Passos Arcanos - Capítulo 185
— Pegou três coelhos e água — Carsseral disse, entediado. — O que achou que um simples caçador ia fazer na floresta? Pegar borboletas?
— Não confio nele. — A mão direita de Orion repousou em cima da fogueira e as chamas passavam pro ela, não o queimando. A luz clareava bem a casa solitária, e o quadro, olhou mais uma vez para ele. — Perdeu duas filhas, tenho certeza.
Carsseral bocejou e resmungou sozinho.
— Como está o núcleo? Está alimentando com mana?
— Estou usando a sucção para deixá-lo mais forte. — Dentro de si, a runa prendia o núcleo mágico e mantinha-o suspenso. A mana se dividia em dezenas de canais e o fortificavam. — Nada de diferente ainda.
— Ótimo. Seu desenvolvimento vai ser mais lento por causa da runa de condição. Quando chegar no Segundo Núcleo, terá que fazer uma pausa de alguns dias para se acostumar com a sensibilidade já que a condição era deixar seu corpo ainda melhor.
Orion não queria mencionar o fato de que a dor que sentia não era por causa do núcleo, era por fome mesmo. A mana o alimentava bastante, e por alguns dias poderia ficar sem ingerir nada, só que a conta chegava.
Se não houvesse um banquete de verdade, ele ficaria irritado.
I
— A senhora tem certeza que quer fazer uma aparição dessa? — Forza esperava sua Tenente terminar de ajeitar a fivela de sua bota. — Temos certeza que os sequestradores estão escondidos bem debaixo da terra, algum tipo de magia que nem os nossos Magos identificaram direito. Pode ser uma armadilha, senhora.
— Armadilha ou não, é meu dever ir até lá. — Nayomi puxou sua espada do suporte de madeira e alocou a cintura. A capa leve por cima de sua vestimenta vermelha, e sua calça mais larga, para não suprimir seus movimentos, seria mais do que isso para enfrentar o frio do lado de fora. — Pegue minha terceira pele, por favor.
Forza foi até a cama improvisada no chão e pegou a pelugem esbranquiçada. Nayomi se agasalhou, pondo por último o arca e as aljavas de flechas nas costas.
— Ainda penso que essa ideia não é das melhores.
— Se fosse uma ideia boa, aquelas pessoas estariam seguras. — A cama foi enrolada. Nayomi guardou em seu anel dimensional e ficou ereta, encarando Forza. — Só vai precisar ficar uns dias tomando conta dos homens, nada demais. Vou lá e vejo o que está acontecendo, volto em dois a três dias.
— Estamos demorando mais do que sua mãe havia mencionado.
O senso de dever de Forza irritava, boa parte das vezes.
— E se ficar me atrasando, vai demorar mais. Vou partir agora, e chego no meio da noite lá.
Sua mãe tinha sido tão irritante ao deixá-la e partir para tomar conta dos piratas sozinha que Nayomi apenas resguardou suas verdadeiras intenções para si. Não chegou a ficar mais dois dias em Itauba, além de ter sido ignorada por Crisy, o braço direito dela.
Por conta das inúmeras reclamações que tinha, também foi ignorada pelos Sargentos. Ninguém queria ajudá-la, nem mesmo um bando de moradores em um lugar isolado passando por necessidade.
Foi assim que se apresentou a Carnel, um pequeno vilarejo caindo aos pedaços e ignorado por todo o Império. Nayomi não se importava com o título que lhe davam, Tenente ou Capitã, nada disso importava tanto.
A verdadeira ajuda deveria vir da ação. Palavras meia-boca já tinham sido usadas por metade da população, ainda mais na história da humanidade.
Assim que adentrou novamente os arredores de Carnel, ouviu uma luz amarelada forte repercutindo nas paredes das casas e nas ruas. Vozes alegres, aliviadas e cachorros latindo. Nayomi apertou o passo e observou afastada.
Uma larga mesa esticada em uma das varandas, cadeiras ocupadas por moradores e um banquete sendo montado. O cheiro de carne, de peixe, frango, o verde dos legumes, as batatas. Um jantar invejoso nos moldes de uma população tão humilde.
— Um brinde. — O atirador da torre, Nayomi o reconheceu. — Onde está o rapaz? Ele ainda não voltou?
— Disse que foi no banheiro — uma senhora respondeu risonha. — Deixe ele, Clint. Vamos comer até amanhã.
A fogueira do lado de fora da casa era cinco vezes maior do que uma convencional, com duas estacas de ferro lado a lado e um imenso javali, fatiado em partes, sendo assado com uma gordurosa banha.
