Passos Arcanos - Capítulo 164
Lingot foi entregue aos seus últimos subordinados vivos por Oblak. Seus ferimentos espalhados eram bem feios, mais do que qualquer um pudesse ajudar. Então, um dos soldados negros se abaixou, esticando ambas as mãos e uma runa se esticou.
A luz envolvente foi fraca e bem quente. Ela conseguiu abrir um dos seus olhos, e suspirou com dificuldades.
— Quem está fazendo isso?
— É um Mago, senhora. — Lingot reconheceu a voz de Geisho, era um dos homens, ainda preso. — Ele matou os Feiticeiros que estavam protegendo a campina e agora está lá dentro.
Isso era péssimo. Na Sala do Trono existia uma criatura maligna, que falava pela mente e sabia seus desejos mais impuros. Ter sido derrotado porque sucumbiu ao que queria era humilhante.
— Merda — ela tentou se levantar. — Se ele ficar lá por muito tempo, sua mente vai acabar sendo consumida.
Reparou nos seus ferimentos. O Mago que a curava não era humano. Tão negro como a noite e com olhos vermelhos, ele replicava uma Magia de Quinto Grau com grande eficiência. As queimaduras dos ácidos e também as ferrenhas cicatrizes das espadas enferrujadas foram drenadas ao ponto de não sentir mais na pele sua dor.
Tal magia sendo utilizada por uma invocação, e tantos deles. Lingot contou mais de cem presentes, os protegendo fortemente. E seu líder, dentro de Cro, confrontava um inimigo quase invisível.
— Digam. — Virou-se para os seus homens. — Fizeram um alinhamento da força dele? Qual núcleo ele pertencia?
— Senhora, eu tenho certeza que era Primeiro Núcleo. — A mesma face do seu subordinado, a confusão, ela também reproduziu. — Quando ele nos trouxe para o chão, usou uma magia espacial. Eu só vi relatos dela pelos livros, foi incrível.
— Então, ele está usando alguma magia de supressão — era sua única pista. — Mas, se fosse para dar um nível, qual seria?
— Arche-Mago, senhora.
Era óbvio. Um homem confrontando um exército e ainda sendo vitorioso, não uma vitória precária, mas uma completa sobre um oponente incrivelmente forte. Ele só poderia ser um Arche-Mago.
Cerca de vinte minutos se passaram. Lingot teve os ferimentos bem curados, mas ainda eram graves pela forma como sua pele sofreu. Claro que as magias eram um suporte, nunca esperou que estivesse pronta para lutar novamente depois de um curto espaço de tempo.
Já era surreal estar de pé, mas assim que tentou andar, os soldados negros a olharam. Suas presenças esmagadoras a fizeram sentar.
— Eles não nos deixam sair — Geisho falou. — Parece ser uma ordem direta daquele homem.
I
A sala inteira se tornou um breu, e mãos subiram do solo, agarrando suas pernas. Seu corpo foi puxado para cima e seu pescoço preso por garras, arranhando-o. As roupas sumiram, nu, visto por uma figura imensa, com pressão descomunal.
Os gritos e desesperos ao redor, praticamente o mundo dizia em seus ouvidos sobre sua perda e lástima.
— Aqui é meu santuário — a voz do Feiticeiro Angulor Hatashi ecoou. — Um segundo do lado de fora equivalem a cerca de um dia aqui. Pretendo te deixar mais de mil anos agarrados a dor eterna, sentirá cada parte do seu corpo doer e nunca se esquecerá disso. Esse é o verdadeiro poder.
Os grandes olhos recaíam sobre Orion. Não emitia medo ou desespero.
— Um Mago foi preso em um espaço confinado por mais de dez mil anos padrões, e voltou apenas depois de um único dia para seu mundo real. Ele nunca mais foi o mesmo porque sabia que o tempo devoraria sua mente.
O Feiticeiro soltou uma risada.
— Grande Mago Rabino Cessaro.
— Claro que foi você, não é?
— Viver por mais de mil anos, eu disse que tenho essa proeza. Ensinei alguns dos meus discípulos como Green Shay. Nunca fui superado, nem por um Mago, nem por um dos meus. — Houve uma pausa. — Eu vejo sua mente e sei o que está pensando, não funcionará.
— O tempo é distorcido, assim como o espaço. Posso ficar aqui por mais tempo que você, se desejar, e ainda assim, nunca terá conseguido superar minha mente. — Orion mostrou um sorriso de lado. — Eu sou mais teimoso do que imagina.
— Veremos.
Um dia. Espadas e lanças perfuravam seu peito e sua carne se curava segundos depois. Sua cabeça foi cortada e voltou ao lugar. Seu braço decepado e recuperado. Perfurações por toda a carne ao mesmo tempo.
