Passos Arcanos - Capítulo 152
— A senhora tem vindo aqui muitas vezes, senhora Silena — Cairo Rent se aproximou. — O mar tem estado bem agitado, as rotas submarinas se modificaram nos últimos meses também.
— O oceano me lembra que aqui tenho poucas preocupações. Olhe o quanto ele é grande, Cairo. Não consigo nem pensar quanto tempo a gente levaria para passar até do outro lado.
Cairo também não sabia. O oceano era sempre motivo das histórias dos marinheiros, piratas e corsários da Ordem. Ele era gigante, insondável e monstruoso. Vidas demais se perderam por lá, e poucas nasceram dele.
Se fosse possível, ficaria em terra o máximo possível. Duvida que Silena pensava o mesmo.
— Sei que veio aqui relatar os problemas da última semana com os minérios — ela disse. — Posso ficar só mais um pouco? Quero ver o sol se pôr.
Cairo se afastou, também fitando o horizonte. Aquela jovem tinha uma função grande demais para sua idade, confrontando Ernesto Vidian, conflituando com Felipe, o herdeiro direto da casa, e tendo também que mesclar sua diplomacia com influência para auxiliar os Germaco e os Baker.
Desde que Orion tinha ido embora, ela levou ao pé da letra que Caldeiras de Ilhotas não deveria ser apenas uma ilha de famílias nobres, que lutaram e agora descansam. Silena queria que a Ordem os visse como um ponto seguro, um verdadeiro ponto seguro para que os afetados pela guerra pudessem se refugiar ali.
E lidar com os Baker era mais difícil do que imaginava. Aqueles eram homens com orgulho e ego feridos, datados por vinte anos vivendo de maneira que suas sombras não aparecessem nos maiores pátios.
Em magias, proibidos, mas na arte da batalha, Silena se impressionou quando os visitou formalmente. Demonstravam uma aptidão estranha para as lutas, e Cairo se questionou se Orion era especial mesmo ou se todos os Baker eram assim.
Lembrou-se depois de bastante tempo da alcunha que recebiam no campo de guerra.
— Cão Imortal — disse a Silena. — Até a Ordem respeitava eles.
— É triste saber que uma família tão forte foi forçada a brigar por comida dessa maneira.
Assistia-os gritando e rebatendo uns aos outros numa larga mesa quadrada ao ar livre. Couraças de batalhas, longas túnicas e chapéus diferentes. A moda deles também mudou desde a última vez. E as frutas, legumes, carne, frango e peixe eram distribuídos, mesmo que prontos e dados como presente por Silena.
A fome era miserável.
— Lembro de uma vez, Cairo — Silena voltou a falar. — Disse que um dia eu poderia ser a Rainha das Caldeiras.
— Lembro, senhora. Faz muitos anos, quando ainda era uma criança.
— Me tire uma curiosidade. Uma rainha precisa de um rei?
Claro, ela ainda pensava nele.
— Apenas se a senhora quiser.
Antes de completar, uma estranha sucção de mana oscilou em suas costas. Silena também sentiu, virando. Um portal se abriu, com cerca de dois metros e um homem voou para as areias, deslizando de costas, sangue escorria pela sua boca.
— Senhora. — Cairo fez com que Silena ficasse em suas costas. Fazia alguns anos desde que tinha entrado em um conflito, mas pelo poder e mana que o outro exalava, dava pra perceber que seu nível era maior.
— Merda — o homem balançou a cabeça e procurou a espada caída ao redor. — Você só tem isso, Baker. Apenas essa maldita magia.
— E eu precisaria de alguma outra para te matar, Selector Oblak?
A voz, Cairo e Silena reconheceram de imediato. O tempo diminuiu drasticamente a medida que o pé tocou as areias da costa. O clima mudou, os céus também ficaram pesados. Era como se as Caldeiras de Ilhotas reconhecessem o retorno do Escolástico mais novo de sua história.
