Passos Arcanos - Capítulo 158
A chegada de Cersei foi encomendada numa péssima hora. Nenhum dos Selectores esperava por ela, nem mesmo Senma. O papiro especial usado deveria ter uma emenda e uma carta ou mensagem teriam de ser entregues ao diretor antes de qualquer movimentação.
Um ato bem desrespeitoso, Orion sabia. Desprezar Tauros pisando no Pátio Neutro sem falar nada.
— Senhora Cersei. — Tauros caminhou até ela, como de costuma de peito erguido, mas um olhar vacilante. — Esperava pela sua chegada na próxima semana, como tínhamos escrito um para o outro.
— Cartas são de uma época passada, jovenzinho. — Cersei bateu seus dois pés no chão, limpando-os de alguma crosta escura. — Quando mandou aquela carta, já estávamos meio mundo prontos para vir. Não pegamos vocês desprevenidos, certo? Eu me sentiria bem mal por isso.
A fala dela não combinava com os sorrisos do seu batalhão. Eles sabiam bem porquê chegaram cedo.
— A senhora não incomoda. Nossos alojamentos e o pátio reservado foram todos arrumados para seus homens. Se quiserem descansar, mesmo que por algumas horas, entenderemos.
— Acha que eles se cansam rápido assim? — Cersei perguntou com seriedade. — Meus homens são capazes de lutar uma guerra inteira e ainda assim estarem disponíveis para mim uma hora depois. São feitos de ferro e aço.
— Duvido muito disso.
A diretora olhou para Orion e Handley rindo um para o outro.
— E quem esse rapazinho seria? Ah, deixe-me adivinhar…
— Adivinhar? — O sorriso de Orion escapou, firmando o olhar contra o dela. — Sabe quem sou, senhora Cersei. E não tente usar nenhuma das piadas sobre Academia ou posição na minha frente, da mesma forma que seus Magos são feitos de aço, eu posso dobrar eles com a minha mão sem nenhum problema.
Ela soltou uma risada.
— Estão cultivando uma doninha, que fofo. Diga-me, rapaz, é filho de quem para falar de maneira tão hostil com uma das pessoas mais importantes do continente, se não da Ordem dos Magos?
Tauros olhou para Orion.
— Acho que já chega — disse o diretor. — Orion, supervisione a reconstrução do Lago Morto enquanto a diretora estiver presente.
— Perdoe se fui rude na sua presença, diretor. — Orion deu as costas. — Acima da senhora, diretora, existem cerca de cem pessoas mais importantes. Não se gabe por inutilidades.
Correr para atrás de títulos, história, da formalidade que a própria Ordem criou, esse tipo de gente dava nojo em Orion. Ele esteve atrás de poder para se tornar grande, e os grandes faziam de tudo para parecer pequenos.
Quantas vezes ouviu seu pai dizer “se quer impressionar alguém, não fale sobre o que fez, mostre do que é capaz agora”. E os maiores do continente surtavam sempre que ele elevava sua voz. Deixaria esse pequeno lampejo de lado para ajudar Lumiere.
Encontrou com ela do lado de fora das muralhas. Ainda usava uma runa de identificação, coletando informações sobre o solo e a água. Assim que se aproximou, com seus braços recuados as costas, ela ergueu-se velozmente.
— Estou terminando — disse, apressada. — Tive um descuido e usei a runa numa área larga demais.
Dava pra notar ao redor, cerca de duzentos metros foram limpos. A parte morta começou a definhar, e diferente de quando o Sol Negro foi ativado, ela não estava mais tentando comer a mana.
— Não se preocupe com isso. A situação mudou de rumo, quero que limpe um terço da área. Não precisa segurar. — Retirou uma esfera meio irregular, com algumas pontas e enrijecida. — Essa é uma esfera que coletei faz muito tempo, ela tem uma grande quantidade de mana e vai te ajudar.
Lumiere pegou. Sua sobrancelhas se ergueram na hora.
— É incrível. Onde encontrou por uma dessas?
— Eu quem fiz, quando estive em São Burgo.
