Passos Arcanos - Capítulo 179
— Você caiu aqui por desatenção. Prestou atenção no movimento futuro e não entendeu o presente. Simplesmente agarrou-se na possibilidade de enxergar o que jamais esteve em sua posse. Por situações antigas, nem mesmo um humano teria tanto potencial para se manter vivo.
A água era muito fria. Orion sentia-se paralisado, no entanto, respirava normalmente.
— Quando eu me afastei da minha casa, nos topos das Nuvens Sagradas, achei que teria facilidade em me comunicar com os humanos. E antes mesmo de falar, me atacaram com suas magias meia boca, mas aquele merdinha que usava gelo era bom. Sim, ele usava um Sumona dos Anões. Parecido com esse ai no seu pulso.
O Oceano Congelado era tão escuro, apenas um pontinho de luz aparecia cortando de um lado para o outro. Era azulado também.
— Quando fui congelado aqui, minha amada mãe achou que eu tinha fugido e me enfiado em algum daqueles conjuntos de criaturas milenares. Não posso me comunicar com ninguém, mas posso ver pelos olhos dos meus irmãos. É triste vê-los desesperados. Nunca achei que encontraria alguém que também fugiu de casa.
— Não… fugi.
— Claro que fugiu. Deixou seu pai sozinho, carregou um fardo pesado para si e está tentando chegar ao topo do mundo para ter a honra de volta. Esconder de mim suas lembranças é difícil, ainda mais para alguém que não se esquece de nada, não é?
Seus braços não se mexiam.
— Aqui embaixo, o tempo é estranho também. Claro, você viveu mil anos sofrendo, como eu. Os anos se passaram bem, mas o Congelamento Infinito que me foi enfiado tem esse problema. Nunca vou morrer, mesmo que me acham. E eu não poderia ser invocado, como Rock Albone achou.
— Não? — As forças eram poucas até mesmo para sentir dúvida. — Como não?
— As lendas são todas difíceis de acreditar. Um Dragão que esperava ser libertado para dar seu poder e esmagar seus antigos inimigos. Um Mestre Dragão que faria de tudo para ensinar alguém digno ou, fanáticos por poder, como Rock, acreditaram que um Núcleo Mágico Puro, nascido da realeza do Extremo Norte, tão gelado quanto a magia que me prende, suspenderia a runa.
— A magia… é infinita.
— A magia, sim. Quem a conjura, nem tanto. No entanto, quando eu era mais novo e voava pelos céus, minha mãe contava uma história interessante. Do homem que conjurava as estrelas, um homem que tinha o poder de fazer a magia se transformar em mana e a mana em magia.
Orion sabia do que se tratava.
— O Sol Negro.
— Uma lenda ainda maior que a minha, por assim dizer. E eu achava que continuaria sendo tão irreal quanto me salvar, mas agora, o destino nos uniu, Orion Baker. Eu não quero ficar mais preso e você quer sobreviver, não quer?
— Quero.
— Quer ter poder para dizimar seus inimigos?
— Quero.
— Me faria o favor de me deixar ser sua visão? Uma troca justa. Puxe essa magia irritante para você e sele um acordo comigo. Estaremos juntos, lado a lado, para chegarmos ao topo juntos. A vida me deu uma oportunidade, agora falta você me dar.
— Você é um Dragão, Carsseral. Por que precisaria de mim?
— Porque nem mesmo Dragões podem fugir da morte, mas as lendas dizem que o Mago que conjura as estrelas pode.
O par de olhos dourados e esverdeados, uma mistura excêntrica, se abriu diante o minúsculo corpo de Orion. Sentia a presença esmagadora sobre ele, prestes a ser devorado. Prestes a ser mandado para os confins do inferno.
— Seu medo é real. Sabe controlá-lo melhor do que os humanos que conheci antes de vir para cá. Não terei arrependimentos se for você. Estique sua mão e faremos o acordo. Me tire daqui e serei seu guia espiritual.
— Guia? — Orion nem prestou atenção, mas seu braço se esticou sozinho. — Quero que me ensine. Quero nunca mais sentir esse nojento desejo de querer sobreviver. Achei que não sentiria mais depois de Campanário, mas…
— Ele sempre volta. É normal. Aceito sua oferta. Agora, me tire daqui.