E se Cairo não estivesse errado, o termo Selector provinha de um título alto dentro de uma Academia Mágica. E Oblak Bace, esse também era famoso. Uma estrela do passado que se tornou um Mestre de Matéria cedo demais, causando alvoroço.
Orion Baker saiu de dentro do portal e ao esticar a mão, uma barreira cobriu eles dois. As runas que sobressaíam ao redor dela eram todas complexas, poderosas e suficientes para parar um Mago de Quinto Núcleo.
— Orion — Selana o chamou, quase desacreditada. — Você… está aqui mesmo?
Mas, não houve resposta. Oblak tentou olhar ao redor, tendo ouvido. Orion escutou, mas não vai responder. O foco dele estava direcionado a somente um ponto.
— Aqui foi onde eu cresci — ele disse ao Selector. — Onde aprendi a lutar e estudar. Levante-se, já disse que não vou te matar desarmado.
De pé, o Selector deixou listras azulas percorrerem seu braço e avançou. Os dois colidiram, a espada acertava a lança sem desestabilizá-la. Um dos lados golpeava com frenesia, querendo a morte imediata. O outro assistia a sem sentido arte da batalha do oponente.
Ele se tornou tão forte assim em pouco tempo? Um ano se passou desde que saiu das Caldeiras.
Orion jogou a lança de um lado para o outro e vários braços apareceram ao seu redor, acertando o rosto e peito de Oblak juntos. O seu verdadeiro braço ganhou uma runa de Força, a aclamada Fike, e acertou de baixo pra cima, no estômago.
— ‘Fike: Altitude de Wallace’.
A pressão de ar balançou a barreira, mas o homem não saiu do lugar. Ele nem mesmo entendeu como foi acertado, cambaleando para trás, sem ter sido jogado para longe. Quanto poder, uma runa capaz de segurar o inimigo no lugar e ainda assim ser tão forte.
Aquela era a evolução de Orion Baker? Sabia que ele tinha conseguido uma chance de reaver a honra de sua família, mas nunca da notícia de conseguir conjurar magia dessa forma. Ele havia se tornado um Mago de Matéria.
O mais absurdo era estar vencendo um Mestre de Matéria.
— Ele ficou poderoso — ouviu Silena falar em suas costas. — Muito mais forte do que pensávamos.
— Quando eu cheguei a completar meus dez anos, esse lugar se tornou muito pequeno — Orion contou. — Eu quis morrer muitas vezes, sabia? Desejava isso do fundo do meu coração, mas meu pai sempre dizia que o suicídio era o ato menos honrado que um homem poderia conter. Eu achava o contrário. É o ato mais corajoso porque pensar e querer tirar a própria vida é como deixar tudo o que aprendeu e deixaria de aprender para trás. Nós visitamos São Burgo, o Forte Drax, o Palácio das Baleias, Amplidão Governante, Cedero e agora estamos em minha casa. Você com certeza passou por mais lugares do que eu, em Hunos, nas cidades livres, no campo de batalha, na guerra, então, te darei a escolha de morrer aqui. — Sua lança teve a ponta virada para o chão. — Te dou a escolha de cortar a própria garganta como forma de reaver a traição que fez ao diretor Magnus.
— Magnus? — Cairo Rent abriu sua boca. — O diretor da Academia de Mangus. Deuses, ele está na Academia de um dos homens mais incríveis do continente.
— Onde fica? — perguntou Silena. — É longe?
— Fica distante demais de qualquer lugar que já foi, senhora. — Cairo ainda ficou chocado. Realmente, eles estavam vindo de Magnus. E passaram pelos lugares citados, cada um mais impressionante que o outro. — A magia espacial é sua, Orion?
Oblak não respondeu a sentença de bom grado.
— Prefiro que os deuses me punam. Não vou tirar minha vida só porque um moleque como você simplesmente deseja. Sou Oblak Bace, um Mestre. E se é para ser morto, vamos nos levar ao extremo.
