Pacto com a Súcubo - Capítulo 56
Nicolas Flamel tinha 13 anos quando teve acesso ao primeiro livro de alquimia. Era filho de um camponês e vivia nos arredores de um castelo. Ajudava seu pai o dia inteiro plantando e colhendo, para no fim deixar quase tudo com o senhor feudal. O senhor feudal, por outro lado, deixava quase tudo com o rei da França.
Por causa do trabalho pesado e comida escassa, ele era muito magro, tinha dedos finos e suas pernas mal podiam sustentar o peso do corpo. Não era nem um pouco diferente de todos os outros garotos do povoado. A única característica marcante que tinha era a curiosidade. A maioria das crianças a perdia no decorrer da infância, mas ele ainda a manteve.
Mesmo com pai analfabeto, aprendeu a ler na marra, sem a ajuda de ninguém. Um dia, enquanto limpava o castelo, ele entrou na biblioteca e encontrou um grimório. O texto explicava alguns conceitos sobre a alquimia praticada no antigo Egito. Não teve tempo de terminar a leitura porque um funcionário do castelo o viu e, de forma a motivá-lo a continuar o trabalho ao invés de ficar lendo, deu-lhe um tapão na cara e o deixou de joelhos sobre pequenas pedras, como castigo por pegar o livro que não lhe pertencia.
Um dia, os ingleses invadiram. Eles diziam que aquela terra na verdade pertencia ao rei de Wessex e que o rei da França havia ocupado ilegalmente. Quem pagou por isso, obviamente, foram os camponeses pobres que não tinham castelos nem muralhas de pedra para protegê-los.
Nicolas Flamel viu sua família inteira ser morta ao fio da espada. Sua irmã gritou antes de morrer, não por medo, mas pela dor que os soldados, sedentos e animalescos, causaram a ela só por diversão.
O garoto implorou a Deus por ajuda, mas não foi atendido. No auge do desespero, implorou ao Diabo. Tal foi sua surpresa ao notar que nem Satanás fez questão de ajudá-lo. Talvez sua alma, pensou, importasse tanto para esses seres quanto a alma de um verme importava para os humanos. Estava sozinho.
E então se lembrou de algo que leu uma vez. Algo sobre sal, e terra, e o sangue de defloração de uma garota virgem.
Se desvencilhando dos soldados com espadas de aço, correu até o esconderijo onde a família guardava os bens mais valiosos, e pegou um punhado de sal que tinham recebido como pagamento pelo trabalho na última semana, e o misturou à terra do chão, e correu pra junto de sua irmã, e molhou a mistura em seu sangue, fazendo uma bola úmida, cujo líquido vermelho escorria por entre seus dedos. E jogou a bola contra o soldado que tinha violentado sua irmã. E o soldado secou, como se todo o líquido de seu corpo evaporasse, e então, com um gemido de agonia, caiu no chão, morto.
E enquanto os outros soldados faziam o sinal da cruz, e acusavam o garoto de ser um bruxo, ele correu o mais forte que conseguiu. E desapareceu na floresta próxima. Na estrada que percorreu, de vez em quando via uma cena de chacina. Pessoas enforcadas, com corvos lhes arrancando os olhos e abutres comendo suas carnes, eram cenas comuns. A guerra só ficou mais intensa com o tempo, e ele sobreviveu como pôde.
Bebeu água dos riachos e comeu os pequenos animais que encontrou, enquanto fugia dos grandes. Embora não fosse um grande atirador, tinha aprendido a usar o arco com seu pai, e esse conhecimento garantiu que ele sobrevivesse nas noites de tempestade e fome.
Assim que chegou a Paris, depois de semanas de caminhada, finalmente teve alguma paz. Só então pôde dormir, e ficou livre para ter os pesadelos que o acompanhariam pelo resto da vida.
Enquanto crescia, trabalhou numa taverna, servindo cerveja e cuidando do estábulo, até conseguir trabalho numa biblioteca anos mais tarde. Usava o dinheiro para duas coisas: transar com prostitutas e comprar livros de alquimia. Em algum momento, reencontrou aquele grimório do castelo circulando num mercado ao ar livre que funcionava ao lado do rio Sena. Custou o dinheiro equivalente a 20 dias de trabalho ( ou duas prostitutas de qualidade), mas mesmo assim Flamel o comprou.