O Sol Negro tomou conta de seu braço esquerdo completamente. E a quantidade de mana que foi enviada para dentro de Orion o fez gritar.
I
— Matilda Defoul. — As chamas azuladas corriam de um lado para o outro. A bomba de água fria se erguia, bloqueando seu avanço e libertando uma nuvem de calor para o alto. Rock Albone não havia se mexido desde que a luta havia começado, apenas usando seus punhos para os golpes a longa distância. — Eu sabia que você viria quando seu irmão estivesse em perigos. Mas, trazer a matilha toda que comanda o Oceano Congelado? Isso não é normal.
A batalha se desenrolava com a perda do lado de Matilda. Os Feiticeiros em maior número, os disparos de Nayomi não tinha tanta efetividade do solo, mas não a deixaria correr por ai quando tantos procurados perigosos procuravam suas cabeças.
Os Campeões da Luz eram muito mais fortes e sedentos por sangue do que qualquer outro. A batalha em si não daria o prazer, apenas o sangue. E vendo que nem mesmo Charlote e Johan, dois diretores, venciam com facilidade, não deixaria sua filha ir adiante.
— Nero — chamou Matilda. — Apoie Gargantus. Os Sete Demônios ficaram poderosos demais por conta dos ventos. Retire o ar ao redor e puna os Feiticeiros. Crisy, use Montanha de Pedra e sele os procurados para mais longe.
— Sim, senhora.
Rock gargalhou.
— Ainda que lute comigo, está coordenando uma estabilidade para que possa se beneficiar depois. É verdadeiramente uma general. — Ele bateu a palma e mais chamas explodiram de sua pele, expelindo para os lados e acertando seus aliados. — ‘Viesk: Camada de Proteção’.
Piorou mais ainda. Nero não poderia usar nenhuma das suas magias, primeiro por estar sem mana, e segundo que só fortaleceria as chamas azuladas. Diferente das vermelhas, essas eram muito mais propensas aos elementos.
Seus ataques com a água não faziam tanto efeito. O Fogo Azul, produzido pelo interior dos homens, apenas extinta pelo consumo excessivo. Matilda olhava para todas as frentes que enfrentava, nada ia como esperava.
E ouviu um baque forte. Gargantus caiu de costas dez metros a sua direita, de costas, todo chamuscado. Sua couraça foi queimada e seu braço carbonizado a pele ficar negra. Ele demorou para se pôr de pé, e foi quando reparou que sua perna esquerda tinha ferimentos graves também.
— Mãe — Nayome gritou pelas suas costas. — Estamos perdendo visibilidade por causa da fumaça. Permissão…
— Não. Assim que acharem uma porta entre os movimentos, recuem. Não temos como vencer aqui, não com os Sete Demônios sendo protegidos pelos Feiticeiros no ar. — Para matar suas montarias, precisariam de mais do que só disparos.
Nero e os diretores se atentaram. Suas palavras eram óbvias — recuem e sobrevivam.
— Está na hora de marchar para a morte do Império Nortenho. — Rock apontou para frente. — Feiticeiros, disparar a Marcha.
Matilda ficou chocada. O brilho no céu, tantas runas sendo forjadas de uma só vez, e mirando para baixo. A mana de centenas apontadas para um aglomerado no chão. Havia os feridos sendo afastados e dezenas de Cavaleiros expostos.
Uma magia dessa magnitude seria capaz de matar metade do seu batalhão.
— Capitã. — Johan e Charlote afastaram os Irmãos Morte para muito longe. — Recuem com o Imperador. Nós vamos conjurar o campo de defesa.
Sem hesitar, ela concordou.
— Obrigado pelo seu sacrifício. Aos dois.
— Não é como se nossa Academia fosse ser destruída por conta disso. — Johan mostrou um sorriso de canto, um de dor, não de alegria. — Agora, por favor. Vão.
Ele tocou o solo e o gelo se desmembrou pela runa, sendo drenado constantemente e avançando para dentro de sua pele. Num giro de seu braço no ar, uma extensa camada marrom expandiu. E ao afogar a runa entre seus dedos, mais mana foi incorporada.
