Pacto com a Súcubo - Capítulo 80
Jéssica e Mical estavam dentro do templo, caminhando em direção às escadas que ficavam nas laterais do altar. Os acólitos as acompanhavam, com suas túnicas brancas, desbotadas por causa da poeira.
O Templo era dividido assim: no térreo ficava a parte chamada Nave, que era onde os fiéis se encontravam para assistir às missas. Os bancos eram longos e de madeira bem polida, e ficavam dispostos em duas fileiras: uma do lado direito e outra, do esquerdo, formando um corredor no meio.
Também havia um altar e um púlpito, onde o orador poderia falar aos fiéis sentados nos bancos. Um grande quadro ficava na parede de trás do altar, onde era possível ver a pintura de um homem morto, com uma espada longa enterrada em seu peito, formando uma cruz.
A arquitetura do local era grandiosa, em forma de abóbada, riquíssima em detalhes e ornamentos que aludiam às formas geométricas; tudo feito em simetria: um ornamento que aparecia de um lado, aparecia do outro de forma idêntica.
Até as escadas nas laterais do altar eram cópias umas das outras. Havia duas: uma à esquerda; outra, à direita. Passavam pelos mesmos andares e levavam para os mesmos lugares. Era como se um lado fosse o espelho perfeito do outro.
O piso era de mármore polido e brilhante.
Subiram as escadas, que se projetavam para o alto em formato espiral.
O primeiro andar não era tão grandioso na aparência. Se parecia mais com um prédio: a abóbada do térreo dava lugar a um teto plano e branco, de gesso, e ali ficavam as salas de estudo e uma pequena biblioteca.
Acólitos e noviças iam e vinham, num fluxo ininterrupto; e, de vez em quando, soldados também apareciam, olhavam com desconfiança para Mical e Jéssica, mas seguiam seu próprio caminho.
Passaram em frente a uma sala que estava com a porta aberta, e puderam ver as noviças, com suas túnicas pretas, ouvindo, de cabeça baixa, o que a Magna Madre lhes dizia. Eram garotas que estavam na mesma faixa etária de Jéssica e Mical.
Uma delas estava ajoelhada no canto da sala, com os joelhos sobre o milho. Ela tinha uma expressão chorosa, de quem sentia dor, mas não se movia e nem dizia uma palavra. A garota percebeu o olhar de Jéssica, olhando-a com certa piedade, e sentiu raiva.
— Adúltera de demônios! — disse a noviça, com desprezo.
Magna Madre percebeu que Jéssica olhava para a sala e bufou, com uma expressão azeda, e fechou a porta.
As duas meninas, acompanhadas dos acólitos, continuaram caminhando. O terceiro andar era onde ficavam alguns alojamentos, a Biblioteca Central, de uso exclusivo de algumas poucas pessoas, salas de inteligência militar e mais.
As garotas foram levadas até um quarto onde poderiam descansar. Tinha duas camas de solteiro, uma mesinha onde poderiam desfrutar de refeições que, para a surpresa das duas, tinha até um microondas em cima.
Havia uma prateleira com alguns livros; e também um armário com algumas roupas limpas. Um ar-condicionado garantia o frescor do ambiente.
O banheiro era grande, com ducha e banheira, e vários tipos de xampus, sabonetes e sais de banho.
As duas meninas estavam confusas. Era luxo demais para os padrões do Priorado. Não fazia sentido. Elas esperavam por castigos, broncas, quartos pequenos, sem energia elétrica, tendo como único local para dormir, o chão duro. Mas o que receberam era diferente.
Se entreolharam, ainda em dúvida, mas não tinha muito o que fazer além de aproveitar o que tivessem chance. Deram de ombros e foram para o banheiro. Encheram a banheira de água, que já saía quentinha, e usaram todos os produtos disponíveis.
E, sozinhas, sob a água quente e relaxante, com xampu nos cabelos, elas finalmente puderam relaxar.
— Ai, ai, isso aqui tá melhor do que eu imaginei — disse Mical, esfregando os cabelos dourados cheios de espuma. — Mas é estranho, nunca deixaram a gente subir aqui antes… o que será que mudou…?
— O Prior.
— Hum?
— O Prior mudou. Não é mais o padre. É o Isaías.
— Isaías? — Mical lançou para Jéssica um olhar incrédulo. — Ele não era só mais um dos acólitos? E nem era um dos mais importantes. Ele era mais… tipo… um puxa-saco do padre.
— Nunca subestime os puxa-sacos — disse Jéssica, sorrindo. — Segundo ele, o padre ficou muito doente e não consegue mais exercer o priorado. E aí ele assumiu.
