Passos Arcanos - Capítulo 162
Na manhã seguinte, todo o batalhão já estava pronto. Randysse reuniu os homens ao lado de fora, e nem um sinal de embriaguez podia ser visto. Tão fortes para a bebida que segurava suas armas, poliram suas armaduras e preparavam os cajados.
Cada Mago deveria ter mais de trinta anos, Orion se sentiu bem mais novo comparado a eles. Eram formados na arte de batalhas contra o Clero, contra os Feiticeiros e contra Demônios, fosse lá o que eram.
Farram fez questão de citar cerca de cada homem que matou na noite anterior, e adormeceu antes mesmo de terminar. O respeito era grande, um por um, eles trilharam seu momento para terminar uma guerra que se estendia por mais de mil anos.
— Tivemos um belo banquete ontem a noite — Randysse deu início ao discurso segurando a própria cintura. — Ontem ficamos no escuro, mas a Academia de Magnus fez questão de nos enviar um jovem com cintura e também cabeça. Para os que ainda não tiveram a honra — essa palavra soou firme, Orion gostou —, seu nome é Baker, e nossa missão será apenas uma. Protegê-lo.
Farram deu dois passos largos, quase desengonçado e parou ao lado esquerdo do Comandante.
— Esqueçam o Clero e a maldita guerra. Se não pudermos nos proteger daquela maldição, não podemos fazer mais nada. O próprio Clero deve estar aterrorizado, mas levando em consideração que eles possuem a Sacerdotisa de Giona, podem estar a salvo e só esperando, pacientemente.
— O Baker vai ter nosso escudo para livrar o mal do Campanário. Por isso, marcharemos até o Desfiladeiro para um reconhecimento padrão. Nossos batedores já estão andando, então, caso tenha qualquer tipo de combate, saberemos o mais rápido possível.
Randysse pediu que Orion se aproximasse. Ele foi a frente, diante mais de cinquenta Magos e alguns Cavaleiros esperando por suas palavras.
— Já tive o desprazer de ter lutado no Forte Drax como um mercenário — revelou tirando certa surpresa de alguns, incluindo Randysse. — Conheço um pouco do que é a guerra porque minha família viveu boa parte de sua história onde vocês estão hoje. Sou um fruto amargo do que conflitos tão longos produzem, e sei que os senhores sabem tão bem quanto eu que palavras ou gestos de compaixão não farão nossos inimigos recuarem. — Tocou o próprio peito. — Não é um pedido, mas uma suplica, enquanto eu estiver aqui, garantirei que nenhum de vocês seja levado por surpresas que se escondem atrás da noite. Então, por favor — inclinou-se gentilmente —, que sejam a minha espada e o meu escudo hoje.
Farram ficou impressionado. Orion assistiu Randysse retirar sua espada da cintura e apontar para ele.
— Por ter salvo meus colegas, meus amigos e irmãos, juro que farei o possível e o impossível para que fique bem. — Olhou para os seus homens e vociferou. — Magnus nos enviou um jovem talentoso e humilde, e no nosso lema, como o Segundo Esquadrão do Bosque Amarelo, nunca deixamos um aliado para trás.
— Sim, senhor.
— Marcharemos, como fazemos, para a vitória e que os deuses dos Clero e dos Feiticeiros os protejam, porque nós não teremos piedade.
Palavras inspiradoras, as armas erguidas e os gritos foram surpreendentes para Orion. Esse tipo de habilidade demandava uma energia diferente, era como dar voz aos desejos dos outros, algo que ainda não tinha notado.
Grandes líderes poderiam criar uma nação que os apoiasse apenas por saberem falar, isso era um fato nos livros de sociologia de Hunos. Presenciar alguém capaz disso era uma outra história.
Randysse tinha uma habilidade que poucas pessoas dariam a vida para ter, e ainda assim, com uma vida inteira, não seriam tão bons quanto ele.