— Não entendeu o que eu disse, Selector? — O vazio dos olhos de Orion eram assustadores. — Você já morreu, só não sabe.
Que frieza. Ele realmente mudou muito.
— Pare de brincadeira.
Nem mesmo aguentava ficar ereto. A espada em sua mão tremulava. As pernas tremiam. Ele perdeu.
— Eu travei todos os seus ligamentos, senhor — explicou Orion. — Não vai conseguir usar mais nenhuma magia por dois dias inteiros, isso se o dano que deixei no seu núcleo não fosse curado com urgência. Ainda está querendo uma luta sendo que nem mesmo consegue se manter de pé? Eu matei um Sacerdote, já matei assassinos, já matei falsos Cavaleiros, mas nunca dei chances para que se redimissem. Corte sua garganta e levarei seu corpo para o diretor. Pedirei que ele seja misericordioso.
— Prefiro a morte pelas suas mãos. — Não existia mais força naquele homem. Nem mesmo determinação. Nem mesmo coragem. — Eu fui derrotado por você, não por ele. Então, que seja uma morte no qual eu aprove. Venha, Cão Imortal, me mostre sua…
Num passo, Orion cruzou o espaço e sua lança girou incontáveis vezes. A boca de Oblak se abriu e seu pescoço entortou. Por fim, Orion encaixou a lança no chão e acertou a palma em seu peito, cerca de dez portais se abriram e dez diferentes partes do corpo foram lançadas para lá.
Sem sobrar nada na costa, nem mesmo sangue, era como se o Selector nunca tivesse pisado ali. Dos dez portais, homens e mulheres, crianças e figuras no qual pareciam conhecer Orion o encaravam.
— Eu te dei uma morte honrosa, Selector. — A cabeça havia rolado, mas os olhos ainda miravam Orion. — Uma que será lembrada por todas essas pessoas, espero que seu nome não morra. Obrigado por ter me ensinado a ser um Mestre de Matéria, aprendi bastante.
Num estalo, os dez portais se fecharam.
Sozinho, dentro da sua própria magia, Orion fitou o céu. Por longos minutos, nada disse. O que ele estava pensando, Cairo não fazia ideia. Talvez, retomar a honra de sua família, qual inimigo deveria ser morto, para onde deveria ir.
Qualquer uma delas seria importante.
— Ah — sua mão foi até a barriga. — Que fome. Está na hora da janta. O que vai ter na Academia?
Ele deu a volta e andou. Com o dedo girado no ar, o portal se abriu. Parou antes de entrar.
— Fico feliz que estejam bem — disse com um sorriso cansado. — Digam ao meu pai que estou trabalhando duro para conseguir trazer honra pra ele.
— Por que não vai vê-lo? — Silena falou rapidamente. — Você pode…
— Não posso ver a cara dele sem antes ter o mísero do que prometi. — Ergueu a mão em um aceno. — Diga pra ele que virei quando me tornar um Arche-Mago. Acho que vai ser suficiente.
Um tapa na cara, foi como Cairo se sentiu. Um título tão grande quanto Arche-Mago sendo usado como um objetivo pequeno. Qualquer Mago nas Caldeiras se sentiriam humilhados.
— E quando vai vir me visitar? — Silena perguntou. — Temos assuntos a tratar.
— Não faço ideia. Quando você se tornar a líder da casa Vidian, talvez eu apareça para sua celebração. — Orion sorriu e se despediu.
A barreira se desfez e a costa se tornou silenciosa.
— É como se ele não estivesse aqui — disse Cairo. — Uma magia espacial tão poderosa. Nunca vi alguém a usar de maneira tão natural quanto ele fez. Como conjurou sem uma runa?
— Pare de balbuciar sozinho, Cairo. — Silena tomou caminho para sua casa. — Temos muito trabalho a fazer.