Pacto com a Súcubo - Capítulo 45
Criaturas aladas cruzavam os céus, saindo de uma fenda entre as nuvens, como se o próprio espaço tivesse sido rasgado ao meio. As criaturas eram recobertas de luz, e algumas usavam adornos dourados na cabeça, como diademas ou coroas.
A maioria portava espadas flamejantes cuja lâmina brilhava com fogo alaranjado.
E uma estrutura redonda gigantesca, cercada por rodas ou círculos dourados, começou a descer do céu. Brilhava mais do que o sol e emitia um som grave e constante, como o lamento de uma trombeta. Milhares dessas criaturas aladas voavam em volta da estrutura, como abelhas vigiando uma colmeia.
O comentarista das lutas foi o primeiro a reagir. Em suas mãos surgiu uma lança cor de piche, feita de pura sombra, e ele a atirou contra uma das criaturas. A lança foi bloqueada por um disparo de energia, semelhante a um relâmpago, e explodiu, fazendo o demônio ser atirado para longe e despencar do alto.
— Anjos! — gritou Baalat, e abriu seu par de asas vermelhas como seus cabelos, e ganhou altura, enquanto surgia uma espada feita de pura luz em suas mãos.
O local foi tomado pelo caos. Alguns demônios de baixo nível, e alguns monstros, tentavam fugir.
Outros demônios se lançaram contra os anjos, cruzando espadas, atirando bolas de energia. Raios de luz rasgavam o céu. Enormes explosões, como gigantescas bolas alaranjadas de fogo e fumaça, tomaram a paisagem, tanto em terra quanto no ar.
Fênix e Hoopoe voaram juntos em direção ao epicentro da destruição. Ele se tornou um pássaro com penas feitas de fogo; e ela, um pássaro feito apenas de ossos e um pouco de pele em alguns locais, e com pedaços de carne podre se desprendendo de suas costelas.
Uma horda de soldados demoníacos ficaram em posição e começaram a disparar flechas de balestras enfeitiçadas. Quando atingiam o alvo, explodiam, transformando o anjo em questão em pedaços.
Até o som de uma metralhadora pôde ser ouvido em algum canto.
Clara não podia acreditar nos próprios olhos. O puro terror tomou conta de seu semblante. Nem em seus piores pesadelos havia imaginado que algo assim poderia acontecer. Era a primeira vez que os anjos invadiam o Inferno depois da grande guerra. Ela mesma tinha visto anjos poucas vezes em sua vida milenar.
— Como? Como isso pôde acontecer? É… é impossível!
Abigor tocou em seus ombros e suspirou. Ele olhou para a cena caótica como alguém que admira um belo quadro ou uma linda paisagem.
— Nada é impossível para quem tem fé, Clara.
Ela tirou as mãos dele de seu ombro, sentindo nojo, como se a mão fosse feita de merda.
— De que você tá falando? — ela gritou, não conseguindo conter todas as emoções que sentia: raiva, ódio, medo.
— De quê? — Abigor riu. — Não é um milagre isso? Um eco da maior guerra que o universo já viu. É lindo.
— Você é completamente maluco!
Abigor deu de ombros.
— Qual o objeto que ligou ao feitiço do Renato? Me dá ele! Precisamos sair daqui! Ele lutou as três lutas!
— Você é tão sem graça — Abigor suspirou, meteu a mão no bolso e atirou um pequeno objeto para ela. Era um dente humano, um molar. — Tô fazendo isso por pura generosidade. Ele não ganhou a última luta.
— E as bombas?!
— Certo! Certo! Vou desativá-las.
Um demônio caiu próximo aos dois, se contorcendo de dor, se arrastando, enquanto seus olhos explodiam e o corpo inteiro dele era dissolvido, como se tivesse sido mergulhado em ácido. Não demorou para parar de se mexer e, finalmente, ser reduzido a uma gosma fedida.
— Uh, isso foi nojento! — disse Abigor com uma careta.
— Renato… — Clara começou a se virar para procurar o rapaz.
— Clara! Espera!
— O que foi, caralho?!
— Não vai me perguntar como os anjos conseguiram entrar no Inferno?
— Hum? Por que você saberia… — Ela franziu o cenho.
— Foi eu.
— Quê?
— Eu. Eu dei a eles uma cópia da minha chave. E também falei pra eles sobre o Renato. É claro que eles não podiam deixar o condutor de Arimã vivo, não é? — Abigor tinha um olhar zombeteiro e faceiro. Parecia compartilhar um segredo divertido.
Clara engoliu em seco. Uma explosão próxima fez os cabelos dela se agitarem.
— Mas isso… deixar os anjos entrarem no Inferno… isso é traição! É alta traição!
— E daí? Quem se importa? Hã? Se não percebeu, Clarinha, o Inferno já era! O céu já era! A terra já era! Toda a criação vai ser destruída! É questão de tempo! Arimã voltou! Será a guerra mais incrível de toda a história. Vai superar a rebelião de Lúcifer e as antigas guerras pelo enxofre!