Dava água na boca, Nayomi admitiu.
— É errado bisbilhotar escondido, sabia?
Deu um salto, virado já com a mão na espada. Reconheceu outro rosto, não tanto familiar, mas marcante. Os olhos negros, os cabelos médios, quase suficientes para serem presos atrás da cabeça, e um sorriso diferente. Leve demais.
— Eu… não estava bisbilhotando — respondeu para Orion Baker. — Apenas me certificando de que estava tudo bem. Da última vez que vim, estavam cheios de problemas. E você, está escondido aqui por que? — Antes dele responder, ela apontou. — Você não tinha que estar em Itauba agora?
Orion coçou o pescoço, desviando os olhos.
— Pode ser que eu tenha errado o caminho e parado aqui.
— Errou o caminho? — Curioso, Itauba era do outro lado. A Sudeste. — Você não está de montaria? Os cavalos do meu tio sabem todas as rotas possíveis.
— Não. Estive vindo a pé mesmo.
O boato de que Carsseral realmente tinha voltado e voava pelos céus do Norte era desconsertante. Primeiro porque Nayomi viu o Dragão Prateado na luta contra Rock Albone, e segundo porque Orion Baker também estava lá.
Ambos apareceram juntos. E agora, ele estava ali e perdeu o caminho.
— Itauba fica três dias para o outro lado, isso se for sem parar. — Cerrou os olhos, pondo a mão na cintura. — Está mentindo para mim?
— Não, nem tentaria fazer isso — Orion sorriu. — Eu realmente vim a pé, mas acabei chegando aqui pensando que era Itauba. Essas pessoas precisavam de ajuda e eu fiz o que pude.
— Ei, Orion. — Clint e Moly acenaram com as outras crianças. Havia até mesmo uma mulher gravida, alimentando seu filho no peito. — Quem está contigo? Mande embora e volte pra cá.
— É a Tenente — Orion falou bem alto. — Nayomi Defoul veio nos visitar.
Os moradores pararam de fazer alarde e viraram-se juntos. O nome Defoul não era dos melhores a ser dito assim abertamente. Um povo sofrido como aquele deveria ter seus próprios demônios e temores para se preocupar com ela.
Desde que recebeu seu título, muitos vilarejos ignoravam. Nero não era um Imperador que agradava todos, e a parte mais pobre era a maioria nessa divisão.
— Nayomi. Nayomi. — Clint ergueu o copo e gargalhou. — A Tenente veio nos ver, mesmo depois de ter sido chutada. Devíamos pedir desculpas, pessoal.
Orion passou por ela e a chamou com a mão. Uma hora estava andando sozinha pela mata fria e na outra sentada no meio de um banquete quente e calorento. Ouviu como Orion abafou a maldade que se localizava debaixo da terra e recuperou a paz aquele dia mesmo.
A carne foi depositada na sua frente e ela comeu, sentindo alivio e também gosto. A gordura estava em perfeito estado.
— Eu cozinhei ela por horas — afirmou Moly, uma senhora de cabelos encaracolados e bem pequena. — Coma a vontade, menina. Precisa estar linda para voltar para sua mãe.
— E encham o copo dela. — Clint apontava para cada caneca vazia na mesa. — Encham todas.
Tantas vozes juntas, e cerveja, sentia o cheiro nos homens e nas mulheres. Eles bebiam sem pensar no amanhã, ou até mesmo na noite acima deles. E do outro lado da mesa, Orion fatiando um pedaço de carne, aceitando outro de Moly e rindo de uma criança que espirrou e meleca escapuliu do nariz.
A mãe da criança limpou e o garoto continuou comendo. Eles são tão magros, notou em muitos deles. Um banquete daquele era difícil de acontecer. Mas, ela não perdeu a oportunidade e enfiou a carne na boca, bebendo e pedindo mais.
— Ela bebe mais do que você, Orion — Clint gargalhou depois de horas de Nayomi estar na mesa. — Você só beliscou uns cinco copos de cerveja. Tem que beber mais.
— Sou fraco com a bebida.
Dez copos, Nayomi suspirou depois de beber tanto. E quase cinco pratos regrados de carne. E o Javali nem estava na metade ainda. Poderiam comemorar por dias e ainda sobraria comida. Moly se retirou para descansar e as crianças também.
Tinham pessoas dormindo na mesa e outros soluçando, segurando para não serem abraços pelo sono.
Viu Orion afastar a cadeira e se levantar.
— Vou tomar um pouco de ar.
— Certo. — Clint abanou a mão e virou outro copo. — Vamos, ninguém mais quer virar comigo?