Vou me lembrar disso.
Uma semana. As chamas nasceram do chão. Queimaram até que virasse cinzas, ele não gritou. Foi afogado por uma tsunami, preso por pedras e tirado o oxigênio de seus pulmões. Ele voltava segundos depois.
Vou me lembrar disso.
Um mês. As pessoas que Orion conheceu em vida, todos os rostos lembrados, apareceram com as armas em mãos. Cada um dos milhares, das centenas de milhares que conheceu durante sua vida, que viu nos livros, que decorou, o perfuraram centenas de milhares de vezes.
Nada disso vai ser esquecido. Nada.
Sua raiva aumentava de acordo com o tempo. Dois anos. Dez anos. Vinte anos. Cem anos. Ele ainda encarava o olho no alto, sabia que o feiticeiro assistia sua dor. Ele só queria um pequeno lapso de desistência, apenas uma pequena brecha.
— Não vai conseguir — respondeu depois de sua cabeça ser reposta no lugar. — Eu entrei aqui por um motivo.
Outros cem anos se passaram. Nada de novo aconteceu. A dor diminuía. E Orion sorria para aqueles pares de rubis no céu.
— Não está vendo que perdeu? — Ele gargalhou freneticamente. — Eu não posso ser morto.
— Então, veja quem ama ser.
Seu pai foi o primeiro. Por mais de cem anos, assistiu o homem que mais admirava ser estraçalhado por armas, magia. Cada morte representava um ano naquele mundo enegrecido. E ainda assim, Orion não sentia nada além de tédio.
— São apenas figuras.
Mais quinhentos anos se passaram.
— Por que? — a voz do Feiticeiro não era mais confiante. — Por que você não está cedendo? Todos eles cederam. Todos aqueles malditos magos cederam suas mentes para mim. Me diga o que você mais ama e eu vou destruir.
— Está realmente querendo meu corpo tanto assim para implorar?
— Diga-me, humano. Eu leio sua mente, faço de tudo para matar essa sua arrogância. Mas, esses seus olhos. — Ele soltou um gruído desprezível. — Eles não cedem. Por que você não morre?
— Quando me disse que me colocaria para dormir num sonho de dez mil anos, eu já sabia do que se tratava. — Orion abriu sua boca, os olhos arregalados. — Para testar minha loucura, para testar minha vontade, nada disso importa pra mim.
— Você é maníaco. A dor que sentiu, a raça humana nem chega perto.
— Eu me lembro de cada parte dessa vida. — O Sol Negro forçou em seu peito e tudo ao seu redor virou pó. — Eu queria saber como era estar na sua pele, sofrer por tanto tempo e ainda desejar algo. Mas, você é fraco. Precisa de um corpo novo, precisa achar alguém forte. Queria Lingot, mas perdeu para esse humano.
A raiva, Orion sentia que o mundo inteiro oscilava com seu aumento. O Feiticeiro nunca tinha sido combatido dessa forma. Dentro da própria magia, os seres que a habitavam se tornavam invencíveis. Era o orgulho posto a prova.
Vença de maneira perfeita uma luta que ninguém acha possível sair vivo.
— Está tudo bem. — Orion mirou seu braço com o Sol Negro para os dois pares de olhos sanguinários. — Farei o favor de te dar uma morte lenta sendo consumido por mim.
O segredo para não ser dominado? Ler cada parágrafo novamente, reviver cada emoção, cada diálogo, cada cenário, rever sua trajetória, rever cada magia, rever cada vírgula nos textos, suas batalhas, suas derrotas, suas vitórias.
— Mil anos no seu inferno não é nada pra quem leu mais de dez mil anos de história e sabe cada passo. O Sol Negro absorve o mundo, e tudo o que há nele, então, fique calado e seja meu alimento.
I
Por mais de vinte dias, Lingot esperou o retorno do Mago. Nada. Nenhum sinal dele. Sua presença como o do Feiticeiro haviam sumido. Ela sabia o que significava. O ‘Mundo da Morte’, como foi dito pelo desgraçado que a prendeu lá.
Foi necessário dois dias de dor, de sofrimento, de angustia para permitir que ele entrasse em sua mente. Também foi dito a ela como funcionava. Um dia dentro equivalia a um segundo do lado de fora, o que significava que ele já tinha passado aquela angustia inteira dela, e ainda permanecia.
Houve, no entanto, uma vibração constante. De dentro da montanha, um grito ecoou e morreu velozmente. Os homens atrás de si foram todos pegos de surpresa, até mesmo Lingot teve os pelos erguidos.
Algo tinha acontecido depois de tanto tempo. As invocações sombrias ergueram suas cabeças juntas, um por um, eles dobraram seus joelhos.