A verdade é que a maioria dos feitiços descritos no grimório precisava de ingredientes que não se achava em canto algum da França. Então Flamel juntou o pouco dinheiro que tinha e partiu numa viagem.
Saiu numa caravana em direção à Spania, que na época era composta por diversos reinos independentes. Vários deles em guerra. Não era bom com a espada, e errava a maioria dos tiros com arco e flecha, mas os encantamentos que tinha aprendido lhe garantia a sobrevivência.
Aprendeu que se misturar salitre, enxofre e carvão, poderia produzir fogo com facilidade e causar uma pequena explosão. O barulho espantava animais selvagens, e o fogo podia ser usado como arma ou para preparar comida.
Foi na Spania mesmo que viram seus talentos e quase o queimaram na fogueira acusando-o de bruxaria.
Conseguiu chegar ao estreito de Gibraltar e, lá, pegar um navio para a costa africana. Conheceu Constantinopla, Egito, passou semanas no deserto do Sahara. Depois foi para a Ásia. Visitou a Pérsia, Índia, Nepal e até a China. Em todos os lugares que conhecia, aprendia mais sobre alquimia. Cada uma dessas culturas tinha algo diferente para acrescentar ao seu vasto conhecimento.
Desde o hermetismo, com suas leis sobre mente e o universo, até ensinamentos de Buda e do Dao chinês.
Entendeu que a verdadeira transmutação não era a transformação de metais comuns em ouro, mas a da mente e do corpo. Finalmente, nos confins do mundo, numa vila esquecida no alto das montanhas congeladas da China, leu sobre o elixir da imortalidade.
Teve que enganar um demônio para conseguir o principal ingrediente. Evocou a criatura numa noite de lua de sangue, e usando uma barreira enoquiana invertida, o manteve preso, depois o matou com uma lança amaldiçoada que, segundo a lenda, foi a mesma usada para matar Jesus Cristo. Quando arrancou o coração da criatura do peito, ele ainda batia.
E então, após dizer as palavras em enoquiano, um idioma tão antigo quanto a própria Criação, ele comeu o coração que, nem mesmo depois de ser mastigado e engolido, parou de bater. Depois disso, Nicolas Flamel não envelheceu mais.
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Flamel suspirou e pôs o copo de uísque sobre o balcão. Acendeu um cigarro e tragou.
Correu os olhos por toda a oficina. As prateleiras estavam empoeiradas, cheias de tralhas que ele nem lembrava mais pra que serviam. Eram as evidências de sete séculos de acúmulos.
As paredes brancas, sujas com graxa, cheias de equações escritas à caneta, também evidenciavam isso.
— Eu tô cansado…
Foi até uma das janelas, que era toda feita de vidro, e olhou por ela, enquanto tragava o cigarro.
“Acho que ela chegou” pensou. “Droga. Quem poderia imaginar? Não dá pra acertar todas, afinal.”
Ele tinha traído Clara. Ela o procurou, querendo comprar um dispositivo que a ajudasse contra o Mercenário Possuído; mas acontece que o mercenário sempre foi um cliente melhor. Então ele entregou os planos da garota para Lukin. Ele não imaginava que Lukin pudesse ser derrotado. E agora, aparentemente, a súcubo vinha até ele. Ela nunca foi do tipo que perdoa.
Deu mais um trago no cigarro.
Lá embaixo, os carros passavam, buzinando uns para os outros, as pessoas estavam frenéticas, tão envolvidas em suas questões mundanas, que nem percebiam o que acontecia bem diante de seus olhos: o mundo estava chegando ao fim. Muita coisa tinha saído do Gehena e entrado na Terra.
De nada adiantava toda a correria, todo o trabalho, todo o esforço em ser alguém na vida. Tudo seria reduzido a pó e cinzas dentro de pouco tempo. Em todo esse tempo de vida, Flamel percebeu que só uma única coisa importava:
— Família… sinto falta de vocês. Meu pai, minha mãe… minha irmã. Estão todos mortos, as pessoas que conheci, que amei, que odiei, as prostitutas com quem dormi, os professores que me ensinaram, pessoas de quem tive inveja. Todos… todos mortos. Não sobrou nada além de lembrança e saudade.
“Ela chegou”. Ele meteu a mão no bolso da calça e pegou o pequeno controle. Apertou o botão.
E então a porta se abriu e Clara Lilithu entrou por ela.
— Olá, Flamel.
— Bonjour, sucubbe.