Pacto com a Súcubo - Capítulo 99
Jéssica e Mical caíram num tipo de caverna subterrânea gigantesca. Estalactites no teto e estalagmites no chão se projetavam feito lanças ameaçadoras.
Às costas delas, uma cachoeira de água e areia descia da superfície e caía rumo ao centro da terra.
Um brilho alaranjado rasgou o escuro. E as garotas viram o anjo. Estava preso por correntes que saíam de dentro das rochas. Suas asas, sem plumas, eram apenas uma projeção de nervos, cartilagens e pele enrugada preso às costas.
Ele se ergueu e olhou diretamente para as duas. Os olhos eram alaranjados. Lindos, porém carregavam uma expressão triste, dura. A pele estava toda coberta de cicatrizes.
Estava nu.
— Ctehê! Arebk háj!
— O… quê… ? — Jéssica fez uma expressão confusa.
— Enoquiano — concluiu Mical.
— Sabe traduzir?
— Não.
O anjo as olhou por um tempo, e abriu suas asas lamentosas de couro e nervos, e tentou se aproximar delas, mas as correntes tiniram e o seguraram.
— Tz há! Tz há! Ex Azael! — disse o anjo, estendendo suas mãos para elas.
— Acho que ele quer que… nos aproximemos — disse Mical.
As duas se entreolharam por um tempo.
Depois olharam para o anjo e não sentiram medo. Tudo o que puderam sentir vendo aquela figura machucada, triste e solitária foi pena. Aqueles olhos eram os olhos de alguém implorando por algo. Não tinham orgulho, nem hostilidade. Apenas tristeza.
As duas deram um passo a frente e o anjo as tocou.
Pousou as mãos sobre as têmporas de cada uma delas e fechou os olhos.
Seus lábios finos e ressecados se moveram, sussurrando:
— T-hai! Cetum! Satem! Indo-europeu! Latim! Galego-português! Português! Decifrado.
O anjo se afastou delas. Respirava pesadamente. Parecia cansado.
— A língua de vocês é… complicada. Muita ramificação — disse o anjo.
— Você… aprendeu nossa língua!? Já?! — Jéssica parecia chocada.
Mical assentiu.
— Aprender dessa forma deve ser bastante útil.
— Existe a possibilidade de eu ter um aneurisma cerebral, então… tem seus riscos — respondeu o anjo, dando de ombros.
— Você é… — Jéssica não concluiu sua fala.
— Sim — respondeu ele. — Ex Azael. Me chamam de O Anjo do Deserto. Mas a verdade é que eu sempre fui o Anjo do Perdão. Sempre trabalhei para levar o perdão de Deus aos humanos. Mas pequei. Me apaixonei por uma humana.
Jéssica engoliu em seco.
— Nós tentamos contactar você.
— E eu procurei por vocês. — ele olhou para Jéssica — A chave; — olhou para Mical — o mapa. Minhas descendentes. Minhas sementes na humanidade. A prova de que amei Txalky! Mas não consegui encontrá-las. O mundo é grande demais e minha consciência não as encontrou. Mas algo mudou.
— O que mudou? — perguntou Jéssica.
— Uriel morreu. Quando um anjo morre, acontece uma emanação energética que funciona como um sinal avisando para todos os outros anjos da morte e do local onde aconteceu, como os feromônios das abelhas. Eu senti esse sinal e olhei na direção dele, e vi vocês duas, então puxei suas almas para os portões da minha prisão. Não sabia se conseguiriam vencer o guarda, mas venceram.
Mical engoliu em seco.
— Então os outros anjos também sabem da morte de Uriel?
Ex Azael assentiu.
— E o que quer da gente? — perguntou Jéssica.
— Quero que me libertem. Estive preso por incontáveis milênios. O tempo do meu castigo já tem que ter terminado!
— …
— Libertem-me! Ainda tenho duas Bênçãos para ceder! Libertem-me e lhes darei!
— Bençãos? — Mical ficou pensativa.
— Poderão proteger uma a outra de maneira mais eficaz. Nem anjos, nem demônios, nem qualquer criatura poderá machucá-las, pois vocês são minha semente. Eu estarei sempre com vocês. Poderão ajudar aquele garoto a vencer a própria Escuridão.
— Nós teremos poder? — Mical parecia surpresa.
— Vocês já têm. Eu apenas vou remover os selos que as impedem de usá-los.
— E como podemos libertá-lo? — perguntou Mical.
— O sangue de vocês. Uma gota de cada.
— Nosso… sangue… ? — Mical franziu o cenho.
