Pacto com a Súcubo - Capítulo 78
Num cantinho perdido, escondido entre o cerrado e o início da floresta amazônica, espremida entre algumas fazendas de soja e terras indígenas, ficava a base local da Cruz do Atalaia: um Priorado.
Clara estacionou a van e olhou com curiosidade para a imensa plantação que ficava dentro da propriedade, atrás de uma cerca de arame farpado: era quase tudo pés de mandioca, mas também havia outras plantas, tais como abóbora e milho, e uma ou outra árvore frutífera.
Se subissem num local alto, poderiam ver ao longe as estufas onde cultivavam uvas e amoras bravas.
— Me sinto estranha — disse Clara, após sua visão ficar embaçada e uma tontura balançar sua cabeça. Limpou a gotinha de sangue que desceu por uma de suas narinas.
— É a Pedra Fundacional. Estamos perto demais. Precisa estacionar mais longe, ou vai ficar ainda pior — alertou Jéssica.
A demi-humana se movimentou em seu assento e um gemido de agonia escapou de seus lábios.
— Tenho certeza que ela também tá sentindo os efeitos — falou Jéssica. — A pedra repele, agressivamente, tudo aquilo que os anjos consideram maligno.
— Os anjos consideram qualquer coisa que não seja um anjo como maligna — disse Clara. — Tenho certeza que nem os anjos suportam os anjos.
A súcubo manobrou o carro, e estacionou um pouco mais longe, sob a sombra de uma árvore alta, cheia de galhos retorcidos, e de casca grossa com marcas de cinzas: sinal de que já tinha sobrevivido a um incêndio.
— Jés…
— Sim, Mica?
— Eu… eu não sei se isso é uma boa ideia. Tô com medo. — A garotinha pôs uma mão sobre a outra, tentando fazê-las parar de tremer. Não deu certo.
— Não precisa ter medo. Eu tô aqui com você. E não vou deixar ninguém encostar um dedo em você — disse Jéssica, com um sorriso acolhedor, usando toda a força que tinha para esconder o próprio medo no fundo mais escuro de sua mente. — Você é minha irmãzinha. Lembra quando você disse que estava com medo do escuro e pensava que o Bicho Papão podia tá debaixo da sua cama?
Mical riu, constrangida.
— Isso foi há muito tempo. Eu era criança. Tinha lido sobre o Bicho Papão numa das revistas do papai… fiquei assutada.
— Se lembra do que eu disse?
Mical assentiu.
— Você disse que se o Bicho Papão tentasse me pegar, você ia dar uma surra nele — falou, rindo.
— O Bicho Papão só mudou de nome. E minha promessa ainda vale. Qualquer pessoa que tentar te fazer mal, Mica, vai levar uma surra de mim!
Mical encarou sua irmã com aqueles olhinhos de esmeralda brilhando. Ela queria chorar, mas não por motivos ruins. A felicidade estava quase transbordando em forma de lágrimas.
As duas se abraçaram.
— Vai dar tudo certo, Mica.
— Está com o anel? — perguntou Clara.
— Estou — respondeu Mical, mostrando os dedos da mão.
— Certo. Lembre-se, esse anel é um Pseudos. Ele serve para mudar a aparência do usuário. Use-o e ninguém vai poder ver a marca de nascimento em sua pele. Ele precisa estar em contato com você, ou o efeito se desfará.
— Eu entendi — assentiu Mical.
— Bom, também existem alguns objetos que podem anular a magia do anel. Eu duvido que os Atalaias tenham alguma pepita de ouro hiperdecaído aí, mas… nunca se sabe, não é? Se eles tiverem, fique longe. Além do mais, eu não entendo muito bem a natureza dessa Pedra Fundacional, então é bom ficar longe dela também. Talvez ela anule magias de objetos.
— Nunca vi a pedra sendo usada em objetos mágicos — disse Jéssica —, mas se a magia do anel se comportar parecido com uma maldição, talvez ela anule mesmo.
Mical assentiu.
Elas finalmente desceram do carro, atravessaram a cerca de arame e seguiram andando através dos caminhos feitos no meio da plantação.
O olhar de Jéssica era pura determinação. Tinha chegado a hora de enfrentar seus fantasmas do passado. Mais do que medo, ela estava com raiva.
Raiva por todos os pesadelos, todas as cicatrizes e todas aquelas vezes em que Mical foi dormir chorando baixinho, fazendo tudo o possível para não acordá-la.
Mical foi a única a olhar para trás. Ali, já na propriedade dos Atalaias, a poucas centenas de metros dos portões do Priorado, ela não pôde ver Renato, mas sabia que ele estava ali. Aguardava por ela, na estrada, dentro da van. Ela se sentiu protegida porque, mesmo que ele não estivesse ali junto dela, sabia que Renato correria até ela no menor sinal de perigo. Confiava nele.
