Pacto com a Súcubo - Capítulo 79
E, assim que chegaram às casinhas ao lado do templo, Hernandes abriu uma delas e empurrou Jéssica em direção à porta.
— Entre! — disse ele.
A garota deu um passo hesitante em direção à entrada; Mical a imitou.
Hernandes deteve Mical, segurando-a pelo braço.
— Você não.
— Ei, o que pretende fazer com minha irmã, seu…?! — gritou Jéssica, indignada.
— Vocês serão examinadas, porém em quartos separados. É óbvio. Entra. Sua irmã estará no quarto bem ao lado do seu.
Jéssica, ainda descontente, entrou no quarto, ao passo que Hernandes passou a chave na porta, trancando-a no escuro. Os feixes de luz, como fios dourados e brilhantes, que entravam pelas frestas do barro e da madeira, eram a única iluminação que tinha.
Mical engoliu em seco. Odiava ficar separada de sua irmã dessa forma, mesmo que por poucos metros.
Hernandes a empurrou pra dentro do quarto ao lado e trancou a porta. No quarto dela, ao contrário do de sua irmã, não tinha nenhum feixe de luz se projetando na sombra, então ficou no completo escuro.
O cheiro era de mofo e terra úmida. O nariz coçou, talvez por causa das partículas de poeira flutuando no ar, e a garota espirrou.
Tump! Tump! Tump!
Alguém bateu na parede do outro lado.
— Mica! Você tá aí?
— Jés! Eu… eu tô aqui! S-será que vão nos deixar aqui por quanto tempo?
— Eu não sei. Vou procurar uma saída… um local mais frágil no teto, que dê pra cavar e abrir uma saída, se for necessário.
— Tô sentindo falta da minha bazuca… daria pra abrir uma saída com ela facinho!
Jéssica riu.
— É, daria mesmo.
— Parece que tem alguém vindo! — disse Mical, nervosa.
A porta se abriu, e entrou uma mulher velha, de pele enrugada e cansada, e um vestido preto surrado, meio desbotado. Seus cabelos brancos estavam cobertos por um véu da mesma cor do vestido, e descia pelos ombros.
Sobre o peito, um crucifixo prateado brilhava, e era a única coisa nela que não parecia desbotada e sem vida. Ela segurava um lampião aceso e cheirava a naftalina.
Assim que entrou, fechou a porta atrás de si e o lampião se tornou a única fonte de luz no local.
— Magna Madre!
A velha bufou.
— Tire a roupa — disse ela, colocando o lampião sobre uma mesinha.
— O quê?
— Tire a roupa. Preciso te examinar para saber o quão contaminada pelo mundo você foi. Saber se ainda tem salvação.
Mical engoliu em seco.
— Contaminada?
— Tire logo a roupa! Ou eu vou chamar alguns acólitos do templo para segurá-la e tirar sua roupa à força.
Aquela sensação de aperto no peito de Mical era uma sensação que ela conhecia bem, embora não a sentisse há bastante tempo. Ela tinha se esquecido como era. Ter seu corpo e mente totalmente controlados pelos outros; que a olhavam com desconfiança, com nojo, com indiferença.
Pelo menos dessa vez sua mente estaria a salvo! Poderiam tocar seu corpo, amarrá-lo, castigá-lo, fazê-lo sangrar, mas sua mente estaria fora do alcance daquelas mãos ressequidas e cheias de ódio. Não fariam nada a ela! Mesmo que tentassem muito!
— Certo — respondeu.
O anel no dedo manteria sua marca de nascimento oculta. Enquanto eles não a vissem, ela ficaria bem. Marcas na pele, para o Atalaias, eram o mesmo que uma declaração de pacto com o Diabo, e isso significava fogueira.
Engoliu em seco e começou a se despir.
— Vai rápido, garotinha! Não tenho o dia todo! — disse a velha impaciente.
Mical tirou a roupa e, tímida, estava com os ombros caídos e cobrindo os seios com os braços, como se abraçasse a si mesma.
— Vamos, estique os braços!
Mical obedeceu, hesitante, com movimentos lentos. Apertava os lábios uns contra os outros, por causa do nervosismo.
A velha se inclinou com dificuldade, para observar cada centímetro da pele de Mical, começando pelos pés e tornozelos.
A garota, com os braços esticados, moveu os dedos, tentando manter o anel escondido. Mas ela sabia que era inútil. Magna Madre veria aquele anel e a faria tirar. Talvez, não notasse a marca ressurgindo em sua coxa, mas talvez notasse. Seria um golpe de sorte. Por isso, quando viu a chance, enquanto a velha ainda estava inclinada prestando atenção em seu tornozelo, a garota fingiu que bocejou e levou a mão à boca, cobrindo-a, e com um movimento rápido do polegar, empurrou o anel para sua boca, e o escondeu embaixo da língua.
