. Renato, em desespero, tentou enfiar os dedos da outra mão nos olhos de Kazov; o reptiliano fechou os olhos e virou o rosto bem na hora. Renato, aproveitando a oportunidade, puxou sua mão da boca do bicho. Foi uma das piores dores que já sentiu. Os dentes eram curvados para trás, e dilaceraram a carne. O sangue vermelho vivo escorreu.
Kazov tentou agarrar o pescoço de Renato, mas o garoto pulou para trás, evitando ser pego. As garras rasparam no peito dele. A camiseta foi rasgada, e quatro cortes superficiais foram gravados da base do ombro esquerdo até a região das costelas. Renato se afastou, sentindo seu tórax queimando e a mão dilacerada latejando de dor e escorrendo o vermelho vivo.
Kazov se levantou. Os olhos eram totalmente pretos. As escamas tinham adotado um tom de verde escuro.
— Você tá acabado, Renato. Vai morrer de hemorragia daqui a pouco.
O rapaz engoliu em seco. Precisava terminar a luta logo, ou desmaiaria na frente de seu oponente devido a perda de sangue.
O sol em sua cabeça era quente. O cheiro de podridão chegava até o nariz, carregado pela brisa sufocante.
Do lugar onde estava, viu Clara, sentada num lugar da arquibancada, com os olhos completamente arregalados. Estava tomada pelo temor. A alguns metros dela, Abigor bebia algum drink fluorescente, e sorria, conversando com Belfegor. Parecia fazer comentários sobre a luta.
A demi-humana estava ao lado de Belfegor, em pé. Tinha uma coleira de ferro, cheia de espinhos, presa ao pescoço. Assim que notou o olhar de Renato, ela enviou telepaticamente o pensamento: “vença, Renato. Estou torcendo por você!”; mas, talvez por descuido, moveu os lábios enquanto o fazia. E Belfegor percebeu, se virou para ela e gritou com ódio. E, erguendo a mão, começou a espancá-la dando tapas e socos, enquanto gritava enfurecido. Os demônios em volta pareciam nem notar.
— Não se distraia da nossa luta!
Kazov avançou sobre Renato. O rapaz viu, caído no chão a alguns metros, o pedaço de metal que fora a carapaça que protegia o peito de Kazov. Era pesado e estava retorcido e com um buraco no meio.
Assim que o reptiliano chegou bem perto, Renato se abaixou, evitando ser atingido pelos golpes ferozes, e bem na hora, sua Espada do Ódio surgiu em sua mão, materializando-se em meio a névoa gelada e sombria, e Renato passou a lâmina no tornozelo de seu adversário.
Kazov grunhiu de dor, cambaleou, mas se manteve de pé, e se virou para atacar Renato mais uma vez. O garoto alcançou a carapaça retorcida, segurou-a em suas mãos e, antes que Kazov o alcançasse, a jogou com toda a força. Não em direção a Kazov, mas na direção da arquibancada. O pedaço de metal retorcido voou direto pra cabeça de Belfegor. O demônio foi atingido enquanto preparava um novo tapa para acertar a demi-humana. Assim que foi atingido, tonteou e grunhiu de dor, e surpreso, botou a mão na cabeça, e sentiu os cabelos úmidos. Tinha saído um pouco de sangue.
O demônio ficou enfurecido. Abriu as asas negras e se preparou para pular dentro da arena, mas Baalat, que estava perto, o deteve, segurando-o pelo braço.
— Calma. Ninguém pode interferir numa Tercina em curso. Sabe disso.
— Mas aquele macaco de barro me acertou.
— Bem feito pra você! — interviu Angélica, estufando o peito. — Quem mandou maltratar a senhorita das orelinhas!
Belfegor apenas bufou, com raiva.
Baalat continuou:
— Acidentes acontecem. Vamos continuar vendo a luta.
Abigor caiu na gargalhada.
— Parece que a luta vai acabar daqui a pouco. Se me dão licença, preciso sair um minuto.
Ele se levantou e começou a caminhar, tranquilamente, para longe. Clara o observou e decidiu ir atrás.
Assim que estavam a uma certa distância dos outros, Clara lhe disse:
— Você, saindo assim, antes de uma luta terminar? O demônio que mais ama batalhas? Me parece suspeito. Tá aprontando alguma coisa.
— Suspeito? — Abigor riu. — Oras, por que você desconfia tanto assim de mim, Clarinha? Eu só estou procurando um lugar mais tranquilo para ver o desfecho. Se quiser, pode me acompanhar.
Kazov e Renato estavam um sobre o outro, alucinados, trocando golpes enlouquecidos. Eram socos, chutes, cortes de espada e de garras. Nem ligavam mais de serem feridos, só queriam continuar batendo, bater mais forte do que o outro, aguentar mais tempo de pé. Tinha se tornado uma luta de pura resistência: aquele que aguentasse mais porrada, e ficasse de pé por mais tempo, seria o vencedor. A dor se acumulava, o sangue descia como correnteza, molhando a areia. Dentes se quebravam, escamas voavam. Nenhum dos dois queria ceder.
Mas não tiveram escolha. Foi nessa hora, onde a luta havia se tornado mais mortal, mais desesperadora, que um raio cortou os céus, e se ramificou como artérias de luz rasgando as nuvens; e uma bola de luz desceu feito um meteoro, e atingiu os dois lutadores, e explodiu violentamente, com um estrondo que tremeu o chão. Os dois foram jogados para longe em direções opostas. Uma trombeta soou.