Pacto com a Súcubo - Capítulo 54
— O plano é simples — disse Hiro, enquanto terminava de mastigar as últimas batatinhas fritas da porção que pediram — O professor tá dando aula num cursinho toda tarde desde que as aulas na escola foram interrompidas. A gente vai esperar ele sair, entrar na casa dele e procurar alguma pista.
Ele pegou seu copo de coca da mesa e levou à boca pra ajudar as batatinhas descerem.
Renato aproveitou pra falar:
— Isso tem uma cara de que vai dar ruim.
— É um plano ruim, mas é o único que a gente tem, e um plano ruim é melhor que plano nenhum — respondeu Hiro. — Pensa, Renato! É como aquelas missões de investigação do filme Gatas e Ladras! É como se a gente fosse um agente secreto com a missão de roubar uma prova importante e incriminar o bandido!
Renato bufou, descontente.
— Eu ainda não vi o filme.
— É sério?!
— Sim. Você perdeu nosso dinheiro numa aposta, lembra? E depois, algumas coisas aconteceram, então…
— Então a gente tem que ir ver hoje! Depois de completarmos nossa própria missão, é claro. O que acham?
— Eu também não vi o filme — disse Tâmara. — Parece legal.
— Eu já assisti, mas assistir de novo com vocês pode ser legal — disse Alicia.
— Então está resolvido! — Hiro assentiu, satisfeito.
— Certo, certo — disse Renato, se espreguiçando e se ajeitando na cadeira de bar. — Mas se o professor dá aula num cursinho à tarde, então a gente tem que se apressar. Porque “à tarde” já vai ser daqui a pouco. E eu não tenho ideia de onde ele mora.
— Isso não vai ser problema — respondeu Hiro. — Nós sabemos! A Tâmara descobriu onde é a casa dele.
— A Tâmara? — Renato lançou pra garota dos olhos âmbares um olhar cheio de interrogações. — É verdade?
— Sim! — respondeu a garota, orgulhosa — Eu só precisei fazer uma busca pela placa do carro dele no banco de dados da Polícia Civil. Descobri tudo: endereço, CPF, número de identidade. Sabiam que ele já foi preso por dirigir embriagado?
— Perai! — Renato juntou as sobrancelhas, perplexo. — Você invadiu o banco de dados da polícia?
— É. É bem fácil, na verdade.
— Hiro, meu amigo, acho que a gente tem uma Agente Secreta de verdade na nossa equipe.
Tâmara riu.
— Eu não sou uma Agente Secreta, seu bobo.
— Isso não é exatamente o que uma Agente Secreta diria?
— Talvez — respondeu ela, com um sorriso no canto da boca, e logo em seguida bebeu um gole de seu suco de laranja.
Renato notou o quanto os olhos dela lembravam o mel. Os hematomas já tinham sumido do rosto. Ela parecia feliz. Estava deslumbrante.
— Bom, como o Renato bem lembrou, não temos muito tempo. Então vamos indo! — disse Hiro, se levantando.
Os outros o acompanharam. Foram até a caminhonete estacionada na frente do bar.
— A caminhonete do seu pai? — Renato ergueu uma sobrancelha. — Mas ele nunca te emprestou ela antes.
— E nem emprestou agora — Hiro gargalhou.
— Pegou escondido?
— Peguei.
— Você é maluco, cara.
— Ele nem vai perceber. Ele só presta atenção no trabalho dele — respondeu, abrindo a porta do motorista e entrando.
Alicia foi na frente, no banco do carona. Renato e Tâmara foram no banco de trás.
— É? E a polícia? Tenho certeza que ela notaria a caminhonete sendo dirigida por um pirralho.
Hiro ignorou o comentário do amigo. Pôs a chave na ignição e deu a partida, e já ganhou a estrada.
— Não precisa se preocupar. Eu tenho isso aqui.
Hiro meteu a mão no bolso e tirou algo.
— Carteira de habilitação? Fez uma habilitação falsa?
— Dur! Não, Renato, eu fiz pão de queijo. A habilitação veio de brinde.
Alicia deu um sorrisinho. Tâmara permaneceu séria.
