Pacto com a Súcubo - Capítulo 62
Assim que a estátua de cinzas se quebrou e se tornou apenas um amontoado de pó fumegante, a névoa escura que emanava de Renato se dissipou, e, como se levada pela brisa, desapareceu. E a lâmpada acendeu novamente, como por mágica, devolvendo a luz àquele quarto secreto.
Tâmara encarava Renato e o monte de cinzas diante dele sem acreditar nos próprios olhos. Ela nunca tinha visto algo assim. Até os ossos viraram pó, e tudo em questão de minutos. O fogo tinha ficado totalmente concentrado no homem, e nem sequer chegou a beliscar a espuma no teto e nas paredes próximas.
Havia, é claro, preparado algumas coisas doidas e homicidas pra fazer, mas isso a pegou completamente desprevenida. Não estava horrorizada, ou assustada, nem nada do tipo. Ela até tinha gostado. Nunca tinha visto uma pessoa queimando até a morte, e a opinião dela era que “até que teve estilo”. Mas, ainda assim, estava intrigada, curiosa sobre como algo desse jeito foi possível.
— Como você fez isso?
— Eu preciso de um copo de vinho — disse Renato, com voz baixa, quase um sussurro, e sem olhar para a garota, saiu do quarto secreto e subiu as escadas.
— Hã? Vinho? Eu não tenho, mas dá pra comprar… — Ela correu atrás dele.
*
Tinha uma mercearia ao lado da casa de Tâmara, então Renato disse que ia lá buscar uma garrafa de vinho, mas ela não deixou. Disse que ele era convidado, e que, portanto, seria ela quem iria. Renato não protestou e, enquanto esperava, sentou-se mais uma vez no sofá. O livro “Precisamos Falar sobre o Kevin” ainda estava sobre a mesinha.
Suspirou pesadamente. Lembrou-se de sua família. Sua cabeça fervia de pensamentos e lembranças. E havia aquela raiva. Às vezes ele até se esquecia que ela estava ali, latente, esperando a hora certa de agir. Porém, ela nunca o deixou. Aparentemente, nunca o deixaria. Era sua companheira mais íntima.
“Acho que não tenho mais lágrimas restando em meus olhos” pensou consigo mesmo. Ele já tinha chorado de tristeza, de raiva, de saudade, mas dessa vez foi diferente. As emoções ainda estavam ali, mas preferiam se manter escondidas no escuro, fingindo que não existiam, do que dar qualquer sinal externo de sua presença.
— Voltei. — Tâmara entrou, saltitante, segurando uma sacolinha plástica entre os dedos. — Só tinha desse vinho. Serve?
Ela tirou a garrafa da sacolinha e pôs sobre a mesa.
— Eu adoro esse.
— Que bom! Vou buscar os copos. Não tenho nenhuma taça, então…
Ela pôs os copos sobre a mesa e direcionou para Renato um olhar furtivo, cheio de curiosidade. Eram bonitos, lembravam o mel.
Renato serviu os copos.
— Acredita que eu nunca bebi vinho? — disse ela. — Que gosto tem?
— É difícil descrever. Só dá pra saber provando, eu acho.
— Eu nunca bebi nada alcoólico. — Ela deu de ombros. — Deve ser trauma, eu acho. Meu pai bebia e… bom… nunca acabava bem.
— Algumas pessoas não deviam beber — disse Renato, levando o copo à boca.
— Verdade.
O líquido desceu suave por sua garganta. Foi reconfortante. Todos os sentimentos destrutivos pareceram amenizar. Até a raiva se acalmou.
Tâmara também bebeu um gole. Foi mais tímida, porque tinha medo de não gostar, mas até que não achou ruim.
— Renato, o qu…
— Por favor, por enquanto eu só quero beber esse vinho em silêncio.
— Certo.
O silêncio durou alguns minutos. A garrafa já estava quase no fim. Tâmara, de golinho em golinho, tinha bebido um copo inteiro.
— Renato… o que aconteceu lá embaixo? Como fez aquilo?
— Quantas garotas da nossa idade tem homens acorrentados em porões secretos?
Ela sorriu.
— Quantos garotos da nossa idade queimam homens até virarem pó?
— Acho que um.
— E eu acho que uma.
— Você disse que tinha facas, serras, algo assim, não disse?
— Tinha gasolina também. E você nem usou…
— Tâmara…
— Sim?
— Foi você quem viu o professor com a menina que apareceu morta, não foi?
— Foi.
— E também foi você quem encontrou as mechas de cabelo na casa dele.
— Sim.
— Tâmara.
— O quê? — Ela o encarou com olhos faceiros. — Vai pedir pra eu tirar a roupa? Oh, não! Pervertido! — Ela gargalhava. — Não é assim que aquelas meninas dos animes que você gosta falam?
— Diz pra mim que não mandamos pra cadeia um homem inocente.
Ela riu e serviu o vinho restante em seu copo.
— Ah, Renato, e quem é inocente? Não existe nenhum ser humano na face da terra que possa ser chamado de inocente. Somos todos culpados por alguma coisa.
— Não mete essa! Você sabe o que eu quis dizer! Ele… não foi ele, não é? Foi você. Você matou todas aquelas pessoas.
A garota dos olhos âmbares ficou em silêncio alguns instantes. Suas bochechas coraram e ela desviou o olhar.
— Ai, assim eu fico tímida! Não me encara desse jeito, bobinho!
— Foi você?
Ela ergueu os braços e se espreguiçou.