— Baker nos disse que tem coisa boa para nos mostrar — Farram anunciou abafando os gritos. — Vamos ouvi-lo, pessoal.
— É verdade. — Orion arrastou a mão em frente do seu peito e uma runa triangular cresceu com fios, círculos e quadrados bem espalhados num plano bem estreito e bem preciso. — Eu sou um Escolástico, formado e graduado, por isso, tenho algumas coisas que seriam interessantes. Esse é um projeto pequeno conhecido como ‘Comunicação Via Mana.’ Cada um de vocês receberá uma runa dessa, ela não machuca, então podem deixar no braço ou peito. Vai servir para se comunicar em um campo limitado, apenas os que possuem poderão ouvi-lo.
Uma produção de quase cinquenta sendo que a runa matriz, que serviria como um banco de dados e também um repetidor, estaria com Orion.
— Possui um alcance de um quilômetro e qualquer um poderá ouvir suas palavras se ela estiver ativada. Randysse e Farram vão demonstrar.
O Comandante disse algo e o som não se propagou, e Farram respondeu logo em seguida, cruzando os braços. Até mesmo a risada dos dois foi abafada.
— Agora, ativem a runa, todos vocês.
Os cinquenta fizeram. A runa de Orion oscilou, mas ele puxou mais mana do ar e fortificou as laterais. Em alguns poucos segundos, o esquadrão entrou em comunicação. Eles podiam ouvir qualquer um do lado de fora, mas apenas os ‘internos’ o ouviriam.
— Realmente, é uma magia muito boa. — O Mago Cliff analisou algumas vezes os círculos. — Disse que é graduado em Escolástica, quantos anos tem mesmo?
— Faço dezenove no mês que vem.
— Um bom talento — respondeu com satisfação. — É bom ter alguém como você do nosso lado, Baker.
Os outros agradeceram de suas formas, com acenos e gestos. Se seu pai visse como eles valorizavam um Baker no campo de batalha, choraria. Orion segurou a própria felicidade e guardou no peito.
A confiança depositada nele, não importava o custo, faria o possível para ajudar.
Foi dessa forma que deixaram abaixaram o acampamento e seguiram para dentro da floresta. A mata era menos densa pela trilha que tomaram, sendo que as árvores subiam e desciam declives, era possível ver a raiz de algumas delas, e as folhas que voavam com os ventos vindo de cima.
O Campanário tinha três biomas, era certo, porém, seu terreno era completamente irregular. Fizeram uma curva na trilha com um buraco a direita. Apenas o som dos passos do esquadrão era ouvido.
De tempos em tempos, um batedor voltava e relatava a área em um quilômetro. Quando o limite da distância se aproximava, a runa avisaria com um pequeno brilho e também uma sensação de formigamento.
Três horas caminhando no verde e amarelado, Orion teve o vislumbre de um campo aberto onde rosas vermelhas criavam uma bela exposição de sua cor. Randysse o notou observando.
— Um batedor disse que lá tem uma estranha criatura que gosta de comer carne. Não nos aproximamos desde então.
Orion criou uma runa em seu olho, a mesma que havia dado para Tito em São Burgo, e chegou perto.
— A mana lá é mais densa, mas não tem nenhum sinal de vida. Pode ser que seja algum camuflador, mas os campos são feitos de rosa, podem ser insetos também. Campanário Verde já foi o lar de diversas criaturas que foram extintas por causa da guerra.
— E todas elas bem mortais — Farram comentou mais de trás. Ele sempre seguia o Comandante pelo menos dois metros afastado. — Não tivemos sorte em mapear toda a área, por isso usamos as trilhas. Nossos batedores fazem a ronda usando Velocidade, o que dá uma vantagem normalmente acima de qualquer criatura que ainda vive aqui.
Usar Velocidade era o correto, mas o rastro deixado também era alto se não fossem cuidadosos. E muitos insetos e quadrupedes cheiravam suas presas a longas distâncias.