— Não tenho tempo para suas loucuras agora, Abigor!
Ela o deixou. Pensaria no que fazer depois; nesse momento ela só queria encontrar Renato.
Correu, descendo os vários degraus da arquibancada, ouvindo o som das espadas tinindo uma contra a outra, e das várias magias sendo feitas.
De repente, o ar ficou mais frio. Clara percebeu a intenção assassina vindo em direção a ela, os pelos se eriçaram, e ela pulou para o lado bem a tempo. A bola de energia, de cor azulada, bateu contra o chão no exato local onde ela estava há poucos segundos. Assim que a energia explodiu no chão, as pedras congelaram, e no local ficou uma formação de gelo com projeções para os lados semelhantes a espinhos.
O anjo pousou, pisando com delicadeza e recolhendo as asas brancas, que tinham detalhes azuis nas pontas. Direcionou os olhos prateados para Clara. Ele não demonstrou emoção nenhuma, mas a súcubo sentiu o desprezo intenso naquele olhar. Era um sentimento recíproco, é claro.
O anjo direcionou as duas mãos pra ela; e as mãos brilharam azuladas, e foi como se elas roubassem todo o calor do ambiente, deixando tudo gelado.
A bola de energia veio, maior do que antes, e mais gelada também. Clara esperou o momento certo e, num movimento perfeito, fazendo sua Espada do Pecado surgir em sua mão, a rebateu. E energia se dissipou num estrondo. O ar frio atingindo a súcubo foi como uma nevasca.
O anjo demonstrou alguma emoção pela primeira vez: surpresa. Depois franziu o cenho.
— Demônio de baixo nível, poupe meu tempo e apenas morra sem resistência.
Clara mostrou os dentes como um animal.
— O caramba que eu vou!
Ela pulou sobre ele, movimentando sua Espada do Pecado. O anjo, dessa vez ficou em posição de luta, e o brilho azulado cobriu seus braços, dando a eles um aspecto congelado.
Quando o anjo achou que Clara o atingiria, ela virou névoa, e da névoa desferiu uma tempestade de socos. Golpeava na cara, no estômago, no peito. Seus golpes eram fortes o bastante pra tirar sangue do anjo.
Porém, respondendo à altura, o anjo cintilou como um farol, e foi como se explodisse. Clara foi jogada para longe, retornando a sua forma física.
O anjo preparou a bola de energia. Clara sorriu para ele de uma forma verdadeiramente demoníaca. Foi quando ele sentiu um suave aroma de tutti-frutti, e notou a Espada do Pecado preta e vermelha cravada em seu peito.
A ferida era escura e estava aumentando de tamanho, como uma chaga consumindo-o. O anjo fez uma careta de dor, e então tiniu como metal congelado, e todo seu corpo virou uma estátua de gelo.
Clara foi até ele, de olhar soberbo e nariz empinado. Olhou para ele como se ele fosse um verme.
— A Espada do Pecado de uma súcubo sempre acerta o coração. Nada mal para um demônio de baixo nível, não?
Ela empurrou a estátua de gelo que o anjo havia se tornado, e assim que ela caiu no chão, se partiu em mil pedaços.
***
Renato se ergueu, ainda meio tonto. Sua mão ferida latejava. O sangue, semi-coagulado, estava misturado à areia e pequenas pedras.
Viu uma cena de guerra. Tanto no chão quanto no ar. Espadas se chocavam; pilastras de fogo cortavam os ares. Viu duas aves gigantescas voando juntas. Uma delas disparava rajadas de fogo contra os anjos; a outra, toda feita de ossos, os atacava com as garras. Tinha até o som de uma metralhadora. Renato achou que estava ficando maluco quando viu alguns flocos de neve caindo graciosamente em meio a todo esse caos.
Viu Kazov correndo até ele. Estava todo machucado e sangrando da cabeça aos pés. Renato respirou fundo e se preparou para enfrentá-lo.
— Não! — gritou o reptiliano. — Não vou te atacar! Vamos… vamos fugir daqui!
— A Clara, ela… droga! O que tá acontecendo?!
— Anjos! O Inferno tá sendo atacado! É o apocalipse! Vamos! Vamos fugir! Não é nossa luta!
Correram em direção à saída: aquela grande porta de madeira. Não havia mais soldados protegendo-a. Entraram no túnel.
Um anjo entrou também, seguindo-os. Os dois estavam machucados demais para fugir dele. Estavam sendo alcançados facilmente. Kazov parou.
— Vai, Renato.
— Vamos! Você mesmo disse que …
— Vai logo! Eu sempre… eu sempre quis lutar contra um anjo. Sempre quis matar um desses.
O reptiliano se virou para a criatura alada, que já tinha os alcançado.
Renato quis se juntar a ele.
— Não! Já falei. Foge! Ele é meu.