Charlote aplicou um movimento parecido, usando seu próprio núcleo mágico para ganhar força. Seria drenando da sua história, do seu comprometimento, da sua essência de Mago, que tomaria poder suficiente para protegê-los.
Os dois, por usarem seus próprios núcleos mágicos, seriam rebaixados a meros Magos de Quarto ou Terceiro Núcleo. Todo o esforço durante os anos seriam apagados, restando apenas duas pessoas velhas sem esperança para chegarem ao topo novamente.
Tristeza, Matilda sentia ao ver os dois sacrificando o tempo. É necessário, apenas isso.
— Recuem — ordenou em um grito. — Façam uso dos pergaminhos e tire todos.
Rock deu seu primeiro passo e Matilda sentiu. Ela se virou e Nero também. O punho flamejante chegou diante seu rosto, ela não teve tempo de desviar.
Ouviu Nayomi lhe chamar e as chamas azuis largas o suficiente para serem confundidas com o céu fora dos limites do norte.
Um segundo antes do movimento de Rock Albone, o gelo rachou sob os pés de Matilda.
O grito de guerra estridente soando por debaixo da água, os trovões que ressoaram pelos céus e um tremor no estômago dos mais sensitivos. O punho de Rock Albone foi esticado em seu auge — e a ‘Lança do Rei’ subiu em disparo.
Matilda viu o rosto de Rock se contorcer em dor e ser lançado muito longe por uma calda elétrica. No ar, um giro elétrico tão veloz que não se podia enxergar seu portador. E Rock sendo bombardeado ao gelo e recebendo mais um golpe de cima pra baixo.
Quem fosse aquela pessoa, salvou a vida de muitos.
— Ainda estamos na desvantagem, senhora — lembrou Crisy. — Se não formos agora, nossa baixa será maior do que a do inimigo. E os procurados já se reergueram. Gargantus não aguenta mais lutar contra os Sete Demônios.
Havia algo, uma sensação estranha, que começou a a tormentar Matilda naquele instante. O surgimento do Mago de Raio, queria acreditar que sim, mas a inquietação vinha dos seus pés. Ela olhou para o chão.
— Vocês disseram que existia alguém que foi jogado dentro das águas. — Buscou Johan e Charlote. — Quem era ele?
— Orion Baker. — O nome parecia trazer alivio aos dois. — Um Selector de Magnus.
Apenas um Selector? Como dois diretores tinham tanta fé em um homem pequeno?
— Ele salvou Cecilia, irmã — Nero disse em suas costas. — Ele enfrentou os Feiticeiros também.
Mesmo um homem não seria capaz de derrotar um exército e as magias no ar pareciam prontas. Não. Não daria ouvido a incertezas.
— Usem o pergaminho, agora.
No ar, as runas se tornaram preparadas.
— Atirem.
Matilda encarou o céu. O cinza perder sua força para as centenas de magias que se libertaram de uma vez. Nem mesmo sua barreira seria capaz de aguentar três ou quatro. Uma centena mirando neles.
Houve um estrondo ainda maior no chão. Um tremor que chacolhou o que restava das placas de gelo intactas do oceano. E um rugido, uma mistura de grito com o desejo pessoal. Matilda sentiu-se arrepiada.
— O que é isso agora? — Crisy quase caiu no chão.
Os outros não conseguiram se segurar e tombaram sentados.
As magias estavam chegando. Matilda não sabia o que fazer, não sabia…
— MAAAARTIIIIIINNN.
O Mago dos Raios parou de trocar golpes violentos com Rock Albone. Girou sorrindo e acertou uma palma no peito dele. Deu um passo para trás e mostrou seus dois dedos do meio.
— Esse é um presente do Rei Arcanus e do Rei Relâmpago.
Um portal se abriu atrás dele. Rock viu outro se abrir no céu, acima dos seus Feiticeiros. Tocou o peito e viu uma runa marcada, tentou esmagá-la com sua própria mana, mas não conseguiu. Tentou queimá-la com as chamas azuis, e não conseguiu.
O rugido se libertou por debaixo da terra e uma monstruosidade se alastrou com sua boca aberta e as escamas prateadas. Duas longas patas e um tamanho que se estendia por muitos segundos dele saindo do Oceano.
Gigante, enorme, grandioso. O medo que sentiam ao ver uma criatura tão incrível voando na direção dos Sete Demônios.