— Hum… entendi — disse Mical, levando a mão ao queixo, pensativa. — Bom, que bom pra ele! Eu sempre achei o Isaías legal. Ele visitava a gente com frequência e era muito amigo do nosso pai. Ele adorava você, não é?
— Ele brincava muito comigo quando eu era criança. — Jéssica ficou pensativa. — Uma vez ele sugeriu uma brincadeira diferente…
— Diferente? Diferente como?
Jéssica engoliu em seco, sentindo uma queimação na garganta.
— Ele disse… que a gente deveria brincar… de namorados.
— Namorados? — Mical franziu o cenho, incrédula, depois deu risada. — Isso não faz sentido. Ele tem uns cinquenta anos agora! Seria muito estranho.
— É… seria estranho mesmo…
— E o que você disse pra ele? — perguntou Mical, com erguendo uma sobrancelha.
— Eu disse que não sabia como se brincava disso.
— E ele?
— Disse que me ensinava.
— Você contou pro papai?
— Não. Eu… pensei em contar… mas pouco tempo depois o papai e a mamãe morreram. Não tinha ninguém pra contar.
— Tinha a mim! — disse Mical, irritada, socando a água, fazendo-a espirrar por todo o banheiro.
— Verdade. Tinha você. Desculpe por não… falar com você.
— Ele… te fez alguma coisa?
— Não. A gente só dava as mãos e se abraçava às vezes. Acho que nem ele sabia direito o que estava tentando fazer. Até que eu falei pra ele que não queria mais brincar daquilo, que não estava mais achando divertido.
— E o que ele disse?
— Insistiu que queria continuar… pediu pra eu não parar. Mas eu parei mesmo assim. Estava morrendo de medo de alguém descobrir, sabe? Mas acho que já era tarde demais. Porque alguém já tinha descoberto e contado para o padre que eu tinha um namorado. Foi por causa disso que eles me prenderam àquele poste e me açoitaram. Estavam tentando me purificar dos meus pecados, eu acho. Eles diziam que eu era algum tipo de adúltera ou prostituta. Pelo menos foram essas palavras que usaram.
— Mas que merda, Jés! Isso me deixa tão puta da vida!
— Tá tudo bem. As feridas já cicatrizaram mesmo.
— E ele? foi punido também?
— Não. Ele não. A pessoa que descobriu, não descobriu que era ele… ou não quis contar. Eu também não contei, então…
— Deveria ter contato! Ai que ódio! Que vontade de dar um tirão de bazuca na cara dele!
Jéssica riu.
— Dá vontade mesmo.
Assim que terminaram o banho e trocaram de roupas, Jéssica se deitou numa das camas e suspirou. Estava cansada. Todo o caminho até ali tinha sido exaustivo, afinal.
Mical foi até a prateleira dar uma olhada nos livros.
— Droga! Só tem livro de teologia aqui.
— O que você esperava? — respondeu Jéssica. — Queria encontrar toda saga de Herry Potter aí?
Mical deu de ombros.
— Sei lá… qualquer coisa divertida já tava bom. Que saudade das revistas do papai!
— É… também tenho saudades.
Mical pegou um dos livros da prateleira e ficou um tempo observando a capa.
— Diário de um Sedutor… de Soren Kierkegaard — leu o título. — “A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para frente.”
Jéssica ergueu uma sobrancelha.
— Eu adorava esse livro. Essa é uma das passagens que eu mais gosto. O papai fazia eu ler porque, sabe, é importante pra Teologia. Mas também fala sobre… humanidade.
— Na sua idade eu lia Smilinguido — riu Jéssica.
Então alguém bateu à porta.
Era um dos acólitos trazendo uma bandeja com comida e uma jarra de barro com dois copos.
Ele estava acompanhado de uma das noviças, que olhou para Jéssica de cima a baixo, com uma certa expressão de desprezo.
— Eu trouxe o jantar de vocês — disse o acólito.
— Certo. Obrigada — respondeu Jéssica, pegando a bandeja.
A noviça empinou o nariz e girou os olhos.
— Não sei porque essas duas estão recebendo tal tratamento do Prior Regente. Nem mesmo nós podemos dormir nestes quartos do templo. Elas deviam estar sendo castigadas e não sendo tratadas como princesas!
— Fique quieta, Midiã! — reclamou o acólito. — São ordens do Prior Regente! E eu só te trouxe porque você disse que ia se comportar.
— Tudo bem. Desculpe. Eu só…
— Comam e descansem bem — disse o acólito. — É desejo do Prior Regente que vocês assistam ao espetáculo mais tarde.
— Espetáculo? — Jéssica franziu o cenho.
— Sim. O espetáculo onde ele irá exorcizar um espírito maligno e mostrar para todo o Priorado a autoridade que ele recebeu de Deus. Não ousem perder! Mandaremos acólitos virem buscá-las.