— Você consegue produzir algo assim facilmente?
— Facilmente, não. Preciso de bastante tempo. — Orion caminhou para o Lago, Lumiere o acompanhou nos passos. — Vamos ter que começar a limpar os lados mais próximos da muralha por causa do projeto de Inicialização dos Fazendeiros.
Ela anotou em seu Quadro Arcano com velocidade.
— Depois teremos que aterrar para o plantio. Vou precisar que inspecione também os nutrientes e quais serão as melhores sementes para as estações. Nataniel, ele é o chefe dos fazendeiros, abriu uma concessão para discutir se a Academia poderia dizer qual os legumes e verduras poderiam ser plantados.
— Por que?
— É mais fácil para controlar qual a necessidade. — Chegaram perto da água. — Mas, pra isso acontecer, precisamos limpar essa água aqui. Eu prometi que faria ‘Água Viva’ na semana que vem. E odeio ter que prolongar promessas, Lumiere.
— Entendo perfeitamente. O processo de limpeza tanto da terra quanto da água é demorado, e uma pessoa apenas é um pouco… difícil. — Ela realmente trabalhava sozinha desde que Orion tinha dado seu aval para consertar aquele lugar fedorento.
Esqueceu que mesmo uma mente brilhante da Escola de Luz teria seu limite se jogados montanhas em seus ombros.
— Terá uma permissão do diretor para três assistentes a sua escolha. Ainda não saiu, mas faça uma lista dos mais promissores. Gostaria que fossem da Escola de Luz, por causa da afinidade.
Ela anotou novamente. Orion abaixou e tocou a água. A mesma sensação de antes, como se não existisse nada ali. Uma magia de ilusão não teria tanto poder e eu não sinto nada de runas passivas no fundo.
Usar o Sol Negro só lhe deu a resposta concreta de que o lugar era especial.
— Orion Baker.
Seu nome não foi chamado com respeito. Nem precisou se virar para entender que era um dos Magos de Arsenus.
— No momento estou ocupado. — Ele pegou outro frasco e uma runa de um metro a rondou. — Lumiere, quando voltar, quero que use a fornalha. Sabe como funciona?
— Eu vi você mexendo algumas vezes. Quer que eu purifique com calor?
Orion sorriu.
— Esperta. Sim, isso mesmo. Depois me mostre os resultados.
— Ei — o homem falou mais forte, chegando perto. — O que foi aquelas palavras com minha diretora? Que falta de respeito pra um Mago de Primeiro Núcleo. Eu nem acreditei quando…
— Se der mais um passo, eu vou te mandar para um lugar nada agradável, entendeu?
— Ora, pivete mal-educado.
Claramente, sua mana e seu corpo eram bem treinados. Um Mago de Terceiro Núcleo, no mínimo. E pela forma como falava, não era próximo da diretora Cersei. Numa tentativa de agradar seus superiores, ele veio como um cachorrinho.
— Quer mesmo fazer isso? — A mão direita de Orion se elevou. — Se me atacar, posso conjurar uma lei que ordene a prisão de todos os seus membros, além de deslealdade por parte da sua diretora, o que me dará cerca de 30 mil moedas de ouro em retribuição por danos morais e físicos.
— E sua escola perde o prestígio. — Uma runa cresceu no punho. — ‘Fike: Posse dos Alquinos’.
Uma magia de força de Grau Dois. Era o necessário para humilhar um Mago de Primeiro Núcleo, mas não matá-lo. Orion bufou. Ele me despreza ao ponto de usar uma runa tão fraca?
— ‘Somat: Palma do Inverno’
O punho se desdobrou para o lado e o peito do rapaz se abriu. Orion bateu e o estalo no peito repercutiu em uma onda violenta, o peito e os braços vibraram até serem jogados dentro de um portal.
Olhares curiosos, assustados e enraivecidos. Cersei fitava o dolorido rapaz gemer e depois a runa de Partículas sumir. Os braços de Orion voltaram para suas costas, e ele caminhou até a borda do portal.