Renato não queria deixá-lo sozinho, mas estava preocupado demais com Clara. Se tinha algo que aprendera nas reuniões religiosas que faziam no orfanato, era que anjos não seriam amigáveis com demônios. Renato balançou a cabeça, ainda em negação, mas correu, deixando Kazov para trás.
— Sobreviva! — gritou, enquanto corria.
Kazov encarou o anjo diante de si. Olhos sem nenhuma cor. Eram como bolas de água. O brilho que emanava dele iluminava todo o túnel.
— Então serás tu que irá matar-me? — perguntou o anjo, e foi como ouvir a voz de uma multidão, milhares de pessoas falando ao mesmo tempo.
Kazov sorriria, se tivesse condições. Cuspiu sangue no chão. Preparou as garras. Respirou fundo e saltou sobre o anjo. O anjo o segurou com uma única mão, prendendo-o pelo pescoço. Seus olhos sem cor encontraram os do reptiliano, e o anjo quase sorriu de prazer, vendo que ele estava para morrer. Kazov revidou, golpeando com a cauda, com as garras, chutando, mas nada funcionou.
— Gostaria de ver-te morrer lentamente, mas não tenho tempo.
O anjo preparou um soco. O golpe atingiu o tórax de Kazov, e o punho atravessou completamente o corpo dele. Kazov ainda se balançou em espasmos, antes de ficar completamente imóvel.
O anjo jogou o corpo ensanguentado de Kazov de lado e retomou a perseguição a Renato. O garoto não tinha ido longe. Ainda estava nos túneis.
Renato viu o anjo atrás de si, se aproximando rapidamente, então materializou sua Espada do Pecado e, num movimento rápido tentou atingi-lo, mas uma outra espada, com fogo envolvendo toda a lâmina feito uma coroa, bloqueou seu ataque. Quando as duas lâminas se chocaram, a espada de Renato tremeu e tiniu como um lamento. E então ela se quebrou, se partindo em vários pedaços, e Renato foi jogado para longe.
O anjo se aproximou, batendo lentamente as asas transparentes.
— Essa é uma Espada do Perdão, humano. Esta imundície que portas não passa de puro lixo. Porém, infelizmente, vossos pecados são densos demais. Tu estás muito além do perdoável.
Renato cerrou os dentes. A dor era insuportável. Seu corpo estava pesado.
— Acho que quem decide se eu sou perdoável ou não, é Deus, e não você, seu merda!
Renato se ergueu, avançando contra o anjo. Tentando atacar com as mãos nuas.
Porém, o anjo o segurou facilmente. Apertou o pescoço da mesma forma que fez com Kazov. Renato atacou, dando socos, chutes, que não surtiram efeito nenhum. O anjo atingiu um soco na barriga de Renato, e o rapaz sentiu todo o seu corpo amolecendo. O anjo curvou os lábios num sorriso discreto. Os olhos, sem nenhuma cor, nem se moveram.
— Não entendes? És realmente um tolo.
Ainda se engasgando devido ao aperto em sua garganta, Renato conseguiu rir.
— Tolo? E isso por acaso é xingamento? — Renato gargalhou, e o sangue e saliva fizeram bolhas em sua garganta asfixiada — Alado de merda! Enfia um rojão no cu e sai voando!
O anjo bateu as asas. Atravessaram, arrebentando, o teto de pedra do túnel, e subiram até próximo das nuvens. Renato viu aquela gigantesca estrutura redonda flutuando acima de sua cabeça. Em volta, a batalha estava intensa.
O anjo aproximou os lábios dos ouvidos de Renato.
— Eu poderia ter transformado-te em pedaços com aquele soco. Poderias estar morto agora, humano. Mas a morte não paga teus pecados. Precisas sofrer pela eternidade. Tu és a pior coisa de toda a existência. És pior que o Diabo, pior que o Falso Profeta e pior que a Besta que Subiu do Mar. Tu és o verdadeiro mal, e só há um lugar para onde podes ir.
O anjo fez surgir em sua mão uma pequena esfera de energia.
— Tu vais para o esquecimento. Para o Gehenna. Arderás no Lago de Fogo para todo o sempre, amém. Essa é a sentença que recebestes.
— Vai… — disse Renato com dificuldade, engasgando-se no aperto do anjo —… à merda!
— Que abram-se os Portões do Esquecimento! Essa é a verdadeira morte.
O anjo atirou ao chão a pequena esfera de energia. Assim que foi atingido, o chão tremeu como num terremoto, e então uma fenda se abriu, revelando as chamas eternas, num tipo de fornalha subterrânea. Gritos de dor e desespero puderam ser ouvidos de lá de dentro.
O anjo sorriu de forma sincera. Até seus olhos sem cor pareceram brilhar.
— Tu vais à merda também — disse, antes de soltar Renato.
Renato caiu, indo em direção às chamas. Assim que desapareceu dentro da fenda, ela se fechou, e o fogo sumiu, e Renato foi deixado no esquecimento do Lago de Fogo para sofrer pela eternidade.