Espera. Matilda respirava rapidamente. Por que o Dragão Congelado Carsseral estava indo lidar com as invocações de Rock Albone?
Um borrão negro surgiu no ar, diante das magias lançadas. E seu braço se esticou, com um grito:
— ‘Somat: Palma do Vasto Inverno’.
A pressão do ar em quase cem metros quadrados foi forçada a ir na direção dele. E diferente da magia de Nero, não estava alimentando as chamas. Apenas obstruía sua força. Num giro de dedos, uma janela transparente se alargou.
— Que precisão é essa? — Matilda ficou chocada. O vento afunilava a direção das outras magias, guinando-a para aquela janela e sumia assim que adentrava. — Quem é aquele?
Johan e Charlote desfizeram suas camadas de mana, restaurando seus núcleos intactos. Ficaram quase que sorridentes. Eles são diretores e aquele é um… rapaz.
Rock avançou mais uma vez contra Matilda. No meio do caminho, seu peito estalou. Teve que parar para respirar. Levou a mão exatamente onde a runa tinha sido instalada.
— Rock Albone — a voz penetrou sua mente.
Ele levantou a cabeça. O dragão Carsseral simplesmente destruía suas invocações com bocadas e suas garras afiadas, perfurando seus corpos facilmente. O gargalhar do Dragão, ele pôde ouvir. Matilda também ouviu.
E o mesmo gargalhar de Orion Baker. Claro que tinha ouvido sobre o Cão Imortal e sua conquista nas Ruínas de Cro. Só não imaginou que ele tinha o próprio Carsseral… Não. O Gelo Infinito deveria manter o dragão vivo por milhares de anos, não era possível ser coincidência.
Rock também pensava dessa forma. Ele derrubou o rapaz, um golpe direto no coração. Era para estar morto.
— Eu revivo sob o poder dos que regiram o céu. — Orion girou no ar e apontou seu dedo direto para Rock. — Essa magia eu aprendi quando estava no Campanário. ‘Passiva de Somat: Marcação por Runa Definida’.
A janela se abriu e diante dele estava as centenas de magias que foram aparadas.
— Não vou ser morto por isso. — Ele conjurou todas as chamas existentes no campo de batalha. Cinco dos Sete Demônios se desfizeram e atravessaram o solo de volta para seu mestre.
Realmente, não seria morto. Matilda entendia a densidade daquelas chamas. Era incrível que Rock tivesse tanto poder ainda depois de conseguir tirar os Sete de dentro de si. Só indicava o quanto era perigoso.
A Ordem tinha feito os ajustes para tentar achá-lo. Matilda não estava ali para capturá-lo.
— Nero, irei recuar agora. — Ela caminhou de volta para seus guerreiros. — Ativem, agora.
O pergaminho foi aberto e riscado a mana. O portal se abriu e começaram a entrar. Matilda avistou o céu atrás dos Feiticeiros. Assistia apenas o risco azulado cortar de uma ponta a outra, libertando trovões e relâmpagos.
O Mago de Raio destroçava a locomotiva aérea. E no chão, o Dragão Carsseral arrastava-se comendo e destroçando os que corriam e tentavam enfrentá-lo. Um fato tinha se instalado na cabeça da Capitã: Orion Baker e Martin Crons.
Esses dois nomes não seriam esquecidos por ela.
— Nero — gritou o Imperador. — Se não vier, ficará exposto.
Ele negou.
— Cecilia foi salva por aquele homem. Se eu não ficar e ajudá-lo, nunca vou poder olhar na cara dele.
— Que seja. Suas emoções continuam interferindo nas suas decisões. — Ao entrar, Nayomi a seguiu. — Assim que chegarmos, alinhe tudo que tivermos daqueles dois.
— Sim, minha mãe.
Nayomi não tirava os olhos do Dragão e também da pressão causada por Orion Baker. Flutuava, sozinho, no meio do ar com suas duas mãos atrás das costas. Solitário, orgulhoso, poderoso. Aquele rapaz não parecia ser mais velho do que ela.
A aura que emanava, entretanto, era cem vezes superior. Como se estivesse num ambiente excluído esperando por algo, esperando… pelo que?
O portal se fechou.