— Eu vou dizer uma única vez, Magos de Arsenus. — Seu rosto cruzou com cada um. — Me lembro de cada rosto, cada nome e cada ação feita contra mim, e não me coloquem no mesmo nível que vocês. Não sou apenas um Mago de Primeiro Núcleo, sou um Selector.
Alguns ajudaram o rapaz se levantar.
— Ele tentou atacá-lo? — a diretora perguntou. — E você revidou mesmo sabendo que seria errado.
Tauros e os Selectores ainda estavam presentes, observando o amontoado de Magos e Arche-Magos se preparando. Precisavam de um único pedido de sua diretora e atacariam. Era um joguete muito fácil para Arsenus.
— Se quer falar de errado, olhe para o lugar que está, senhora. Minha Academia tem uma história, tem fundos, tem um plano e acordos, se quer simplesmente colocar isso de lado e acreditar que está certo porque acha que é uma das pessoas mais importantes do continente, eu te falo mais uma vez, existem mais de cem pessoas acima de qualquer um nessa sala.
— E eu conheço todas elas, pequeno Baker. — Ela mostrou um sorriso nada amistoso. — Claro, sabia que Magnus tinha um imenso coração quando recebia as famílias mais pobres. Sempre adorei isso nele, agora uma família desonrada?
— Um Baker acabou de colocar seu Mago de joelhos. Se nome fosse alguma coisa, eu respeitaria a Academia Arsenus. — Deu dois passos para trás. — E respeitaria seu nome, Cersei de Luca.
O portal se fechou.
Cansativo ter que lidar com a mesma coisa todas as vezes. Seu nome era apenas um nome, nada além disso. Realmente, ninguém o respeitava mesmo sendo um Selector, mesmo com inteligência e força do normal.
Quão longe um sobrenome pode ir?
— Aquela era… a diretora da Academia de Arsenus? — Lumiere perguntou um pouco nervosa. — Acabou de dizer que não a respeita.
— Ela me atacou primeiro, só devolvi. Vamos focar nos procedimentos do Lago na fornalha?
I
— Aquela magia — Cersei direcionou sua voz a Tauros —, ele consegue recriar portais normalmente? Como é possível? Lembro que Magnus dizia que fazia anos desde que um Mago espacial nasceu, e que sua possibilidade voltar era quase uma para um milhão.
Engraçado, a diretora parecia ser muita agressiva com Orion, porém, naquela sala sua leveza era clara. Não passava de uma pessoa visitando. Ele consegue irritar até mesmo uma pessoa fria como essa.
— Orion é um dos nossos prodígios — respondeu Poulius. — Também é um Mago de Matéria, o que ajuda com magias complexas.
— Então, um Baker é o trunfo de Magnus.
— Trunfos são apenas jogadas, senhora — disse Tauros. — Ele está responsável por questões cruciais na Academia. Agora, vamos conversar sobre o motivo de estarem aqui tão cedo.
— Questões de emergência, digamos. A Ordem emitiu um chamado dizendo que vocês não recebem faz quase dois anos e nós recebemos. Viemos entregar nosso livro de receita para entenderem que também não recebemos faz mais de dois anos.
Senma a olhou de modo cerrado, quase a cortando ao meio.
— E como tem se mantido tão estável durante esse tempo? — perguntou o velho bibliotecário. — As Academias de Hunos todas disseram que recebem, e vocês negam?
— Negamos. Como pode ver. — Ela passou o caderno cheio de contas e especificações. — Não digo que eles são mentirosos, só digo que estou no mesmo barco. Mas, respondendo sua pergunta, Arsenus sobrevive com muito mais do que agricultura, temos uma cidade capital e apoio de muitos patrocinadores e casas. Os mesmos patrocinadores que negaram esse último mês.
Tauros reprimiu seu anseio de dizer que ela mentia. Era diretor agora, deveria ser responsável. Pegou o caderno e leu superficialmente.
— Podemos ficar com ele por uns dois dias?
— O tempo que for necessário. Alias, quais de vocês Selectores estão a frente das dívidas de Magnus? Meu banqueiro tem algumas pendências a tratar já que estamos aqui.