— Fique quieta, garota! Antes que eu perca a paciência!
— Desculpe, Magna Madre.
A velha fez uma careta de desprezo e bufou.
— Ainda não sei se te aceitaremos de volta. Vou falar com o Prior Regente sobre isso. Só precisamos de sua linhagem! Eu mesma poderei escolher um acólito para pôr a semente em teu ventre, ou no ventre de tua irmã. A que for mais adequada.
“Isso não vai acontecer” pensou Mical. “Não vai mesmo! Antes disso, eu explodo tudo isso com a bazuca!”
— Muito bem! Sem nenhuma marca maligna, aparentemente.
A velha pegou o lampião, girou nos calcanhares e saiu, deixando Mical novamente sozinha no escuro.
A garotinha pôde ouvir as movimentações no quarto ao lado, quando sua irmã também foi examinada por Magna Madre.
*
Depois de examinar Jéssica, Magna Madre, antes de sair, se virou e disse:
— Tome muito cuidado. Não comece a pensar que é importante só por causa dos privilégios que vier a receber.
Logo em seguida, deixou a garota sozinha.
Jéssica ficou meio confusa com as palavras dela, mas não se importou. Bateu na parede lateral para chamar sua irmã:
— Mica, tá aí ainda?
— Tô sim.
— Magna Madre acabou de sair. Não sei o que acontece agora.
— Aquela mulher me dá arrepios.
— A mim também.
— Vamos dar um jeito de achar logo a pedra pra dar o fora daqui o quanto antes, Jés.
— Sim.
Então a porta se abriu e mais alguém entrou.
Era um homem de mais ou menos 50 anos, barrigudo, de bigode e cabelo escasso.
— Isaias?
— Jéssica! Que saudades! — Ele foi até ela e a abraçou. Foi um abraço longo e apertado, daqueles que parentes que ficam muito tempo sem se ver dão.
A garota, porém, não retribuiu, mantendo seus braços colados ao corpo.
— Há quanto tempo?! — disse ele, com um sorriso, após finalizar o abraço.
— Sim.
Jéssica estava atônita, com a visão e mentes confusos, anuviados. Seu coração disparou.
Tudo o que ela podia pensar era em Isaías sorrindo vendo ela sendo torturada sob o azorrague do carrasco.
Ele tinha sido um amigo íntimo de sua família. A conheceu quando era um bebê e a viu crescer. Como acólito do templo, ministrou cerimônias religiosas para sua família, aconselhou seu pai, consolou sua mãe.
E mesmo assim, naquela hora em que ela estava sofrendo, amarrada ao poste, levando chicotadas ferozes do Executor, tudo o que ele fez foi sorrir de prazer. Mesmo que não fizesse nada para ajudá-la, como todos os outros, por que ele sorriria? Ela não entendia.
E mesmo assim ele teve coragem de abraçá-la dessa forma! E pior: insinuar que teve saudades? A confusão mental que se abateu sobre Jéssica era feita de puro ódio misturado com um medo assustador. Ele era como o Bicho-Papão das histórias de Mical.
Jéssica respirou fundo, escondeu o que estava sentindo no fundo do coração e sorriu o sorriso mais amável que conseguiu.
— Desculpe pela Madre — disse Isaías. — Sabe como é, né? É o procedimento.
— Eu sei.
— Sabe, vou providenciar um quarto incrível pra você e pra sua irmã. Posso até dar um jeito de permitir que leiam aquelas revistas de fora que seu pai tinha escondido. Eu posso fazer isso agora. Bom, é claro que algumas não poderão ser disponibilizadas para leitura devido ao conteúdo, mas…
— E o padre? Ele concordaria com isso? Lembro muito bem do que ele pensava sobre as revistas.
— O padre está muito doente e não pode mais exercer a função de Prior. Eu sou o Prior Regente agora. Nada mais justo, afinal, eu era o acólito mais empenhado!
— Você?!
— Sim — disse ele, com orgulho. — Sou eu quem toma as decisões agora. Controlo os vigias, os Cruzados e todo o Priorado. O General Kézar sempre foi tão arrogante, não se lembra? Agora ele tem que me obedecer! Acredite, se eu quiser, ele não será problema pra vocês.
Jéssica abaixou a cabeça. Não existiam palavras para exprimir o que estava sentindo.
— Os acólitos vão te acompanhar até alguns aposentos no templo. Tomem banho, descansem, porque mais tarde teremos um espetáculo. Vou exorcizar um demônio diante de todo o Priorado! Será incrível!
— Você vai exorcizar um demônio? Um espetáculo? Exorcismos são tudo, menos espetáculos.
— Agora as coisas são diferentes. Espere e verá. Ah, e tente se comportar. Me pergunto sobre o porquê de sua irmã ter escondido aquele anel.