Pacto com a Súcubo - Capítulo 64
Renato continuou correndo por um tempão. Ignorou os pedidos de Tâmara para que parasse. Queria se afastar dela.
Seus pensamentos estavam confusos. Ele tinha acabado de matar aquele que lhe causou sofrimento desde sua infância. Sua família foi vingada! E era graças à Tâmara.
Aquela garota foi gentil com ele desde o início. Sempre o admirou. E ele a abandonou. Simplesmente virou as costas e fugiu. Renato se sentiu um tolo. A garota era uma assassina! Mas ele próprio também não era um? Ele não fez aquela escolha, diante de Arimã, que causou, e continuava causando, tantos desastres na Terra? Alguma coisa pode até ter fugido do Gehenna por causa dele.
Mas não era só isso. Mesmo que ele fosse culpado de tudo, ele aceitava a culpa de peito aberto. Não fugia dela. Não a jogava em outro. Tâmara pôs a culpa em um inocente! E o pior: ela sequer entendia o porquê disso ser algo ruim. Renato não conseguia entender e nem conseguia lidar com isso. O fato dele próprio ter sido um dos responsáveis por condenar o professor o corroía por dentro.
“Preciso fazer algo!” pensou. Parou sob a sombra de uma árvore e tomou ar, sentindo a brisa no rosto. O dia estava chegando ao fim. O sol se escondia no horizonte, jogando sobre o céu uma tonalidade avermelhada;
Pegou o celular e procurou pelas notícias. Uma manchete dizia: “Assassino do Soneto é preso! Provas foram encontradas na casa de professor graças à denúncia anônima.”
Renato digitou 190 no celular e fez a chamada.
— Polícia Militar emergência.
— O professor, ele não é culpado. As provas são falsas.
— Hã? Qual a emergência?
— O professor que foi preso. Ele não é culpado.
— Garoto, passar trote pra polícia é crime! Se continuar, vamos encaminhar uma viatura até sua residência e te autuar em flagrante — respondeu a atendente e desligou o telefone.
— Droga! Mas que merda! — praguejou Renato. — O que eu faço…?
*
O garoto chegou ao predinho. Estava cansado, sujo de poeira e suor, com a camiseta rasgada na parte das costas devido ao tiro e suja com sangue seco.
Passou pelo estacionamento, onde viu o camaro branco com o teto arrancado, em meio aos outros carros, e subiu as escadas. Seus passos eram lentos; a cabeça fervilhava.
Passou pelo andar do estande de tiros e chegou ao piso onde ficava a sala de estar e demais cômodos. Lá, viu Clara e Jéssica de pé; estavam quase tão sujas quanto ele, e conversavam com Mical.
Renato notou os arranhões pelo corpo de Clara, e seu vestido preto estava rasgado em alguns pontos, expondo um pouco de pele, e também tinha uma mancha de sangue sobre o tecido que cobria seus quadris e coxa.
— O que aconteceu com vocês? — Renato ergueu uma sobrancelha.
Clara sorriu.
— Um dia de cão. E com você? — Ela inspirou o ar, para demonstrar que tinha sentido o cheiro de sangue.
— Um dia de cão também.
Jéssica correu e saltou sobre ele, jogando os braços em volta de seu corpo, num abraço apertado.
— Huaa, Renato, eu tive tanto medo! — choramingou ela. — Tanto medo! Essa súcubo me levou por perigos intermináveis. Tudo o que eu queria era você lá comigo!
Mical se apressou e se agarrou a ele também, abraçando-o pelas costas.
— Renato, o que houve com você? Quem te machucou? Deixa que eu cuido de você! Meus cuidados são milagrosos!
O garoto ficou no meio das duas meninas, sendo pressionado por seus corpos, como o recheio de um sanduíche.
Clara pôs as mãos entre eles e os separou, nada amigável.
— Uhum! — pigarreou — Mical, você não estava falando algo sobre a garota gato?
A garotinha dos olhos verdes demorou alguns segundos para se recompor e lembrar do que Clara estava falando.
— Ah, é! A maldição de dor que aflige ela! Eu consegui ver! Consegui sentir! — Ela dava pulinhos, não conseguindo conter a euforia.
— Sentiu? — Clara franziu o cenho?
— Sim!
— Já te disse, súcubo — interferiu Jéssica —, eu e minha irmã temos uma intuição sobrenatural. É como uma benção. Foi assim que soubemos que o Renato não era do mal.
Mical pareceu suspeita, tocando os indicadores.
— Pois é, né? A gente até desconfiou dele um pouco, e tal… mas isso era só porque ele parecia… cê sabe… — A voz dela foi sumindo, enquanto ela parecia cada vez mais culpada de alguma coisa.
Jéssica a interrompeu.
— Sobre a garota gato? O que estava falando sobre a garota gato?
— A maldição dela! — Mical retomou a empolgação. — É como um feitiço maldito que a envolve! Tem cheiro de podre e de enxofre! Mas não tem nenhuma inteligência mantendo isso! É como se o feitiço agisse por conta própria, sabe? Ele está apenas seguindo o que foi programado para fazer de forma automática. Igual…
— Uma maldição autônoma — concluiu Jéssica.