— Mical, você é o mapa. O guia. Derrame uma gota de seu sangue sobre minhas correntes e o sangue se moverá para o elo mais frágil. Sinalizará onde a chave deve ser inserida.
— E a chave sou eu?
— Sim, Jéssica. A chave é você. Você deve derramar sua gota de sangue no elo da corrente onde o sangue de Mical parar. Assim, eu estarei liberto. Foi profetizado que seria dessa forma.
— Jés, foi pra isso que nascemos. Ouvimos histórias sobre ele desde pequenas.
— Eu sei, mas… Depois não tem mais volta, né? Melhor pensar um pouco.
— Do que você tem medo? — O anjo ergueu uma sobrancelha.
— Por exemplo, senhor Anjo do Deserto, o que você pretende fazer depois que estiver livre?
— Vou descobrir meu lugar no mundo. Talvez viajar pelo universo. Sempre quis conhecer a galáxia de Andrômeda, mas nunca tive tempo. Ouvi falar que lá existe uma civilização alienígena com seus próprios deuses e monstros. Parece… interessante.
— Parece mesmo — respondeu Mical.
— É nossa predestinação, Jés.
Jéssica suspirou.
— Acho que é mesmo…
As duas fizeram assim como instruído por Ex Azael. Mical usou um pequeno grampo de cabelo, que tinha a ponta afiada, para fazer um furinho no dedo.
O anjo começou a cantar. Era um cântico numa língua esquisita, com notas longas e melancólicas, que se misturavam em reverb. O som era grave e vinha do fundo da garganta. Era o tipo de música que poderia tocar numa igreja gótica antiga, daquelas com salões frios e tumbas no subsolo.
A gota de sangue caiu da ponta do indicador de Mical sobre um dos elos da corrente.
O metal da corrente rangeu e tiniu, como se sofresse, e o sangue se moveu através dos elos, até um ponto específico.
Jéssica jogou sua gota de sangue sobre a gota de Mical.
Toda a caverna estalou, como se as pedras estivessem sendo destruídas. As águas do Nilo pararam de cair em cascata.
Foi como se todo aquele mundo perdesse a cor e ficasse desbotado.
— Está consumado — disse o Anjo do Deserto.
A corrente se tornou pó.
Ex Azael, finalmente com seus braços livres, ergueu as duas mãos, e duas bolas de energia na cor de seus olhos brilharam em suas mãos.
— Alegrem-se, filhas de Quemuel. Filhas de Azazel. Serão as portadoras do Perdão e da Justiça. Abençoadas sejam!
E empurrou as bolas de energia em direção às duas meninas. A energia se chocou contra Mical e Jéssica, e as duas foram arremessadas contra uma parede, destruindo algumas estalagmites no percurso, e caíram no chão.
Jéssica tentou se erguer, mas lhe faltou forças. Seu corpo inteiro formigava e ela não sentia as pernas. A visão estava turva. Mical, ao seu lado, estava inconsciente.
— Ex Azal… — disse Jéssica, com voz fraca —, o que…
— Podem me chamar de Azazel. Somos próximos agora. — Ele olhou para o alto e, através dos vários metros de rocha maciça, do rio que corria na superfície, e através da própria barreira dimensional que selava essa dimensão prisão, ele viu o Céu. O Paraíso. Ergueu suas asas de pele e nervos; e seus olhos brilharam orgulhosos. O rosto se encheu de dignidade pela primeira vez em mais de mil anos.
— Vingança também é bom.
E voou, desaparecendo através do teto, como se todas aquelas pedras não tivessem matéria alguma em sua constituição.
*
No Priorado, Jéssica e Mical ainda flutuavam, girando uma em volta da outra.
— É bruxaria… — disse um dos camponeses.
— Misericórdia! Esse pesadelo nunca termina!
— Precisamos fazer alguma coisa! Ou seremos punidos por Deus ainda mais!
— Se afastem! — disse Renato, com firmeza. — Não quero que fiquem em cima, dessa forma, feito um bando de abutres! Fiquem longe!
De repente, as duas simplesmente caíram no chão. A magia que as mantinha levitando foi desfeita.
Renato as tocou no rosto, sentindo a respiração delas. Suspirou aliviado ao ver que estavam vivas e, reagindo ao seu alívio, o céu se iluminou, sendo tomado pela luz do sol que rasgou a escuridão de antes.
— Renato é mesmo especial — falou Tâmara, sentada no parapeito, no alto do templo, olhando para baixo e balançando as pernas alegremente.
— Você não sabe o quanto…. — disse Clara, que estava sentada ao seu lado.
— Sobre as meninas… o que acha que é?
— Não sei — Clara tomou um gole de seu copo de uísque com gelo. — Mas com certeza não é bom.