Passaram pelo campo de rosas e se aproximaram de mais duas horas de caminhada. Pararam para o almoço. Sentaram e montaram uma fogueira pequena. O cozinheiro usou uma magia de invocação e fez uma mesa de metal crescer para preparar a carne e outro tirou carne de sua sacola espacial.
Todos sabem bem o que fazer, pensou Orion.
— Baker. — Cliff o saudou quando se aproximou. Sentou-se no tronco ao seu lado. — Disse que é um Escolástico, certo? Pode dar uma olhada em algo que achamos no ano passado?
— Claro. — Pôs o cantil de água no chão ao lado da perna e pegou o papiro amarelado e bem desgastado das mãos do batedor. — Parecer ser uma magia de marcação. Cada círculo indica precisão e as ligações rotacionam para um alvo. Tem algumas pequenas falhas nas laterais e essa é a só o primeiro plano.
— Primeiro plano — Cliff coçou a bochecha algumas vezes. — Dá pra usar de alguma maneira?
— Se alguém achar os outros planos, então, sim. — Ele devolveu o papiro. — Mas, é uma magia de marcação. Ela vai deixar o alvo em destaque, e todas as magias vão ser direcionadas a ela, como uma ímã.
— Da pra usar para fugir. Marcar uma árvore ou uma pedra no meio de um ataque surpresa.
Orion pensou parecido.
— Existe uma possibilidade de você marcar um inimigo e fazer as magias que estão usando contra você voltem para eles. Posso tentar projetar algo parecido, se achar que tem necessidade.
Sua cabeça balançou velozmente.
— Consegue?
— Posso tentar. — Claro que posso, na verdade, já sei exatamente como montar. — Me dê umas horas e posso projetar um esboço, depois passo para uma runa já criada que chega perto e tentamos usar.
Cliff assentiu e se levantou, partindo.
Passou apenas dez segundos, Randysse trouxe um prato com grandes fatias de carne de porco.
— Aqui. — Entregou o prato e outro cantil. — Se precisar de qualquer coisa, só falar.
— Estou bem, obrigado.
Ele não se foi. Reparou que olhava para os lados, meio inquieto. E também mexia os pés em ângulos.
— Quer conversar sobre alguma coisa? — perguntou Orion já sabendo a resposta.
— Na verdade, tem sim. — Ele agachou e apoiou-se no chão com a mão. — Você disse que foi ao Forte Drax, é um campo que foi dominado pelo Clero fazia bastante tempo. Quantas… baixas tivemos lá?
— Baixas? — Orion o olhou pensativo. — Não falaram o que aconteceu?
— É muito difícil receber notícias aqui no Campanário. Sempre recebemos informações parceladas, por isso que não fazemos ideia. — A preocupação dele era verdadeira. — Perdemos muitos homens?
— Não, eu estava lá. Os Campos e o forte foram todos dominados pela Ordem. Não sei como eles estado contra os ataques das cidades, já que são bem próximas, mas pertenciam a nós até eu vir para cá ontem.
— Isso… sério? — Ele soltou uma risada envergonhada. — E achar que finalmente conseguiram pegar aquele lugarzinho infernal. E como foi a ocupação?
— Dura, tive que usar uma magia de invocação para marchar com soldados negros para os portões. Alguns amigos desativaram as barreiras e derrotamos eles em uma noite. — Orion contou sobre os detalhes com os mais fortes Sacerdotes do lugar e a boca de Randysse se abriu pouco a pouco. A runa de comunicação estava ligado, e aos poucos, o silêncio se tornou comum para ouvi-lo dizendo como a Ordem tomou conta de um dos lugares mais importantes economicamente. — No final, o Clero enviou um esquadrão, mas ganhamos dele também. Foi uma semana bem difícil.
— E depois, você retornou para São Burgo?
— Sim, e depois disso parti para Cedero.
— Nossa. — Ele já havia sentado, apoiando os braços nas pernas. — Nunca achei que sua bagagem fosse tão longa.