— Por que estão fazendo isso? — Greisho perguntou. — Por que as invocações estão se ajoelhando?
— O mestre delas retornou.
No alto, saindo de dentro de Cro, o tal Mago. Era bem novo, com uma roupa de batalha limpa, e um emblema no peito direito que Lingot reconheceu com dificuldade. O que chamava sua atenção mais do que isso era o que carregava em mãos.
A cabeça esquelética foi erguida para que os servos negros vissem. A boca do Feiticeiro estava sem língua ou dentes, seus olhos cobertos por um pano branco e seus poucos cabelos agarrados pelos dedos firmes.
No momento seguinte, ela explodiu em fragmentos.
— Isso é mana — disse um dos seus homens ao lado.
E ela inteiramente foi puxada para dentro do corpo do homem.
— O que ele acabou de fazer, senhora? — Greisho rapidamente perguntou, assustado.
Lingot não podia de ficar perplexa. Vinte minutos, foi o tempo que seus rastros desapareceram. Por todo esse tempo, ele permaneceu dentro do Mundo da Morte, e voltou carregando a cabeça do inimigo que tinha planejado a destruição do seu batalhão.
Vinte minutos, mil e duzentos dias. Esse foi o tempo que aquele Mago, jovem em aparência, permaneceu convicto e invicto perante a morte. Sofrendo e recebendo dor. Um Feiticeiro que viveu mais de mil anos, derrotado por ele.
O tanto de sofrimento que teve de passar.
— E seus olhos não oscilam. — Isso a prendia. O escuro glóbulos, forjados por uma escuridão insondável, fitava a área verde com tédio e indiferença. — Não somos nada, nem mesmo um grão de areia para o que ele pode fazer.
Suas palavras foram ouvidas. Lingot se ajoelhou, como os Cavaleiros Negros e abaixou sua cabeça. Respeito, admiração, temor e inveja. Não iria se opor a alguém que lutou contra a morte por mais de mil dias.
— Não foram apenas mil dias — algo sussurrou em sua mente. Um lapso, de mais de mil anos, em flashes, foram mostrados. Ela caiu para trás. Seu peito ardia e sua mente bagunçada. Viveu por tanto tempo, lutou contra tantos inimigos, e nunca vivenciou aquilo.
Medo, desespero. Fuja, sua mente gritava.
O Mago, não. Ele não podia ser chamado assim. Ele era uma lenda.
— Mil anos — gaguejava e tremia. — Como alguém permanece mil anos… naquilo?
O homem deu um passo na direção do abismo e um portal se abriu. Ele saiu andando e parou em frente a Lingot. Mesmo assim, ele não transmite nada de ruim. Como aquilo não o afetou?
— A senhora está bem? — a pergunta pareceu firme, porém, Lingot não sabia responder. Tremia de medo. — Desculpe, você também passou por aquilo, não foi? Eu tive que derrotá-lo no próprio jogo para conseguir sua mana.
Não, eu não posso ficar de cara a cara com ele. Ela se jogou pra frente, ajoelhando e tocando a testa na grama.
— Perdão, senhor. Perdoe minha ignorância.
— Está tudo bem. — Ele a tocou no ombro. — Não sou como ele. Pode ficar tranquila.
Ousou olhar para cima. O sorriso, mesmo naquele inferno, ele sorria.
— Está tudo bem — disse o Mago. — Tudo vai ficar bem agora. Prometi a Randysse que te levaria em segurança, e cumpro todas as promessas que faço.
Lingot nunca teve contato com Anciãos, apenas soldados, capitães, sargentos e comandantes. Até mesmo os líderes da Ordem já fizeram uma aparição. Ela analisou seus rostos, emoções e porte. Existia um pouco de ego em cada palavra, como se fossem grandes, imbatíveis.
— Um homem pode morrer a qualquer instante. — Seu professor na Academia sempre dizia. — Ninguém é invencível. Mas, se existir alguém que possa te passar essa sensação, seria mais ou menos a leviana cordialidade mundana.
Na época, Lingot não entendeu o que ele queria dizer. Voltou a conversar, algumas outras vezes, para entender como ser invencível. Essa era uma palavra que buscava para que nunca fosse superada no campo de batalha.
Aos seus setenta anos, Trevor Filish, seu professor, sorriu para ela.
— Será uma mistura de tudo, minha aluna. Medo e coragem, raiva e amor. O desespero e a esperança. Uma pessoa invencível reconhece o que ela realmente é. Nesse momento, ela sobe um degrau que apenas uma pessoa em trilhões poderia.
— Você — Lingot falou, sem querer. — Você é ele.
A face do Mago se curvou, em um sorriso curioso.
— Sou o quê?
— A lenda que meu professor contava.