Logo, viram os grandes muros à distância, com suas torres de vigilância no alto, onde soldados se posicionavam portando seus fuzis e metralhadoras; e projeções para o alto, no formato de parapeitos denteados, formando ameias de proteção, onde os atiradores poderiam se proteger.
Era como um castelo medieval. As duas grandes placas de madeira formavam uma porta dupla, que se abria para dentro. A superfície da madeira era toda entalhada com símbolos de proteção que serviam para afugentar demônios e demais criaturas da noite.
Assim que se aproximaram, a porta se abriu. Hernandes, um dos chefes dos Cruzados, já tinha sido avisado pelos sentinelas das torres de vigia, e as estava esperando com uma pequena escolta.
Ele sorriu.
— Então voltaram em busca de misericórdia?
Jéssica escondeu todo o rancor, raiva e medo que sentia, e apenas baixou a cabeça.
— Voltamos, como o filho pródigo da parábola de Cristo.
— Vejo que ainda se lembram de nossas histórias. Entrem, filhas de Quemuel. Temos muito a resolver.
Atrás dele, uma multidão de curiosos tentavam espiar por sobre os ombros, porém disfarçaram, porque tinham medo de serem repreendidos.
O chão era de terra batida; e o ar, poeirento. No centro do pátio tinha um poste de madeira que era usado em punições públicas. As cicatrizes de Jéssica tinham sido obtidas nesse poste. As casas, na maioria, eram de madeira e barro, cobertas com palha.
O templo, porém, destoava de todo o ambiente. Era construído com tijolos e pedra; e era enorme, quase alcançando o topo da muralha, feito para que qualquer pessoa que o visse, se sentisse pequeno. Também era a única estrutura ali onde tinha sido usada tinta: o exterior era todo pintado de azul, com símbolos de proteção entalhados em ouro e prata. E era a única construção dentro do Priorado que tinha energia elétrica, gerada por placas solares no teto.
Hernandes levou as garotas, através do pátio, em direção a um grupo de pequenas casinhas feitas de madeira, que ficavam ao lado do templo. Jéssica sentiu arrepios quando passaram perto do poste, se lembrando da vez em que ela foi amarrada ali e açoitada, enquanto todas essas pessoas assistiam como se fosse um espetáculo. Se lembrou do olhar tranquilo e sorriso leve de Isaías vendo-a sendo torturada. Ele era um acólito do templo, e a viu crescer, era amigo de seus pais, frequentava sua casa, e, no entanto, pareceu sentir prazer vendo seu suplício e sua dor.
Jéssica engoliu em seco e limpou o suor da testa. Estava a ponto de explodir por dentro. Mical segurou sua mão, demonstrando que ela também estava ali. Que estavam juntas e passariam por tudo isso juntas. Dessa vez, nenhuma delas seria machucada. Tinham um plano.
E enquanto elas eram levadas para as casinhas, um dos Cruzados correu até o alojamento do general Kézar. Assim que ele bateu à porta, ela se abriu, e o homem forte, de cabelos até os ombros, saiu.
— As filhas de Quemuel — disse o Cruzado —, elas voltaram.
Kézar não moveu um músculo facial. Seu rosto não demonstrou qualquer emoção, mas seu braço mecânico, substituindo o braço direito que tinha sido cortado fora na luta contra a súcubo, se fechou com muita força, como se fosse dar um soco.
Ao mesmo tempo, um jovem acólito correu para dentro do templo. Subiu as escadas que davam acesso aos andares mais elevados e chegou aos aposentos de Isaías e fez o mesmo.
Assim que Isaías abriu a porta, o jovem acólito pôde ver de relance três mulheres semi nuas deitadas na cama, antes que o homem pudesse fechá-la.
— O que foi, Asafe? — Isaías era um homem com cerca de 50 anos e barrigudo. Tinha um bigode abaixo do nariz e seu cabelo era ralo, com duas entradas acima da testa. Usava uma camiseta social amassada, com dois botões abertos próximos ao peito; e uma calça que foi vestida às pressas e o zíper não tinha sido fechado.
— As garotas! Elas voltaram! As filhas de Quemuel, Jéssica e Mical! Desculpe interromper suas orações, senhor, mas o senhor tinha me pedido pra te avisar quando…
Isaías gesticulou com a mão, para que o acólito parasse de falar.
— Então a Jéssica voltou, hein? — Ele sorriu de um jeito malicioso enquanto pensava nas possibilidades.