— E acha que isso vai enganar a polícia? — disse Renato, prevendo o pior. — A gente vai é em cana! No mínimo, vamos tomar uns tapas!
Hiro gargalhou vilanesco, enquanto virava o volante para fazer uma curva.
— Aí é que você se engana, jovem e inculto mancebo. Eu já fui pego pela polícia e eles viram essa habilitação e simplesmente me liberaram.
— Não acredito!
— Também não — disse Tâmara, dando risadinhas.
Hiro deu de ombros.
— Pode ser que eu ter deixado meus trezentos reais de mesada com os policiais, como um presente, pode ter influenciado também. Quem sabe?
— Eu tenho certeza que foi isso!!!
Tiveram que percorrer quase toda a cidade. As ruas estavam bem movimentadas e um tanto caóticas. Três ambulâncias e um carro de bombeiros passaram por eles em velocidade máxima. Alguns quilômetros à frente, descobriram o motivo: um prédio tinha pegado fogo.
Uma multidão se formou em volta. Tinha choro. Gritos. Desespero. Uma mulher idosa estava presa no incêndio, pendurada na janela, se equilibrando no peitoril. O fogo se aproximava. Era lento, porém imparável. Parecia que a idosa iria cair a qualquer momento.
Alícia foi a primeira a fazer um comentário:
— Meu Deus. O mundo parece que tá ficando maluco. E essa loucura tá escorrendo pra nossa cidade, pouco a pouco.
— Tomara que consigam salvar ela! — disse Hiro, apreensivo.
— Para o carro — disse Renato.
— Parar pra quê? O que a gente pode fazer? — Hiro direcionou um olhar confuso para o amigo.
— Apenas pare.
Hiro, meio a contragosto, estacionou na calçada do outro lado da rua. Renato levou a mão à maçaneta da porta. Tâmara o deteve.
— O que vai fazer?
Renato se permitiu um sorriso contido, no canto da boca.
— Rever um velho amigo.
— Que velho amigo? — Hiro arregalou os olhos.
— O fogo.
Ele respondeu e abriu a porta. Saiu do carro, correndo, atravessou o isolamento feito pela polícia, e correu em direção à entrada do prédio.
— Ei, garoto! Espera! — gritou um dos bombeiros. — Não vai pra…! Para, caralho!
Renato o ignorou. Mergulhou no incêndio sem hesitar. Ouviu o crepitar da madeira sendo destruída aos poucos. Foi quando percebeu uma coisa: apesar das chamas brilhantes se erguendo como pilastras infernais e refletindo próximo a seu rosto, devorando tudo ao redor, não havia calor. O fogo até parecia se curvar, evitando o contato com sua pele.
O garoto respirou, inalando a fumaça, e não tossiu. Seus olhos não arderam. Os pulmões não sentiram nenhum incômodo. Renato viu uma pequena chama alaranjada crepitando sobre um raque de madeira, e estendeu a mão para pegá-la. O fogo se enrolou em sua mão como se fosse um cachorrinho, e brilhou alto o suficiente para tocar o teto. Tudo o que Renato sentiu nas mãos foi um leve arrepio.
Viu seu reflexo num espelho coberto de cinzas e fuligem, e percebeu que seus olhos tinham mudado de cor: estavam alaranjados, da cor do incêndio, mas tinha algo de vermelho, como o Fogo Eterno do Gehenna.
Um bombeiro entrou pela porta. Parecia desesperado.
— Ei, garoto! Volta! Você está be… Oh, meu deus! Jesus, Maria, José!
— Volte para fora. Deixe o resgate comigo.
O homem deu um passo para trás e fez o sinal da cruz, antes de correr para fora.
Renato fechou a mão, e o fogo que segurava se apagou, e então ele correu, subindo as escadas. O chão era de madeira, então estava incandescente feito carvão aceso. Mas não havia dor. Ele atravessava as chamas sem medo nenhum; e eram elas que pareciam tentar evitá-lo.
Não demorou para chegar no quarto andar. A porta estava queimada, mas ainda obstruía a entrada, então ele a chutou, e entrou.
— Onde está?! Cadê a senhora? Grite pra eu te achar!