Nayomi também se levantou.
— Vou também.
— Certo. Como são convidados, podem ficar na minha casa. — Clint virou mais uma copo de cerveja e viu mais dois fazerem o mesmo. — É sobre isso, vamos meus amigos. Não temos uma festa assim faz anos. Bebam tudo.
Arrastando o pé na neve, Orion tomou os dois braços atrás das costas e fez uma pequena parada, esperando por Nayomi. A sua direita, fitou o mesmo ponto que ele, a montanha. Era difícil enxergá-la por causa do escuro, mas sua silhueta estava lá, imóvel, imbatível e invencível.
— Haviam sequestradores aqui — disse Orion. — Foi por isso que veio, certo?
— Pode ser que sim, pode ser que não. — Ela fingiu um levantar de ombros. — Ou vim ver se você realmente estava vivo depois de Rock Albone ter fugido. Nunca saberemos.
— Rock não fugiu, eu deixei ele ir.
Nayomi virou-se velozmente.
— Deixou ele ir? — Não poupou indignação. — Sabe quanto tempo ele estava foragido? A Ordem agora fica questionando minha mãe e meu tio por causa dele.
Orion a olhou de lado e sorriu.
— Eles não te contaram?
— Não contaram o quê?
Ele manteve o sorriso vivo.
— Não tenho direito de te contar se sua mãe não disse nada.
— Fale logo. Odeio curiosidades.
— Rock foi marcado por uma runa de rastreamento. — Orion esticou a mão. Um plano de um metro se ergueu em cor dourada, e no meio dele, um ponto vermelho pulsando. — Nós sabemos exatamente onde ele está agora. O motivo da Ordem não saber disso, ai eu já não faço ideia.
Nayomi visualizou o mapa mais um pouco. Pela posição geográfica com picos e montanhas, além de florestas, tanto detalhado, Rock ainda se mantinha no Extremo Norte, porém, quase no limiar para as Terras Fluviais, mais para o centro de Hunos.
Nem sua mãe ou Nero haviam mencionado sobre o paradeiro do Campeão da Luz, entretanto, Orion sabia.
— Não se importa de falar sobre isso mesmo que meu tio não tenha comentado nada?
— Não. — O mapa sumiu de sua posse. — Não sinto nenhuma intenção maldosa sua quanto a isso. Rock estaria melhor morto, só que temos a chance de achar mais postos e acampamentos da Ordem enquanto ele estiver vivo.
— Agora entendo o motivo da minha mãe ter partido tão rápido. Ela disse que sabia um acampamento perto de Itauba, mas teria que usar os Rios Congelados para chegar lá.
— Possivelmente é um dos pontos que o Imperador tirou de Rock antes de deixar ele ir.
Nayomi queria ter estado até o final daquela luta para ver o que realmente aconteceu. O relatório do Imperador foi que Rock fez uma jogada ardilosa contando alguns dos locais que esteve reunindo forças, e que um ataque formado por outros Campeões lhe tempo para fugir.
A informação sempre era retirada ou modificada pelos conselheiros, ainda mais no Palácio de Vidro, que sempre mantiveram cobras bem alimentadas, prestes a dar botes secos no seu tio.
— Por que ficou com ele e não voltou para a Academia de Magnus?
Orion não respondeu logo de cara. Estava pensando.
— Se não quiser falar, não precisa — completou. — Sei que algumas coisas são mais chatas de contar.
— Ele queria que eu deixasse Cecilia morrer para pegar Rock. Eu não ia deixar a jovem morrer, mesmo que aquela fosse uma ordem acima das Academias.
— A Ordem dos Magos queria isso? — A ideia pareceu macabra. — Cecilia ia morrer…
— Não ia. — Ele sorriu mais uma vez. — Não ia deixar isso acontecer. Uma morte em vão, era o que seria. E Magnus não tem como me derrotar hoje, em nada. Era só tempo até que eu saísse de lá mesmo.
Pelo tom calmo, Nayomi não duvidou nada. Dizer que um diretor não poderia vencer um jovem de vinte anos, era confiança demasiada. Ter visto Orion flutuando no meio do Oceano Congelado, com a transparência de um Mago poderoso, deixava menos duvida ainda.
Ele podia confrontar Magnus, era uma certeza.
— Fez certo, então — respondeu ela. — Minha mãe diz que você é uma jogada do Imperador, uma que pode dar muito certa ou muito errada. Ele quer te fazer uma Lança.
— O nome não me importa muito, só preciso da ajuda dele. Fiz inimigos demais nesse último ano, e preciso de alguém forte.