— Caramba! Como é bom finalmente tirar esse peso das costas! Eu mal conseguia me conter perto de você! Eu precisava te contar logo! Precisava que você soubesse! — Ela subiu em cima da mesinha e se aproximou de Renato. — Você é muito lerdo, sabia? Sabe como eu me senti?
Renato não soube quais palavras dizer. Ficou em silêncio, apenas ouvindo. Tâmara continuou:
— Eu esperei pelo dia em que você entenderia tudo e viria até mim, e me abraçaria. Sonhei com isso tantas vezes! Mas você não veio. Por que não veio? Por que me fez esperar tanto? Eu até tive que recomeçar! Sabe o trabalho que dá sequestrar uma pessoa e matar ela? Sabe o risco que eu corri?! E você nem se preocupou em vir até mim, seu ingrato. — Ela curvou os lábios num sorriso cheio de afeto. — Mas finalmente veio. Agora eu não vou mais ficar sozinha! Ah, quando eu vi você matando aqueles homens no cinema, meu coração se encheu de alegria, porque naquela hora eu soube que você era igual a mim.
Renato estava chocado com tudo o que ouviu.
— P-por que você fez isso? Por que matou todas aquelas pessoas, Tâmara?
— Oras, porque uma carta de amor comum seria muito pouco para o tamanho do amor que eu sinto por você. Você entende, Renato? Minha vida inteira foi só sofrimento! Todos os que diziam me amar, apenas me machucaram: meu pai, minha mãe, meus tios, meu ex-namorado. Todos eles só me machucaram! Me batiam enquanto diziam palavras bonitas. Mas aí você apareceu e me mostrou um pouquinho de gentileza real. Como eu poderia não me apaixonar por você? Gentileza, bondade, realmente existem no mundo! Foi isso que você me mostrou! Entende que uma carta comum não serviria? Por isso eu fui criativa. Matei várias pessoas e escrevi em seus corpos, para serem encontrados, versos do meu poema de amor preferido. Essa é a carta de amor mais épica de todas! E será a mais lembrada! A carta de amor suprema! Saiu nos noticiários, todos falavam dela, todos temiam fazer parte dela! Foi incrível! E tudo só por você, Renato! Eu até preparei aquele presente no porão. Porque meu amor por você vale mais do que todas as vidas do mundo!
— Tâmara!
— E então, você gentilmente me acompanhou até minha casa e…
— Tâmara!
— E eu pude ver nos seus olhos que você é…
— TÂMARA! — Renato gritou.
Ela ficou em silêncio e olhou bem no fundo dos olhos dele. E sorriu com ternura. E acariciou a bochecha de Renato com a ponta dos dedos.
— Sim, meu amor?
Ele tirou a mão dela de seu rosto e se afastou. A garota franziu o cenho, confusa.
— Você precisa confessar à polícia!
— O quê? Mas já tá tudo resolvido! Eu sei que você tá preocupado comigo; tem medo de que eles me achem, mas tá tudo bem. Meu plano pra botar a culpa no professor foi perfeito. Eles não vão nos descobrir, Renato. Todo mundo já suspeitava dele mesmo! Estamos seguros.
— Não! Não podemos deixar uma pessoa inocente na cadeia!
Ela franziu o cenho novamente, sem entender.
— Mas por quê? Vai tudo ficar bem. Já deu certo! Nada mais pode dar errado pra gente.
— Não é certo! Você não entende que não é certo?
Ela, ainda confusa, começou a parecer desesperada com a reação dele.
— Eu compro vinho! E doces! Biscoitos e salgadinhos! E a gente pode virar a noite toda assistindo anime! O que acha? Você gosta disso, não gosta?
— Tâmara… não podemos.
Ela baixou o rosto para esconder as lágrimas que queriam brotar. Suas mãos tremiam. O coração batia forte.
— Mas… eu não aguento mais ficar longe de você. Preciso de você comigo. Você é a única coisa boa que já entrou na minha vida.
— Se você não contar à polícia, eu conto.
— Renato! — Ela chamou pelo nome dele, mas ele já estava saindo pela porta.
— Espera!
Ele correu o mais rápido que conseguiu. Queria se afastar. Não suportava olhar para ela, porque, de certa forma, ele sentia pena. E, verdade seja dita, ele gostou de rever o assassino de sua família.
Assim que Renato desapareceu através do portão, Tâmara apenas permaneceu deitada no chão, em posição fetal. Não derramava lágrimas. Estava em completo silêncio
“Aquelas amigas dele. É culpa delas. Elas querem roubar o Renato de mim! Eu preciso trazê-lo de volta! Preciso trazê-lo pra mim. Quem ficar no meu caminho vai morrer” esses pensamentos reverberavam em sua cabeça em loop.
Uma brisa diferente começou a correr dentro da casa, e as sombras pareciam se contorcer em si mesmas.
A raiva aumentou dentro de Tâmara exponencialmente, a ponto dela socar o chão com força, e gritar:
— AAARRG! Eu vou trazer o Renato pra mim mesmo que seja à força! Vou matar qualquer um que tentar me atrapalhar!
— Que coisa interessante de se ouvir.
Tâmara se assustou e olhou na direção da voz. Havia um homem. Ele era baixo, talvez não tivesse mais do que um metro e sessenta, e usava um par de óculos de grau. Mas algo na aparência dele parecia horrenda. Vultos e espectros de rostos em desespero pareciam rodeá-lo, sibilando e sussurrando palavras de agonia.
— Quem é você? — disse ela, com dentes cerrados.
— Abigor, a seu dispôr. — O demônio fez uma mesura.