Pacto com a Súcubo - Capítulo 61
— Mas.. — Renato fez uma expressão confusa. — Te odiar? Eu não… tô entendendo.
— Entre.
Tâmara abriu a porta. Não tinha nada demais. Era uma casa comum.
— Senta um pouco. Eu vou pegar uma bebida.
— Certo…
Renato sentou-se no sofá. Sobre a mesinha da sala, tinha um livro cujo marcador de páginas estava mais ou menos pela metade: “Precisamos Falar Sobre o Kevin” era o título.
Ele achou que Tâmara estava um pouco esquisita; os olhos âmbares pareciam mais duros, mais selvagens. Embora o sorriso estivesse tão bonito como sempre foi, não parecia o mesmo sorriso. Tinha um toque de amargor, ou azedume.
Ela voltou com dois copos de suco de laranja, desses comprados de caixinha, e entregou um para Renato. Em seguida, sentou no outro sofá, de frente para ele.
— Poisé… — disse Renato, coçando a bochecha, tentando quebrar o gelo —, o tempo tá bonito hoje, né…
Tâmara suspirou.
— Eu tenho um presente pra você, Renato. Algo pra demonstrar minha gratidão. Eu tava com medo de te dar, mas não tenho mais. Não depois do que eu vi hoje. Você não é tão diferente de mim, eu acho.
— Um presente? Que presente? — Renato ergueu uma sobrancelha.
— Há onze anos atrás, três bandidos entraram numa casa, mataram o pai e a mãe, enquanto um garotinho assistia tudo, escondido dentro de um armário.
— O qu… — Renato travou. Ele pôs o copo de suco sobre a mesinha, ao lado do livro, e engoliu a saliva. Seu coração acelerou e suas mãos começaram a tremer.
— Nunca pegaram os culpados. O garoto foi deixado num lar para crianças, até ser adotado algum tempo depois. Deve ter sido horrível. É o tipo de coisa que muda a gente pra sempre, não acha?
Renato respirou fundo, puxando o ar com dentes cerrados, e depois expirou. E direcionou a Tâmara um olhar neutro, sem qualquer emoção; e sorriu de um jeito amargo.
— Como sabe disso? E mais importante: por que tá me falando isso? É algum tipo de brincadeira? Tá se divertindo enquanto revira as feridas de alguém desse jeito?
— Não! De Jeito nenhum! — Ela se inclinou em direção a ele, parecendo até um pouco abalada com as palavras dele. — Eu.. quero te dar um presente! Já te disse!
— Ainda não entendi seu presente.
— Gostaria de se vingar?
— Hum? — Ele franziu o cenho.
— E se eu dissesse que achei um deles? Hein? E que ele tá acorrentado aqui em casa só esperando por você? O que faria?
Renato chegou a sentir falta de ar. Seu cérebro não estava conseguindo processar as coisas direito.
— É algum tipo de brincadeira bizarra? Porque se for, não tem graça nenhuma.
— Já disse que não é brincadeira, droga! — Ela até pareceu um pouco ofendida. — Você fez muito por mim, Renato! E eu quero fazer algo por você também!
Ele ficou mudo. Suas palavras entalaram na garganta. Ela continuou:
— Eu só achei um deles. Bom, na verdade achei dois, mas um deles já está morto. O outro ainda tá sumido.
Tâmara se levantou e estendeu a mão para Renato.
— Eu te mostro.
Renato segurou em sua mão e a seguiu. O corpo parecia formigar, a mente estava anuviada. As pernas apenas se moviam roboticamente.
Tâmara o levou até o quarto. Ao lado da cama, tinha um guarda-roupas grande, desses que ocupam quase uma parede inteira. Ela abriu uma das portas do móvel e, na parte de baixo dele, na base, ela pôs a mão sobre uma ripa de madeira e a puxou para o lado, revelando um alçapão escondido.
Ela olhou para Renato, tentando decifrar sua expressão. Agora não dava mais pra voltar atrás.
— Vem.
Descendo o alçapão, tinha um túnel e uma escada que levava até o subsolo.
Desceram.
Chegaram num tipo de corredor escuro e apertado. Tâmara foi até a parede e acionou o interruptor. A luz se acendeu. Renato percebeu que uma das paredes parecia feita de vidro, e do outro lado, colada ao vidro, tinha um tipo de espuma, o que impossibilitava ver além dela.
Tâmara pegou a chave e abriu um cadeado, segurou a maçaneta e correu toda a parede de vidro para o lado, revelando um quarto secreto encoberto pela penumbra. Gemidos de dor chegaram até seus ouvidos. Assim que entraram, Tâmara rapidamente puxou a parede de vidro novamente, fechando a entrada. Teve que acender a luz novamente.
E então Renato viu com clareza. Correntes desciam do teto, e, nas pontas das correntes havia anéis de ferro, e os anéis de ferro estavam presos aos pulsos de um homem, como grilhões. Ele estava com o corpo mole, meio de pé, meio sentado, numa posição que ficava parecendo uma vírgula, pendurado, com os braços pra cima. Seus pulsos estavam machucados, arroxeados e com sangue seco preso à pele. Usava apenas uma calça velha, e gotas de suor escorriam de sua barba rala e falhada e dos pelos em suas axilas e peito.
O homem gemeu de dor e movimentou os braços, como se, instintivamente, tentasse se soltar. Então, ergueu os olhos em direção a Renato. Moveu os lábios, mas nenhum som saiu de sua boca. Depois, correu os olhos de Renato para Tâmara, e foi como se seus olhos transbordassem de medo. Ele se debateu, puxou os braços; as correntes tilintaram, mas nada além disso aconteceu. E então ele gritou.
— Socorro! Me ajuda! Socorro! Não chega perto de mim, sua vadiazinha maluca!