— Vai usar um Imperador como uma aba segura?
— Assim posso satisfazer as necessidades dele — assentiu, simplesmente. — Algumas pedidos podem ser perigosos ou destrutivos demais para o nome do Imperador estar no meio, e usar o meu será melhor. Não vamos ter vínculos, o que beneficia bem a ele.
— Então, será uma Espada, não uma Lança.
Orion a encarou.
— E qual a diferença?
— Muitas, para começar. Uma Lança tende a ser bem expressiva e comanda batalhões de soldados. Nunca andam sozinhos, sempre seguem a ordem do Imperador. São como aquela montanha. — Apontou seu dedo para cima. — Imóveis, mesmo na destruição ou na própria morte.
— E uma Espada, como ela é?
— Igual as nuvens. — Seu dedo mudou de direção, para o mais alto possível. — Nunca temos certeza do que vai acontecer, nem do que nos vai dar. As vezes, tapa o sol e nos refresca, as vezes, tapa o sol num dia frio e nos dá raiva. As vezes chove, as vezes oculta os relâmpagos. As vezes, como hoje, liberam um punhado de neve sem nos deixar saber como vai ser o dia de amanhã.
Ele gostou da metáfora, sorriu bastante. Orion não parecia ser ruim, pelo que fazia ou pelo seu porte solitário. Justamente por ter lutado ao lado do Imperador e ter feito Rock ser derrotado.
Ainda existia algo que ela queria saber.
— Naquele dia, Carsseral foi solto e dizem que você foi quem o tirou lá debaixo.
— Quer saber se ele está comigo?
— Os boatos de que existe um dragão voando mais uma vez nos céus do Extremo Norte já chegaram até mesmo nas Terras Fluviais. Minha mãe ficou irritada por saber que vai ter que lidar com outras pessoas além dos burocratas e dos puxa-sacos do meu tio.
— Sua mãe tem total razão quanto a isso. — Orion virou-se e olhou para baixo. — Carsseral esteve comigo desde que você chegou. Na verdade, foi ele quem me alertou.
Nayomi moveu-se para trás ao ver o Dragão Cobra no chão. Seus olhos dourado esverdeados eram puro poder misturado a arrogância de sua superioridade. E ele subiu pelos braços de Orion e repousou em seu ombro.
— Essa é a filha daquela mulher — sua voz era grave, forte e cheia de uma silenciosa fúria. — Pelo visto, eles ainda cultivam fortes espíritos. Essa não é ruim, Orion. A copula entre seus genes daria filhos poderosos.
O rosto dela avermelhou-se na hora.
— Do que está falando? Controle essa língua.
Orion deu uma risada franca.
— Ele não costuma elogiar os outros, Nayomi. É a segunda vez que ouço.
— Mesmo assim, ficar falando sobre ter filhos para mulheres. Sem senso nenhum.
Carsseral suspirou e deitou sua cabeça no ombro de Orion, entediado.
— Como se sexo fosse um tabu. Humanos ainda são tão pouco evoluídos para saber como deixar sua raça forte. Orion, já me alimentei. Agora vou descansar por alguns dias. Não vou dizer para fazer nada estúpido, você sempre faz.
Orion concordou com ele e andou para o vilarejo.
— Estou cansado também. Vai vir, Nayomi? Podemos continuar a conversando na casa de Clint.
— Vai ficar aqui até quanto? — Ela não se importou sem segui-lo.
— Até eu saber o motivo dos sequestradores estarem aqui. E já estou coletando informações.
A casa com uma torre no alto, da última vez que Nayomi esteve ali, a besta que pairava lá em cima foi mirada para ela. Os moradores gritaram xingamentos até que ela saísse de lá as pressas. Agora entendia que o peso em suas ações foram criadas a partir dos sequestradores.
E se eles estavam ali por tanto tempo, era claro que já tinham levado outras pessoas. Naquela mesa, Nayomi contou pouco mais de vinte pessoas, e o vilarejo possuí capacidade para cem, mais ou menos.
Onde estavam o restante delas?
— E como tem feito isso? — perguntou ao passar pela porta da casa. — Essas pessoas não devem saber quase nada.
— Magia, praticamente.
Orion se ajoelhou no buraco e esticou sua mão. A faísca se libertou sem ao menos conjurar uma runa, e acendeu a brasa. As paredes e móveis iluminados formavam sombras nas paredes, mexendo-se levemente.
— Amanhã posso te mostrar. — Ela já tinha sentado e fechado os olhos. — Descanse bastante. Sei que esteve andando um tempo na floresta, deve estar cansada também.