Tauros abaixou a cabeça, voltando a ler.
— A pessoa que terá que procurar foi a mesma que jogou esse seu rapaz pelo portal.
— Orion Baker. — Poulius falou com satisfação e viu a face dela contorcer. — Terão que conversar com ele.
— Achei que o atual diretor teria um pouco de juízo em não deixar aquela criança…
— Questões cruciais, eu falei. — Tauros fechou o livro e passou para Senma. — Se quiser se encontrar com ele, posso agendar uma hora. Ele ainda é um estudante, assisti aulas e tem provas, a Academia deve respeitar acima de tudo a honra dos seus.
Cersei acenou como se fosse suficiente.
— Se querem estender essa brincadeira, que seja. Meu segundo assunto é sobre a competição anual dos Magos. Como vamos dar procedimento a ela?
— Da mesma forma de sempre. Um dia antes, iremos usar um pergaminho espacial e estaremos lá.
— E como farão para lidar com Gargantus? Ele tem estado bem impaciente desde que Magnus ficou doente. Está falando sobre vir até aqui.
— Um homem com bom coração e punhos fervorosos, mas ele é primo de Magnus. Tem total direito de estar dessa forma. — Tauros ainda não entendia como a família do antigo diretor era tão espaçosa e poderosa. — Iremos conversar quando estivermos na cerimônia.
— Aconselho a não levar mais do que vinte pessoas. — Cersei recebeu uma xícara de chá e agradeceu. — Aquelas velhas Olheiras vão estar lá. Campanário Verde está sofrendo baixas e mais baixas todos os dias, perdemos dois Arche-Magos numa emboscada num forte, e agora temos três bases a menos.
— Quantos pretende levar, diretora?
Ela maneou a cabeça com olhos pensativos.
— No máximo, uns dez. Meus discípulos não querem participar já que estão no Quinto Núcleo, então vou dar chance aos promissores do Quarto e Terceiro. E o senhor, tem em mente alguém?
— Quatro pessoas, mas apenas dois devem aceitar. A competição se tornou entediante depois que Gargantus começou a participar e levar seus rapazes.
Cersei teve que concordar. Beliscou o chá e respirou.
— Ele ganhou força muito rápido e também tem um método para criar Cavaleiros Mágicos. Ano passado ele deu uma surra em nossas Academias. Quero muito dar o troco, mas não tenho ninguém a altura. — Fitou cada Selector, um por um. — Acham que seu prodígio dá conta de Gargantus?
Que pergunta tendenciosa. Se respondermos que sim, ela sabe a força de Orion. Se respondermos que não, ela nos faz de bobo.
— Em lutas ou conhecimento, Orion é acima da média — Senma quem respondeu. — Ele é um Selector também.
— Isso não respondeu minha pergunta, senhor Senma.
— Achei que com o seu discernimento saberia interpretar minhas palavras da forma mais simplória possível.
A resposta do velho bibliotecário foi perfeita. Tauros agradeceria ele depois.
— Claro, dá pra ver que ele tem certa técnica — Cersei concordou. — Mas, quero algo definitivo. Já estou quase três anos sendo feita de boba por aquele idiota de barba ruiva.
E Magnus possuía cabelo e barbas brancos, era incrível como ainda eram parte da mesma família.
— Podemos conversar amanhã para chegarmos a um acordo.
— Seria adequado.
II
A noite, Cersei subiu as escadas para a torre na qual foi instalada. Ali, dormiria os próximos dois dias. Atrás dela, dois Arche-Magos, Kley e Thompson, ambos seus colegas faziam mais de dez anos. Ao se aproximar da porta, tocou a maçaneta e girou.
— Senhora, vai precisar de algo hoje?
— Me tragam o jovem Baker. — Ela entrou e antes de fechar, continuou: — Ele tem que estar vivo, sem erros dessa vez.
Kley abaixou sua cabeça e tornou a descer a escada.
— Thompson, venha me fazer companhia na cama hoje.
— Como quiser, senhora.