— Isso! Uma maldição autônoma!
Clara franziu o cenho.
— Maldição autônoma? Nunca ouvi falar nesse tipo de coisa.
Mical prosseguiu:
— Livro do Exorcista, capítulo 33: maldições autônomas. Se lembra, Jés?
A irmã mais velha sorriu.
— E como não me lembraria? Estudei esse livro por noites e mais noites.
— Então sabe onde quero chegar, não sabe?
— Sim. A Pedra Fundacional.
— Exato! Talvez a maldição de dor possa ser removida usando a Pedra Fundacional! Funcionaria como um exorcismo simples em grau autônomo!
Jéssica movimentou a cabeça, em sinal de positivo.
— Faz sentido. Pode funcionar. Mas, tem um problema…
— Eu sei.
— Problema? — Clara franziu o cenho? — Que diabos é essa Pedra Fundacional?
— Pedra Fundacional é uma pedra abençoada pelos anjos. Na verdade, segundo o que dizem, é um pedaço da Pedra Fundamental de Jerusalém. Todo Priorado da Cruz do Atalaia tem uma. É o coração do Priorado. É ela que mantém o Priorado afastado das maldições e presenças malignas.
— Sim — continuou Mical —, ela tem propriedades sagradas. Já vi ela ser usada para extinguir maldições. Deve funcionar com a demi-humana!
— Suponho que os atalaias não vão nos dar essa pedra de boa vontade — disse Clara.
— É verdade — concordou Jéssica.
— Então vamos tomá-la à força — disse Renato.
Clara assentiu.
— Embora fazer mais favores àquela demi-humana não seja nenhuma prioridade minha, eu não recuso uma oportunidade de matar uns atalaias.
Jéssica engoliu em seco.
Mical tomou a frente:
— S-se possível, eu gostaria de não matar nenhum deles! A gente poderia usar um gás do sono, ou algo assim…
— E qual seria a graça disso? — Clara lhe direcionou um olhar de soslaio.
— Depois a gente acerta os detalhes — disse Renato. — Tem mais uma questão que eu quero resolver.
— E o que seria? — Clara tirou um pacotinho de halls da bolsa e pôs uma balinha na boca. Depois entregou o pacotinho aos outros, começando por Jéssica.
— Tem alguém preso injustamente e eu quero soltar.
— Ah, mas isso não tem nenhuma complicação. É só arrebentar os muros da prisão e soltar, ué.
— Mas quero que ele tenha uma nova vida. Não quero que ele seja um fugitivo — disse Renato, pondo uma balinha na boca.
— Aí complica um pouco mais. Bom, documentos falsos são fáceis de arranjar.
— E também prefiro não matar todo mundo na delegacia.
Clara bufou.
— Mas vocês são uns molengas! Tudo bem, mas se eu perder a paciência por qualquer motivo, eu entro lá em mato todo mundo! Vai ser a maior chacina!
— Ok.
— Quem quer tirar da cadeia, Renato? — perguntou Jéssica.
— Um professor. E eu tenho parte da culpa dele ter sido preso. Então quero soltar.
— Talvez eu tenha a chance de testar aquela bazuca! hehehe — Mical tinha um sorriso malicioso no rosto.
Clara olhou de soslaio para ela.
— Não era você quem estava toda preocupada com as vidas inocentes?
— Ah, é, bom… só vou usar se precisar… — ela desviou o olhar.
Clara a encarou desconfiada.
— Tudo bem, eu sei exatamente o que fazer.
— Sabe?
— Sei, sim, Renato. Nunca subestime uma súcubo precavida. E só vamos precisar de duas coisas. Eu tenho andado pela Terra há bastante tempo, sabia? Então é natural que eu tenha algumas coisinhas guardadas. Venham comigo.
Clara os levou até seu quarto. Lá dentro, ela mexeu na cabeceira da cama, pôs a mão entre a cabeceira e a parede e apertou um botão escondido. Imediatamente uma parede começou a se mover para cima, revelando uma porta metálica. Clara foi até o painel e digitou a senha, e a porta se abriu.
O interior era como um cofre grande o suficiente para caber várias pessoas dentro. Havia prateleiras e caixas, cheias de armas, pergaminhos e alguns objetos esquisitos que ninguém ali além dela própria saberia dizer o que era.
Clara pegou uma caixa, cujas paredes deviam ter 40 centímetros, mais ou menos. Ela a abriu e meteu a mão lá dentro.
Quando puxou o braço, uma coisa veio presa à sua mão: era transparente, porém deformava a luz que o atravessava, como água ou um vidro; também não tinha forma definida, e sua superfície ondulava em todas as direções. O movimento era lento como o de uma lagarta.
— Que coisa é essa? — Renato franziu o cenho.
— Esse pequenino aqui é um Slime Rouba-Rostos. É um monstro mágico. Ele é um dos ítens que vamos precisar. — Ela sorriu maliciosa — E agora vem a parte divertida: o outro ítem.
— E o que seria o outro ítem?
— Um cadáver fresco, é claro.