Tâmara suspirou e sorriu, e seu olhar até pareceu ter alguma piedade.
— Ah, bobinho, já disse que não adianta gritar. — Então tirou os olhos dele. — Ei, Renato, sabia que esse lugar é isolado acusticamente? Ele pode gritar à vontade que ninguém vai escutar. Ninguém vai vir e nem atrapalhar. Somos só nós dois e ele. Legal, né? — O tom de voz que ela usou foi quase como se estivesse se gabando.
De fato, o local era todo vedado e havia uma espuma colada às paredes e ao teto.
— Reconhece? — Tâmara direcionou a Renato um olhar alegre. Ela estava a ponto de dar pulinhos de felicidade. Finalmente teve coragem de fazer o que vinha planejando há bastante tempo.
Ele olhou para o homem acorrentado e não teve dúvidas. Não tinha como ter esquecido! Era o mesmo homem que atirou em seu pai. Ele se lembrava em detalhes, até mais do que gostaria, porque reviveu a cena muitas vezes em seus pesadelos, principalmente aquele segundo exato em que os olhos de seu pai perderam o brilho.
— Reconheço.
A garota sorriu e não se conteve. Deu um pulinho, feliz, e chegou a bater palmas duas vezes
— Que bom! Que bom que se lembra, Renato! Ele é meu presente pra você! Só pra você! Eu o peguei e trouxe pra cá, só pra você! Tenho facas, tenho ganchos, tenho serras, tenho gasolina e fósforo. — Ela mordeu as unhas, num misto de nervosismo e empolgação. — Ele é todo seu, mas se você me deixar brincar também, eu ficaria feliz.
— Todo meu?
Renato, sem nem mesmo perceber, deu dois passos em direção ao homem, e estendeu a mão, quase tocando-o.
— Eu quero matá-lo. Quero matá-lo com muita dor.
Tâmara bateu palmas e riu alto.
— Isso! Vamos fazer isso! Ele merece, não merece?
— Merece.
— Por favor, cara, me tira daqui! Quem… quem é você? — A voz do homem saiu baixa. — Eu nem sei quem é você… por favor, me ajuda! Essa menina, ela é… ela é maluca. É cruel. Me tira daqui.
— Tirar? Você não sabe quem eu sou, sabe? — A voz de Renato, por outro lado, saia firme, porém falhava às vezes. — Você matou meu pai. Matou minha mãe.
— Eu nem te conheço! — O homem estava a ponto de chorar.
— Mas eu te conheço. Onze anos atrás, você e mais dois homens invadiram a minha casa. Vocês atiraram no meu pai. Sabia que eu lembro do exato momento em que os olhos dele se apagaram? Nunca vou esquecer. Também me lembro de cada traço do rosto de vocês três. Nunca me esqueci. Meus pesadelos e meu ódio não me deixaram esquecer. Vocês machucaram minha mãe, mataram ela, e levaram alguma coisa. Acho que era dinheiro. Vocês destruíram minha família por causa de… dinheiro.
— Eu não sei do que você tá falando. Não me lembro de você e nem dos seus pais. Por favor… me perdoa. Me deixa ir — choramingava, com lágrimas correndo dos olhos e bolhas de muco descendo das narinas.
— Não se lembra? Isso só me deixa com mais raiva.
Renato pensou em sua Espada do Pecado, e desejou que ela surgisse em sua mão. Sentiu um formigamento entre os dedos e a palma, e parece até que saíram faíscas, mas a espada não apareceu. Mas a névoa negra e gelada começou a se desprender de sua mão, serpenteando pelo ar, em volta de seu braço, se ergueu.
Renato fechou os punhos. A temperatura estava caindo conforme mais névoa se acumulava. Até que um fio dessa névoa deu voltas em volta da lâmpada, como uma jibóia se enrolando num rato, e o vidro da lâmpada trincou, e a luz se apagou.
— Sabe, eu conheço algumas pessoas do andar de baixo. Você vai queimar no Inferno, e quando pensar que seu sofrimento chegou ao limite, quando achar que não existe dor maior do que aquela que estiver sentindo, eu vou te visitar no meio do fogo e do enxofre, e vou pessoalmente garantir que o Inferno se torne um lugar ainda pior para você — disse Renato, no ouvido do homem.
Tudo o que o homem sentia era um frio insuportável e o completo desespero subindo por seu corpo, fazendo os pelos se eriçaram, como os pelos de uma presa apavorada diante do predador. O coração, num ritmo completamente sem sentido, parecia em dúvida se acelerava ou parava de bater de vez. Ele só tinha uma certeza: estava diante de uma verdadeira Escuridão.
— Queime — disse a voz gélida de Renato.
E na mesma hora, uma fagulha brotou das costas do homem acorrentado, e faíscas começaram a se derramar sobre ele, como as faíscas de palha de aço queimando. Era como uma lâmina brilhante cortando o escuro completo do quarto.
E o homem gritou. De dor. De medo. De arrependimento. Enquanto o fogo se tornava cada vez maior. Até que ele foi completamente coberto pelas chamas, e brilhava como um cometa. O cheiro podre de cabelo queimado empesteou o quarto. E o fogo entrou por sua boca aberta que gritava, e queimou as cordas vocais, e desceu em direção ao estômago e intestinos. E o homem assou por dentro e por fora.
Foi rápido. Pois o fogo não era comum, mas da mesma natureza daquele encontrado no Inferno. Alguns minutos depois, tudo o que havia eram as cinzas enegrecidas, no formato do homem, como uma estátua, e o cheiro de carne queimada. E a estátua de cinzas se quebrou na parte dos pulsos, onde estava suspensa pelos grilhões de ferro, e desmoronou, e se tornou apenas pó.