— Aqui! — disse a idosa, com voz falhando, chorosa e tossindo. — Eu tô aqui. Me ajuda, por favor. Eu to quase caindo.
Renato seguiu a voz até um quarto. Entrou. A senhora olhou para ele completamente maravilhada quando ele atravessou o fogo e foi até ela.
— Você é um anjo de Deus?
— Não — respondeu, lhe estendendo a mão.
Ela agarrou sua mão
Renato fez como tinha aprendido na Masmorra das Luzes, com Phenex: primeiro ele visualizou em sua mente o fogo e a energia fluindo dele.
“É meu elemento principal” pensou. E então desejou que o fogo se afastasse, e o fogo se afastou, formando um círculo em volta dele. As chamas brilhando em volta, era como um casulo brilhante se erguendo até o teto.
Renato puxou a senhora pra dentro do casulo, onde o fogo não a alcançaria, e a protegeu entre seus braços. A idosa se encolheu, gemendo de medo. Renato correu, fazendo o caminho de volta.
— Tá quente — gemeu ela, se encolhendo ainda mais.
Renato tentou fazer o fogo se afastar ainda mais deles, mas não conseguiu, então tudo o que pôde fazer foi apressar o passo, enquanto descia as escadas. Não foi tão difícil. A senhora não era pesada.
— Se não é um anjo de Deus, então é do outro lado? — Ela pareceu preocupada.
— Do outro lado?
— É… anjo caído. Do Diabo… ?
— Se eu fosse, o que você ia pensar?
— Nada. Agradeceria do mesmo jeito.
Ele não pode evitar de sorrir.
— Também não sou do outro lado.
A senhora soltou um suspiro de alívio.
Enfim, chegaram na saída. Ninguém acreditou quando os viu sãos e salvos fora do prédio.
Renato pôs a senhora no chão, com cuidado.
— Está bem?
— Estou viva. Obrigada, moço…
— De nada — Renato sorriu. Pela primeira vez em muito tempo, foi de fato um sorriso de felicidade.
Os bombeiros e policiais correram até eles. Renato virou as costas para sair o quanto antes, mas a idosa o deteve.
— Eu vi como o fogo não te queimava. Se não é anjo, nem de Deus e nem do Diabo, o que é você?
— Sou só o Renato — disse, e se virou. — E eu já me queimei demais.
Os bombeiros puseram um respirador na senhora e deitaram ela numa maca. E então procuraram o garoto, mas não o encontraram. Os policiais também tentaram achá-lo, sem sucesso. Ele tinha desaparecido na multidão, encontrado seus amigos, que estavam apreensivos no meio dos curiosos, e voltado para o carro, ignorando completamente as pessoas que diziam coisas como “é ele” e “ei, garoto, o que aconteceu lá?”.
Os quatro ficaram um tempo no mais absoluto silêncio, com a caminhonete ainda estacionada.
Até que Hiro falou:
— O que aconteceu? Renato… você… você fez uma coisa incrível, não fez?
— Ele fez — disse Alícia. — Salvou aquela senhora.
— Renato é um herói — disse Tâmara. — Ele salva as pessoas. Ele fez o mesmo comigo.
— Ah, eu não fiz tanto assim…
— Fez sim. Você me mostrou que nem tudo é dor. Eu só apanhava antes. Apanhava da minha mãe, do meu pai, dos meus tios. E eu tinha certeza que todos eles me amavam. Então, quando eu comecei apanhar do Roger, eu achei que era normal. Você me mostrou que não era. Mostrou que eu não precisava continuar apanhando, e isso me salvou. Eu não entendo porque ele é assim. Não sei como… mas ele é assim.
Renato não soube o que dizer. Ninguém ali soube.
— Sinto muito por isso. — Essa foi a voz de Alícia, que saiu fraca, emocionada.
— Tá tudo bem. Eu tô bem agora. Os machucados já sararam e não doem mais. — Ela levou a mão ao peito, como se algo ainda doesse, mas não disse mais nada.
— Certo, gente — disse Hiro —, temos um serial killer pra pegar.
E deu partida na caminhonete.