Orion comeu o resto da carne e o alface numa bocada só.
— Eu tive sorte, não digo o contrário. Sou um Mago de Matéria, então, posso conjurar magias diferentes e me adaptar, mas treinei para ser Cavaleiro e sou um Escolástico. — Deu uma risada. — Meu pai acharia que estou me gabando para vocês. Ele me odiaria se ouvisse isso.
— Ele deve estar orgulhoso — Farram falou do outro lado. — Você tem coragem, garoto. Não é qualquer um que entra de cabeça para salvar desconhecidos.
— Isso é verdade — Cliff disse. — Quando chegamos aqui, cada um de nós deixou algo para trás, por isso que é satisfatório ouvir alguém do continente lutando tanto pelos outros. Porque, quando chega de noite, as vezes nós achamos que estamos aqui por nada.
Se o Comandante iria repreendê-lo, era a hora. Orion viu Randysse Prime fitar o chão.
Mesmo um discurso belo no começo do dia não tira os pensamentos da vida e da morte. Os rostos caídos e olhares mórbidos. Eles estão aqui tempo demais e sem uma vitória importante. Acabar com a maldição vai animar eles?
— Conheci muita gente que acredita em vocês — respondeu a eles. — Pessoas que vivem bem hoje porque suas espadas são afiadas para derrotar o mal. Eu li a história da guerra mais de cinco vezes, toda ela, do começo ao fim, até aqui onde cada um de vocês foram nomeados como Magos ou Cavaleiros, e eu continuaria lendo por mais cem anos se pudesse. — Soltou um sorriso fraco. — Meu pai viveu a vida toda na guerra e em vinte anos da minha vida, ele nunca abriu a boca para falar de como perdeu minha mãe ou perdeu a mobilidade da perna direita, apenas diz que foi um ferimento antigo, mais antigo do que eu. Ele não se gaba, não se orgulha e nem abre a boca para os outros dizendo que os Baker foram grandes guerreiros. Ouvi ele chorando algumas vezes de madrugada ou quando tomava café olhando para a nossa plantação de arroz, e ele dizia que estava bem ali. Passamos muita coisa, mas ele nunca disse que voltaria para cá. — Balançou a cabeça, negando. — Ele jamais quis que eu viesse pra cá, mas eu preciso. Vocês tem seus objetivos, tem seus sonhos, e vão ser heróis quando forem embora, mas não…
Orion parou. Virou-se rapidamente e ergueu a mão. Os outros fizeram o mesmo.
— ‘Gali: Tufão Largo do Oeste’.
O ar se desdobrou e arrastou-se por cima dos galhos. Ouviu-se um grito feminino. Orion remexeu o dedo e o forte vento fez uma curva, a jogando contra o chão. Outra figura pulou para longe, fugindo.
— ‘Somat: Posições Variadas’.
Um portal se abriu ao lado de Orion e ele ergueu a mão. Um outro portal cresceu na frente da figura saltando. Os dedos se fecharam a garganta dele e o puxou para frente. O portal se fechou.
O tufão se ergueu e trouxe consigo a mulher desacordada.
— Que precisão. — O Comandante ficou de pé. — Nenhum dos nossos batedores conseguiu sentir eles.
Os dois foram virados de costas. Orion puxou a gola da nuca, uma runa cinzenta brilhava sob a pele.
— Magia de ilusão, camuflagem. — Fechou duas magias de contenção nos dois e se afastou. — Conhecem?
— Claro, são os batedores do Esquadrão do Inverno Sombrio, também faz parte da Ordem. Essa é a roupa clara que eles usam, mas não eram para estarem tão longe. Da última vez que entramos em contato, eles avançaram sobre a Ruína de Cro. Deviam estar lá.
Orion sentou-se e deixou o Comandante e Farram fazerem seus trabalhos. Cliff ficou ao seu lado, assistindo.